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Pessoa joga Tetris 99, uma versão recente da Nintendo para seu clássico game Tetris

  • Author, Tom Stafford
  • Role, BBC Future

Era um feito considerado impossível há décadas.

Nos últimos dias de 2023, o adolescente americano Willis Gibson – “Blue Scuti”, como é conhecido online – “zerou” a versão do videogame Tetris da Nintendo, lançada originalmente em 1989.

Os projetistas originais achavam que zerar o Tetris seria impossível – o jogo foi projetado para ser jogado infinitamente. As peças caem cada vez mais rápido, até sobrecarregar o jogador.

Para zerar o jogo, é preciso atingir placares tão altos que os bancos de memória ficam sobrecarregados e o jogo trava. O jogador vence porque o computador simplesmente não consegue continuar.

Sou professor de ciências cognitivas e tenho interesse em saber como as pessoas adquirem experiência, particularmente em videogames. Por isso, o feito alucinante de Gibson chamou imediatamente minha atenção.

A façanha desse menino de 13 anos diz muito sobre como os limites do desempenho humano estão mudando na era digital.

Até então, a versão NES (Nintendo Entertainment System) do Tetris só havia sido zerada pela inteligência artificial.

Um programa especialmente projetado conseguia perceber, quase instantaneamente, o estado do jogo Tetris e selecionar as ações com a mesma rapidez em que o console as registrava. A IA jogava incessantemente, sem cometer um único erro – algo que parecia muito além das restrições do simples desempenho humano.

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Jogadores competem no Campeonato Mundial de Tetris Clássico

Na época (2021), a IA conseguiu mostrar aos seres humanos níveis nunca antes atingidos pelos jogadores de Tetris. Como a física no limiar de um buraco negro, a realidade do jogo começa a dobrar nos níveis mais altos.

A velocidade dobra subitamente no nível 29, que poucos seres humanos atingem e menos ainda conseguem sobreviver por muito tempo.

Quando o placar atinge 1 milhão, os dígitos começam a ser substituídos por letras e, depois, por símbolos do conjunto de gráficos do Tetris.

Depois de um certo tempo, as cores dos blocos são deturpadas e se alteram. Em alguns níveis, eles ficam todos em forte tom de rosa, enquanto outros têm blocos tão escuros que você mal consegue vê-los, ainda mais na velocidade em que é preciso jogar para sobreviver.

Este é o contexto do jogo do streaming postado por Gibson no dia 21 de dezembro de 2023. No vídeo, ele joga Tetris em velocidades cada vez mais frenéticas por 40 minutos.

Ao longo do processo, ele define novos recordes mundiais de placar, níveis jogados e linhas completadas. Por fim, ele é recompensado quando o jogo trava – o sinal de que Gibson havia feito o impossível: ele zerou o jogo.

A façanha é real, mas sua importância vai muito além do domínio dos jogos clássicos de fliperama e das pessoas que adoram esses games. O feito de Gibson e a forma em que ele conseguiu oferecem lições gerais sobre como as pessoas aprendem e como se ampliam os limites do desempenho humano.

Para entender o porquê, é preciso lembrar que, mais do que um jogo, Tetris é uma comunidade. Gibson não pegou apenas um console antigo para jogar, ele se associou a uma tradição viva.

Existem milhares de jogadores dedicados ao Tetris na plataforma NES da Nintendo, a mesma em que o jogo foi oficialmente lançado na América do Norte.

Além dos jogadores, existem streamers, blogueiros, teóricos discutindo estratégias e caçadores de recordes concorrendo para superar uns aos outros. Existe até o Campeonato Mundial de Tetris Clássico, realizado todos os anos em Portland, no Estado americano de Oregon.

O Campeonato Mundial de Tetris Clássico é disputado todos os anos em Portland, nos Estados Unidos.

O Tetris é famoso por ser viciante. Mas a comunidade é quem atrai novos jogadores para o hobby, mesmo com a quantidade cada vez maior de alternativas disponíveis no mercado.

As comunidades fornecem incentivos e outro ingrediente fundamental para acelerar o potencial humano: a inspiração. Elas são laboratórios vivos de ideias e experimentação, onde pessoas diferentes podem experimentar coisas novas e os sucessos podem ser compartilhados.

Crédito, Lawrence K. Ho/Los Angeles Times via Getty Images

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O Tetris é famoso por ser ‘viciante’, mas o fator comunitário também é muito importante

Cientistas estudam esse aprendizado social com o nome de “evolução cultural”.

Outros animais também realizam essa atividade, mas os seres humanos são os mestres. A evolução cultural fornece as sementes da cultura, à medida que diferentes comunidades desenvolvem práticas diferentes para se adequar ao ambiente ao seu redor.

E as novas técnicas vitoriosas se espalham entre as comunidades de aprendizado.

Um exemplo é o “Fosbury Flop”, o salto de costas – uma técnica de salto em altura popularizada pelo atleta americano Dick Fosbury (1947-2023), vencedor da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968.

O salto vencedor de Fosbury atingiu 2,24 metros. Mas esse nível foi atingido (e, em muitos casos, esmagado) por todos os concorrentes nos Jogos Olímpicos de 2020 em Tóquio, no Japão – todos utilizando a técnica de Flop.

A internet e a IA estão fazendo com quase todas as habilidades humanas imagináveis o mesmo que Fosbury fez com o salto em altura.

Recentemente, a internet acelerou exponencialmente o mecanismo da transmissão cultural. Seja para aprender código de programação ou apenas assistir a um vídeo ensinando a consertar a máquina de lavar louça, é mais fácil do que nunca copiar novas habilidades.

Um exemplo é o jogo de xadrez. Desde que surgiram os jogos de xadrez domésticos por computador, houve massivos avanços geracionais das técnicas do jogo. Esses avanços fizeram com que os jogadores de hoje passassem a jogar xadrez melhor do que em qualquer outro momento da história.

Até os criminosos empregam o aprendizado social. Uma notícia recente culpou o TikTok pelo aumento de um estilo específico de roubo de carros.

Jogadores adaptaram a forma convencional de segurar com as mãos um controlador da plataforma NES, da Nintendo, para poderem jogar Tetris com mais rapidez.

No Tetris, uma inovação fundamental foi a nova forma de segurar o controle, conhecida como rolling. Nela, os jogadores tamborilam no fundo do controle contra um dedo ou o polegar, que fica pouco acima das teclas. A técnica permite que os jogadores digitem os comandos com mais rapidez do que pressionando um único dedo.

O game tem 34 anos de história, mas o rolling só ficou popular nos últimos anos. Ele se espalhou rapidamente pela comunidade de streamers e pelos jogadores nas competições de Tetris.

E, como costuma acontecer, os membros mais jovens das comunidades são aqueles que reconhecem a utilidade das inovações. Gibson começou a jogar Tetris aos 11 anos de idade e empregou a técnica de rolling no jogo que quebrou todos os recordes.

Muitas das discussões sobre a inteligência artificial se concentram em campos em que as habilidades humanas podem passar a ser obsoletas, mas é um erro imaginar que o desempenho humano é um alvo estacionário.

Como demonstraram o feito e a quebra de recordes de Gibson, nós desafiamos constantemente os nossos limites e, ao atingi-los, ampliamos a nossa compreensão.

A moral da história é que pressionar as fronteiras das habilidades humanas é uma consequência das contínuas inovações alcançadas pela coletividade e por indivíduos notáveis.

Nós, seres humanos, somos uma espécie definida pela nossa capacidade de aprender. E, na era digital, existe cada vez mais potencial para levar o nosso desempenho para territórios inexplorados em todos os aspectos da arte, ciência e cultura – até no jogo de Tetris.

*Tom Stafford é professor de ciências cognitivas da Universidade de Sheffield, no Reino Unido. Ele é o autor da newsletter “Reasonable People”.