• Rafael Barifouse
  • Da BBC News Brasil em São Paulo

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Valor do rombo na Americanas foi estimado em R$ 20 bilhões

A Americanas já perdeu mais de R$ 9 bilhões em valor de mercado desde que foi anunciado um rombo financeiro na companhia, na quarta-feira (11/1).

A varejista informou que foram identificadas “inconsistências em lançamentos contábeis redutores da conta fornecedores realizados em anos anteriores, incluindo o exercício de 2022”.

A companhia divulgou ainda que seus então presidente, Sergio Rial, e diretor de relação com investidores, André Covre, que haviam assumido apenas nove dias antes, estavam se demitindo das funções.

O executivo João Guerra, que não tinha envolvimento com a gestão financeira do negócio, assumiu interinamente os dois cargos.

O valor do rombo foi estimado em R$ 20 bilhões em uma análise preliminar e é relacionado a uma operação financeira conhecida como “risco sacado”.

Essa operação é comum no varejo. Na prática, a companhia pega dinheiro emprestado com um banco para comprar de fornecedores.

O banco paga aos fornecedores, e a empresa paga ao banco o dinheiro financiado, com juros.

Isso é bom para uma companhia porque o empréstimo tem um prazo de pagamento maior do que o exigido pelos fornecedores, o que deixa mais dinheiro em caixa para a sua operação.

O problema foi que isso não foi informado corretamente no balanço da Americanas.

Em vez de registrar os valores como uma dívida bancária, eles foram informados como dívidas aos fornecedores, e os pagamentos dos juros devidos com essa operação foram contabilizados como uma redução do valor devido aos fornecedores, e não uma despesa financeira.

Isso distorceu seus resultados, porque fez com que as despesas da empresa e seu endividamento aparecessem no balanço com um valor menor do que eram na realidade, e o lucro e o patrimônio líquido (a diferença entre seus bens e suas obrigações financeiras) fossem maiores.

O anúncio pegou o mercado de surpresa, já teve repercussões na Justiça e gerou suspeitas de que pode ter ocorrido uma fraude, o que será investigado.

A BBC News Brasil procurou a Americanas para comentar sobre o caso, mas a empresa se limitou a dizer que “manterá o mercado informado a respeito dos desdobramentos relevantes”.

Os maiores prejudicados até agora pela crise foram as dezenas de milhares de investidores que têm ações da companhia, que entraram em queda livre desde o anúncio, com uma desvalorização de quase 85%.

O rombo foi divulgado quando o pregão da Bolsa já havia se encerrado na quarta-feira, então, o maior tombo veio no dia seguinte.

A ação da Americanas fechou na quarta-feira negociada a R$ 12. Isso significava que a empresa valia cerca de R$ 10,83 bilhões.

Na quinta-feira (12/1), os papéis se desvalorizaram mais de 77% e terminaram o dia negociados a R$ 2,72.

As ações se recuperam um pouco na sexta-feira (13/1), para R$ 3,15, mas voltaram a derreter na segunda-feira (16/1).

Seu preço desabou mais de 38% e fechou em R$ 1,94, colocando o valor da companhia em R$ 1,75 bilhão – R$ 9,1 bilhões a menos do que antes da crise.

As ações caíram tanto assim porque o rombo e a saída de Rial minaram a confiança na empresa e sua capacidade de honrar seus compromissos.

Fernando Ferrer, analista da Empiricus Research, aponta que a empresa tem um patrimônio líquido de R$ 14 bilhões, ou seja, R$ 6 bilhões a menos do que o rombo anunciado.

“Isso significa que a empresa tem mais compromissos do que recursos e coloca o patrimônio líquido da empresa no negativo, ou seja, ela está quebrada e vai precisar de uma injeção de capital”, diz o analista.

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Ações da empresa despencaram desde o anúncio do rombo

Soma-se a isso uma grande incerteza sobre a real situação da Americanas, porque a empresa foi bastante econômica nas explicações que deu ao mercado.

A própria empresa disse que o tamanho exato do rombo será definido por um comitê independente que foi criado para apurar “as circunstâncias que ocasionaram as referidas inconsistências contábeis”.

O valor foi calculado de forma preliminar em R$ 20 bilhões, mas a própria Americanas ressaltou que o montante precisa ser confirmado por auditores independentes.

Em reunião com investidores, feita no dia seguinte ao anúncio do rombo, o ex-presidente Sergio Rial afirmou se tratar da “melhor estimativa do que vimos em nove dias” e que esse problema ocorreu por sete a nove anos nos balanços da companhia.

O executivo também disse não poder afirmar que não há outras inconsistências nos balanços ou presumir que existam, porque teve pouco tempo para avaliar toda a situação.

“Se ele começou a estudar o balanço e descobriu isso em nove dias, pode ser que [o valor] seja bem maior”, diz Ferrer.

Prejuízo para investidores

Analistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que o prejuízo foi generalizado porque a Americanas tinha muitos acionistas, e havia um grande interesse grande nos papéis com a expectativa de que eles se valorizariam.

“Quem tomou o maior prejuízo foi o detentor de ação minoritário, que viu uma queda de quase 80% do dia para a noite”, diz Phil Soares, chefe de análise de ações da Órama Investimentos.

“Não me lembro de outro caso assim no mercado brasileiro.”

Soares ressalta que “mais de 54% das ações estão pulverizadas no mercado”.

Ferrer diz que “muita pessoa física vai sair machucada desse processo”. “A lista é grande, a Americanas tinha mais de 130 mil CPFs na sua base de acionistas”, afirma.

José Eduardo Daronco, analista da Suno Research, diz que só ficaram a salvo da crise os poucos que tinham opções de ações da Americanas.

Quem tem opções pode vender os papéis a um preço pré-determinado em uma data específica. “Mas era um número irrisório, todo mundo perdeu”, afirma Daronco.

Além disso, muitas pessoas tinham investimentos atrelados à empresa por meio de fundos que haviam apostado nos papéis da empresa.

Um levantamento da consultoria Economatica para o site Estadão E-Investidor aponta que 1.057 fundos têm investimentos na Americanas.

Um dos casos que mais chamou atenção foi o fundo Reserva Imediata, do banco Nubank, que tinha 1% do seu valor total em debêntures da companhia. Debêntures são títulos de dívida que uma empresa vende para se financiar.

O fundo do Nubank é vendido aos clientes como uma opção de investimento segura, com retornos acima do CDI, um índice de referência do mercado, e de alta liquidez, porque permite resgatar o dinheiro colocado nele no mesmo dia.

Ferrer explica que, com o anúncio do rombo, a nota da Americanas foi rebaixada por agências de avaliação risco, que analisam a capacidade de um devedor pagar seus credores, o que fez os debêntures da empresa se desvalorizarem.

“Uma série de investidores, grandes e pequenos sofreram de forma importante com isso”, diz o analista.

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Americanas é um dos principais varejistas do país

Isso prejudicou a rentabilidade do fundo do Nubank, e muitos cotistas reclaram nas redes sociais que estavam perdendo dinheiro.

Em seu perfil, a especialista em finanças pessoais Nathália Rodrigues, mais conhecida como Nath Finanças, criticou o Nubank e recomendou que os cotistas retirassem seus investimentos dele.

“Minha recomendação é essa, independente se você perdeu ou não. Existem locais melhores de se aplicar dinheiro”, disse ela em sua conta no Twitter.

O Nubank afirmou à BBC News Brasil que outros fundos também foram afetados, que o aporte feito na Americanas é pequeno e ressaltou que a rentabilidade do fundo acumulada nos últimos 90 dias está positiva.

Erro ou fraude?

Uma queda das ações e outros títulos de uma empresa dá prejuízo aos investidores quando seu valor fica abaixo do que se pagou para comprá-los, mas isso só se concretiza se a pessoa vende os papéis.

Quem levou um baque tem a opção de vender agora e assumir a perda, se tiver a expectativa de que a desvalorização pode ser ainda maior, ou esperar que as ações e títulos se recuperem para evitar sair no negativo.

O Instituto Brasileiro de Cidadania (Ibraci) entrou com uma ação na Justiça pedindo que a Americanas indenize seus investidores por danos materiais e morais causados pelo rombo.

O Ibiraci afirma que os investidores compraram ações da empresa com base nos seus balanços e que “atos ilícitos” e “informações falsas, enganosas ou maquiadas” os induziram a superestimar o valor dos papéis.

Fábio Coelho, presidente da Associação de Investidores no Mercado de Capitais (Amec), diz que o mercado está não só surpreso com o rombo, mas perplexo pela falta de transparência e de respostas dadas pela empresa até agora.

Coelho diz que será preciso apurar a responsabilidade não só dos executivos e do conselho de administração da companhia, mas da consultoria PwC, que auditou e aprovou os últimos balanços da Americanas. A PwC disse à BBC News Brasil que não comenta sobre o caso.

Coelho diz não ser possível neste momento apontar se houve erro ou má-fé, mas avalia que a hipótese de fraude “vem ganhando força” pela semelhança dos acontecimentos atuais com outros casos do tipo, como na Petrobras e na resseguradora IRB Brasil.

“Supostamente houve um problema de classificação contábil, mas o cenário de fraude é possível, e as cenas que estamos assistindo agora se parecem com as destes casos emblemáticos do passado. Isso será apurado”, diz Coelho.

A Comissão de Valores Mobiliários, órgão que regula e fiscaliza o mercado de ações, abriu três processos administrativos para investigar a Americanas.

O presidente da Amec diz que os investidores que se sentirem lesados devem primeiro buscar a arbitragem de conflitos da Bolsa antes de recorrer à Justiça.

“A busca por reparação de danos não é um processo rápido. Não será em horas, dias ou semanas, mas o caminho mais adequado é a arbitragem”, afirma.

O analista José Eduardo Daronco afirma que havia uma grande demanda pela Americanas no mercado porque a empresa vinha crescendo e poderia aumentar ainda mais suas vendas com a expansão do comércio eletrônico.

“Havia várias recomendações de compra das ações da Americanas por analistas que projetavam que seu preço poderia chegar a R$ 30, R$ 36, R$ 37”, afirma.

No portal de relação com investidores, a Americanas lista as recomendações, e 10 entre as 15 informadas indicavam que a ação da companhia atingiria um valor acima do que era negociado antes da crise.

Daronco afirma, no entanto, que não acreditava neste potencial, porque a empresa está em um mercado muito competitivo e vem registrando prejuízos nos últimos trimestres e se endividando para crescer.

“A Americanas, assim como todo o varejo, tem sofrido bastante com a inflação, que corrói o poder compra e faz com que as pessoas consumam menos, o que aumenta a competição. Além disso, os juros altos vinham corroendo seus resultados. Ela estava alavancada e queimando caixa”, diz o analista.

Agora, tem um rombo para tapar, e “isso pesou muito”, afirma Daronco.

Os principais acionistas

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Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Herrmann Telles são os maiores acionistas do negócio

Ninguém teve um prejuízo maior até agora que o trio de bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Herrmann Telles e Carlos Alberto Sicupira.

Eles já comandaram a empresa e tiveram seu controle acionário. Hoje, são seus acionistas de referência, individualmente ou por meio de fundos.

São chamados assim aqueles que têm uma participação mais relevante em uma companhia e podem influenciar na sua gestão por causa disso.

Lemann e Sicupira também são membros do conselho de administração da companhia.

Os acionistas de referência são donos de 30,13% da Americanas, de acordo com dados da empresa de dezembro de 2022. Eles já perderam mais de R$ 2,73 bilhões com a queda das ações até agora.

A Americanas disse que “os acionistas de referência (…), presentes no quadro acionário há mais de 40 anos, informaram ao conselho de administração que pretendem continuar suportando a companhia”.

Eles devem agora desembolsar ao menos R$ 6 bilhões para injetar o capital que a Americanas precisa para cobrir o rombo.

A proposta foi feita, segundo a agência Bloomberg, em uma reunião com os credores da empresa mediada pelo ex-presidente Sergio Rial, que agora trabalha como consultor destes acionistas.

A oferta não agradou os credores, que responderam que o valor é baixo e esperam mais de R$ 10 bilhões, informou a agência.

Eles terão que fazer isso para a Americanas não falir e preservar sua imagem perante o mercado, diz Fernando Ferrer, da Empiricus.

“Essa crise gera um risco reputacional grande não só para a companhia como para os seus acionistas de referência. O quanto antes eles aparecerem e conversarem com o mercado, menor vai ser o desgaste”, afirma.

Não houve nenhuma manifestação oficial por parte destes acionistas até o momento.

Mas, segundo apurou o site Reset, Lemann, Sicupira e Telles dizem a pessoas próximas que não têm culpa pelo rombo porque tinham pouco contato com o dia-a-dia do negócio e responsabilizam os executivos da Americanas.

Disputas na Justiça

Os bancos que emprestaram dinheiro para a Americanas também foram envolvidos nesta crise.

A Americanas conseguiu na Justiça impedir por 30 dias a cobrança antecipada de suas dívidas pelos bancos.

A empresa disse que seu endividamento chega a R$ 40 bilhões e que atender aos pedidos de cobrança poderia gerar um tratamento desigual entre seus credores e colocar sua operação e os 100 mil empregos diretos e indiretos gerados pelo negócio em risco.

A dívida da empresa com oito bancos é de R$ 18,7 bilhões, segundo apurou o jornal Valor Econômico, dos quais R$ 13,5 bilhões seriam em risco sacado.

Os maiores credores seriam Bradesco, Santander e Itaú, com valores entre R$ 3,4 bilhões e R$ 4,7 bilhões, de acordo com o jornal.

Um destes bancos, o BTG, tentou sem sucesso reverter judicialmente a moratória das cobranças. Na ação, o banco fez duras críticas à Americanas e aos seus acionistas de referência.

O BTG disse que a companhia agiu premeditadamente e com má-fé para cometer a “maior fraude corporativa de que se tem notícia na história do país”.

O banco apontou como evidência disso o fato de que diretores da companhia venderam R$ 223 milhões em ações entre julho e outubro do ano passado.

O Ministério Público Federal de São Paulo disse que vai apurar se eles cometeram crimes. A suspeita levantada é de que eles poderiam ter conhecimento do rombo e venderam ações para não ter prejuízo, o que seria ilegal.

A Americanas não comentou sobre a venda de ações por sua diretoria.

O BTG disse ainda sobre Lemann, Telles e Sicupira que “os três homens mais ricos do Brasil (…) ungidos como uma espécie de semideuses do capitalismo mundial ‘do bem'”, depois de serem “pegos com a mão no caixa”, tiveram a “pachorra” de impedir a cobrança das dívidas para proteger seu patrimônio, estimado em R$ 180 bilhões, segundo o banco.

“É o fraudador pedindo às barras da Justiça proteção ‘contra’ a sua própria fraude. É o fraudador cumprindo a sua própria profecia, dando verdadeiramente ‘uma de maluco para esses caras saberem que é pra valer'”, disse o BTG na ação.

O Bank of America também não teve sucesso ao recorrer à Justiça, segundo o Valor, e outros bancos podem acionar a empresa, conforme o andamento das negociações da Americanas com seus credores, que está sendo mediada pelo banco Rothschild & Co.

O analista Fernando Ferrer diz que a negociação é uma perspectiva melhor para os bancos do que se a empresa entrar em um processo de recuperação judicial.

“Enquanto estiver em recuperação, as dívidas não poderão ser executadas, e o banco terá que dar um perdão de parte do valor. Aí, os bancos receberão a metade do que emprestaram no dobro de tempo”, afirma.

Quem ganhou?

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Concorrentes da Americanas devem ganhar mercado

Em meio a tanto prejuízo, os únicos que saíram “ganhando” nesta crise são os concorrentes da Americanas, dizem analistas.

Phil Soares, da Órama, diz que a Americanas tem uma grande participação de mercado e vinha crescendo em um ritmo acelerado.

“Agora, não vai conseguir manter esse ritmo, e os outros varejistas terão a chance de tomar para si a participação de mercado da Americanas”, diz.

O mercado tem sinalizado nesta direção ao comprar ações de concorrentes como Magazine Luiza, que viu suas ações se valorizarem 27% entre quarta-feira e segunda-feira.

O preço da ação do Mercado Livre teve um aumento de 20% no mesmo período.

“Já começamos a ver fornecedores, com a perspectiva de não receber da Americanas, aumentarem seu lastro com outros varejistas”, diz Ferrer.

A crise da Americanas deve alterar a competição neste mercado e favorecer outras companhias do varejo.

A Americanas não deve quebrar, diz o analista, mas provavelmente vai diminuir de tamanho e perder consumidores que, por receio de não receber seus produtos, vão comprar de outras empresas.

“Eles terão que arrumar a casa, enquanto isso os competidores vão aproveitar essa oportunidade.”