- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Era um compromisso de muitos naquele 10 de fevereiro de 1984. Políticos como Antônio Carlos Magalhães (1927-2007) e João Durval Carneiro, músicos como Dorival Caymmi (1914-2008), Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia, escritores como Jorge Amado (1912-2001) e artistas plásticos como Calasans Neto (1932-2006) e Mário Cravo Júnior (1923-2018), todos foram ao mesmo endereço no bairro da Federação, centro de Salvador.
Ali, no terreiro do Gantois — ou Ilê Iaomim Axé Iamassê —, comemorava-se o aniversário de 90 anos de uma senhora que, ao longo de sua vida, havia conquistado o respeito e garantido a influência na sociedade baiana do século 20. Maria Escolástica da Conceição Nazaré, mais conhecida como Mãe Menininha do Gantois (1894-1986).
“Mãe Menininha era uma voz de consenso, era a voz que todos ouviam para saber como as coisas deviam ser direcionadas”, contextualiza o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Ela era a ialorixá das ialorixás, aquela diante de quem todas as mais velhas da Bahia se curvavam por tudo o que ela representava, pela própria condição de conciliadora.”
Ialorixá é o nome correto para o popular “mãe de santo”. Filha única de Maria da Glória e Joaquim Assunção, Menininha se tornou a terceira ialorixá da história do Gantois, posto que ocupou por 64 anos — um recorde. Ela assumiu o cargo, sucedendo sua tia-avó Pulquéria Maria da Conceição, em fevereiro de 1922, aos 28 anos.
Menininha era bisneta de Maria Júlia da Conceição Nazareth, fundadora do terreiro do Gantois — criado em 1849. Descendente de escravos, sua família era originalmente da Nigéria. Ela sucedeu Pulquéria em um cenário conturbado do terreiro, já que a natural sucessora, mãe de Menininha, morreu ainda durante o período de luto pela morte da então ialorixá.
“Tornou-se conhecida como uma das maiores e mais renomadas ialorixás da história do candomblé”, comenta o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP.
“Ela é muito celebrada até hoje, foi mãe de santo de diversos artistas, políticos… As ialorixás baianas, todas elas, têm uma história de luta política muito grande. Por meio das relações que elas foram tecendo com as pessoas das artes e da política, elas também iam garantindo a sobrevivência do candomblé”, contextualiza o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo, e membro-fundador do Coletivo Navalha.
Foi um percurso de resistência e de alianças, o de Menininha. Quando ela assumiu o cargo, teve de enfrentar o preconceito e a discriminação às religiões de matriz africanas. “Ela atravessou o processo de perseguição”, ressalta Eugênio. “Não à toa, se dizia católica. Ela sabia que se dizer católica era uma estratégia de sobrevivência.”
Devota de Santa Escolástica, de quem emprestava o nome, frequentou missas até o fim da vida. Foi pioneira também nesse sentido, garantindo o direito, junto aos religiosos católicos da Bahia, de participar da igreja vestindo os trajes típicos do candomblé.
Mãe Menininha acabou incorporando um peso sociopolítico tão importante que, com o passar do tempo, autoridades políticas, artistas e esportistas costumavam procurá-la antes de tomar grandes decisões. Queriam seus conselhos, queriam sua proteção. Sabiam da influência dela.
Sua casa foi frequentada por músicos como Gilberto Gil, atletas como Pelé, Roberto Dinamite e Djalma Santos, políticos como Luiz Inácio Lula da Silva, Paulo Maluf, Adhemar de Barros (1901-1969), Getúlio Vargas (1882-1954), João Goulart (1919-1976) e João Baptista Figueiredo (1918-1999), além dos nomes já citados no início desta reportagem.
Em meio a articulações, à medida que reforçava seu papel de respeito e sua posição de carisma, ela teve um papel importante na inserção da religião do candomblé na sociedade brasileira.
“Assumindo a direção do Gantois muito jovem, aos 28 anos, Mãe Menininha […] foi mãe, mulher, líder religiosa, tornando-se uma verdadeira instituição do Brasil”, afirma sua biografia oficial, divulgada pela administração do terreiro.
“Deixou ensinamentos de grande valia para a perpetuação da religiosidade de matriz africana na Bahia, com uma forte contribuição ao professar a fé, dando lições de poder, humildade e respeito.”
“A sua história se confunde com a própria história do candomblé no Brasil, pelo fato de ser oriunda de família de linhagem nobre africana, uma das responsáveis pela implantação do candomblé na Bahia”, prossegue a nota biográfica.
Quando ela assumiu o posto, já era casada com o advogado Álvaro MacDowell de Oliveira, com quem teve duas filhas, Cleusa (1923-1998) — que a sucedeu no comando do terreiro — e Carmem, a atual ialorixá, hoje com 93 anos.
Permaneceu casada, mas decidiu que o marido não poderia morar no Gantois. O advogado sempre foi um apoiador do candomblé e, mesmo sem nunca ocupar um cargo religioso, atuou nas lutas empreendidas por Menininha.
Isso principalmente por conta da Lei de Jogos e Costumes, de 1930. A legislação passou a enquadrar o as práticas religiosas africanas e foi, durante muito tempo, a pedra no sapato de Menininha. A lei acabava fazendo com que batidas policiais ocorressem em terreiros, apreendendo objetos e, em alguns casos, até mesmo agredindo sacerdotes e participantes.
A situação só melhorou em 1976, quando o então governador baiano Roberto Santos (1926-2021) sancionou decreto liberando as casas de candomblé de seguirem o mesmo licenciamento previsto pela legislação de “jogos, costumes e diversões públicas”. A pressão do Gantois, finalmente, surtira efeito.
Eugênio acredita que a chave para o sucesso foi o fato de Menininha promover “o diálogo interreligioso”. “Ela se dizia católica, assumia essa dupla pertença, mas isso tem de ser compreendido dentro de um mundo maior. O candomblé, para ela, era a vivência, a cultura, o ethos… E ela viveu isso no sentido mais amplo”, analisa. “Ao mesmo tempo, circulava nos bastidores da política.”
“Ela não gosta de aparecer, mas sabia o momento certo de fazer a coisa certa, com toda a discrição”, acrescenta ele. “Soube encontrar aliados no poder para manter os benefícios para sua comunidade, isso por força do seu carisma, seu poder de encantamento.”
Mulheres sacerdotisas
O bem-sucedido papel de Menininha à frente do terreiro ilustra o fato de que, no Brasil, é comum que mulheres assumam papéis de comando em religiões de matriz africana. Segundo o sociólogo Eugênio, isso não é inerente desses segmentos, mas uma característica pontual dessas manifestações que passaram a ocorrer “na diáspora”, ou seja, por africanos na América e seus descendentes.
“A história do Gantois é uma história de mulheres valorosas, muito fortes, que de alguma forma dialoga com o processo de escravidão e do que foi a presença dessas mulheres, a força dessas mulheres no processo de escravidão”, ressalta o sociólogo.
Para começar, como lembra o pesquisador, essas mulheres sempre tiveram — e têm — outras atividades profissionais além do terreiro em si. “Há uma ligação direta com o processo de ganho [que ocorria na escravidão]”, pontua. Mãe Menininha trabalhou como quituteira e costureira ao longo da vida. “Modista e fina doceira”, como diz sua sinopse biográfica oficial.
“Elas sempre tiveram outras atividades associadas à atividade principal, o terreiro, e uma coisa nunca impediu a outra. As coisas dialogam tranquilamente”, diz Eugênio. “Mãe Menininha tinha essa coisa do ganho e acho que de certa forma as mulheres do terreiro da Bahia, do ganho, são as grandes empreendedoras do Brasil.”
Mas o ponto que explica porque muitas mulheres acabaram se tornando sacerdotisas de religiões afro-brasileiras está na própria lógica da organização do trabalho durante o período escravocrata. “Muitas mulheres assumiam tarefas na cozinha, próximo à casa grande, e muitas tinham o benefício da alforria antes”, esclarece. Essa rotina teria dado a elas mais condições para assumirem o serviço religioso.
Na cultura popular
Como não podia deixar de ser, dado extenso rol de amizades com artistas, Mãe Meninha foi homenageada pela cultura popular. Em 1972, Dorival Caymmi lançou Oração de Mãe Menininha, depois regravada em vozes como de Maria Bethânia e Gal Costa.
“A beleza do mundo, hein? Tá no Gantois. E a mão da doçura, hein? Tá no Gantois. O consolo da gente, hein? Tá no Gantois”, dizem os versos.
Bahia, Minha Preta, composição feita em 1993 por Caetano Veloso, conhecida na voz de Gal Costa, também traz referências a Menininha do Gantois.
Em 1976, ela foi homenageada no carnaval carioca com o enredo da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel — de autoria de Arlindo Rodrigues (1931-1987), o samba foi interpretado por Elza Soares (1930-2022). Cinco anos atrás, foi a vez da paulistana Vai-Vai homenagear Mãe Menininha.
Jorge Amado, na obra Bahia de Todos-os-Santos, escreveu que “Mãe Menininha está acima de toda e qualquer divergência de ordem política, econômica ou religiosa”. “É a ialorixá de todo o povo da Bahia, sua mão se estende protetora sobre a cidade. Não se trata nem de misticismo nem de folclore e sim de uma realidade do mistério baiano”, registrou.
O apelido Menininha
Não há um consenso sobre a explicação do apelido da famosa ialorixá. “Nem mesmo Mãe Menininha sabia dizer quando este apelido lhe foi dado. Dizia ela que este nome a acompanhava desde criança e assim era chamada por sua mãe, tia e avó”, comenta o pesquisador David Dias.
Se já era uma apelido anterior ao cargo, o mesmo acabou reforçado pelo fato de ela ter assumido o terreiro tão jovem — uma “menininha” em um contexto em que as sacerdotisas costumam ser anciãs.
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