- Author, Mônica Manir
- Role, De São Paulo para a BBC Brasil
Em 16 de junho, José Pereira do Nascimento, o “Zé Pedreiro”, acordou agitado. O enteado contou que ele dava voltas na casa, sentava, dava voltas de novo.
Silvana Ribeiro Cabrini, sua mulher, percebeu a inquietação do marido quando chegou do serviço.
Há oito anos, ela trabalha das 18h às 6h como cuidadora em um abrigo de idosos e sabe bem como o Alzheimer pode causar esses momentos de atribulação. Com seu marido, não era diferente.
Silvana tinha consulta médica às 7h30 – sua diabetes estava descontrolada – e trocou rapidamente a roupa de Zé para irem juntos.
Botou nele a calça jeans escura, uma blusa cinza de manga comprida, o tênis azul e uma malha de lã por cima. “Zé é friorento.”
Foram e voltaram rápido. Em Cordeirópolis, cidade do interior paulista a 158 km da capital, tudo é relativamente perto.
Comeram o almoço requentado, e o dia transcorreu normalmente, entre os cuidados com a enxuta casa de dois quartos, a vira-lata Luana e os 18 gatos que Silvana pegou para criar.
Por volta das 17h, Zé convocou a mulher: “Vamo, fia, vamo embora, vamo pra casa”.
“Fio, faz quatro anos que a gente mora aqui, esta é a nossa casa”, respondeu Silvana.
“Mas a Silvana não tá aqui”, retrucou ele.
“Eu sou a Silvana, sua mulher”, rebateu ela, na costumeira ladainha de fazê-lo se lembrar de sua existência.
“Silvana é magra, e você é gordinha”, respondeu Zé.
A mulher deu ao marido o costumeiro remédio para dormir. Tomou também o seu calmante, indicado pelo médico naquele dia, já que o estresse contribuía para fazer desandar a diabetes.
Fechou o portão da casa com o cadeado e tirou a chave. Trancou a porta da sala com outra chave, mas a deixou na fechadura, como sempre fazia.
Já no quarto, Zé não quis colocar o pijama. Andava de um lado para o outro, pegava o chinelo da mulher e o mostrava para ela. Abria e fechava a primeira gaveta da cômoda várias vezes.
Silvana capotou de sono, crente de que Zé se deitaria do seu lado. Eram 20 anos de convívio, os últimos três com o Alzheimer entre eles. Seria mais uma noite assim.
Às 4h30, ela passou a mão do lado direito do colchão e não sentiu o marido.
Levantou correndo, chamando-o pela casa. Descobriu a porta da sala aberta e o portão encostado, mas sem o cadeado.
Recordou-se dos últimos cuidados na noite anterior, e um flash de memória lhe deu um frio na espinha: tinha deixado a chave do cadeado sobre a cômoda do quarto.
Ela encontrou a chave um pouco mais à frente, na calçada da rua onde moram.
O cadeado foi com o Zé, que, prestes a fazer 76 anos, não havia sido encontrado até a publicação desta reportagem.
Restou o boletim de ocorrência feito por Silvana, no qual consta que “José tem problemas de saúde (Alzheimer)”.
Ainda assim, Zé Pedreiro entrou para mais uma estatística “inexistente” no Brasil: a de pessoas com Alzheimer que se perdem e não voltam para casa.
Fugas frequentes
“Essas ‘fugas’ acontecem com certa frequência, mas não temos números sobre esse assunto especificamente, é muito empírico, vem da nossa experiência no dia-a-dia dos atendimentos”, diz Aline Martins Gratão, enfermeira e professora de Gerontologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Ela é uma das coordenadoras do iSupport-Brasil, plataforma do Ministério da Saúde criada em conjunto pela UFSCar, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade de Brasília (UnB).
A iniciativa auxilia o cuidador de pessoa com demência a entender a doença, lidar com os desafios da mudança de comportamento, prestar um bom cuidado e cuidar de si mesmo.
“Sabemos que os familiares usam as redes sociais para tentar localizar a pessoa que se perdeu. Às vezes dá certo, às vezes não”, diz Gratão.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou, por meio de sua assessoria, não dispor de dados computados sobre desaparecidos que apresentem demência.
Em 2017, Ana Lúcia Lopes Miranda, então delegada na 4ª Delegacia de Pessoas Desaparecidas, afirmou no site do governo do Estado de São Paulo que registrava, em média, aproximadamente 80 desaparecimentos mensais de pessoas com idade acima de 65 anos – e que o principal motivo era a desorientação decorrente de doenças como o Alzheimer.
Fábio Porto, professor de Neurologia da Universidade São Camilo e diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) regional São Paulo, aponta que há muitas pesquisas sobre a Doença de Alzheimer, mas não conhece nenhuma que contabilize aqueles que se perdem de casa em função da doença, com ou sem volta ao lar no final.
Porto explica que, se no estágio leve da doença há problemas na memória recente, a partir do estágio moderado a falta de orientação e a busca por uma moradia do passado são sintomas clássicos.
“Frequentemente acontece alguma desorientação no tempo e no espaço, porque a pessoa não reconhece mais marcos que a orientam. Junte-se a isso a perambulação, o andar a esmo sem razão específica, e está criada uma combinação muito propensa para a pessoa se perder”, diz Porto.
Não raro essa perambulação vem acompanhada de agitação. “A gente sempre associa agitação com agressividade física ou verbal, mas um dos conceitos de agitação é um aumento da atividade motora espontânea”, afirma.
Inquieta, a pessoa sai andando, perambulando, vagando.
De acordo com a Alzheimer’s Association, seis em cada dez pessoas com demência vai andar a esmo, confundir-se com sua localização ou se perder de fato pelo menos uma vez, se não repetidamente.
Apesar de comum, o perambular pode botar a vida da pessoa em perigo, sem falar na angústia que o desaparecimento provoca nos cuidadores.
No último ano, Zé Pedreiro já havia andado sem destino duas vezes por Cordeirópolis. Na primeira vez, com parte do dinheiro da aposentadoria em mãos, disse que iria comprar pão doce na padaria.
Silvana pediu que ele esperasse até que ela acabasse de lavar a roupa para irem juntos. Quando se deu conta, ele já tinha saído.
O marido voltou para casa numa picape cujo motorista percebeu a desorientação. Na época, Zé soube dizer o próprio endereço, ainda que já bem distante de casa.
Na segunda vez, uma de suas filhas (Zé tem três filhas e dois filhos do primeiro casamento) soube pela cunhada que ele estava vagando com a cachorra Luana na entrada do bairro Jardim Progresso, longe de casa.
“Na verdade, a Luana é quem carregava o Zé, porque ela estava amarrada ao cós da calça dele”, lembra Silvana.
O pedreiro se recusou a entrar no carro da moça com a Luana. Silvana teve de buscar os dois.
Da terceira vez, a do atual desaparecimento, um homem teria dado carona para Zé, a pedido dele, até o velório de Santa Gertrudes, cidade encostada em Cordeirópolis. Dali, a família não teve mais pista concreta de seu paradeiro.
Uma cachorra também foi personagem central do desaparecimento de outro idoso com Alzheimer, um morador de São Francisco do Pará, a cerca de 85 km de Belém.
Jonivaldo Nascimento Pereira, de 85 anos, se perdeu no dia 3 de fevereiro na Granja Marathon, que fica na zona rural.
A família procurou a polícia, fez boletim de ocorrência e vasculhou a área por madrugadas frias até que, seis dias depois, o latido de uma cachorra caramelo alertou sobre a presença dele no meio de um matagal.
Pereira estava bastante debilitado quando foi resgatado pelos bombeiros.
Nas redes socias, o filho Ediel Brito Stern agradecia aos vizinhos por deixarem seu conforto para estar ao lado da família, e requisitava a Deus que guardasse a cachorrinha, “usada pelo Espírito Santo como uma luz”.
Sem bater de frente
O número de pessoas atingidas por demências no Brasil, está aumentando.
Segundo levantamento coordenado pela psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Unifesp, que será apresentado em setembro ao Ministério da Saúde, ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência.
A previsão é que chegue a 2,78 milhões no final desta década e a 5,5 milhões em 2050.
Mais de 70% delas não dispõem de diagnóstico, o que bloqueia um tratamento adequado para controlar alterações de memória, problemas cognitivos e mudanças de comportamento que surgem à medida que a doença avança.
Descrita pela primeira vez em 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer, a Doença de Alzheimer é a mais conhecida das demências. Representa até 70% dos casos em países desenvolvidos e algo entre 50% e 60% no Brasil.
É a partir desses números que a ABRAz anuncia a sexta edição da Jornada Paulista de Alzheimer, que será realizada no dia 2 de setembro abrindo o Setembro Lilás, mês de conscientização para a doença.
A Jornada terá uma sala dedicada a profissionais de saúde, familiares e cuidadores, com foco na organização de ambientes para pessoas com demência pensando em conforto, harmonia e o máximo possível de autonomia.
Aline Gratão diz que ajuda muito os cuidadores de alguém com Alzheimer o conhecimento sobre os estágios da doença e sobre estratégias possíveis para melhorar o convívio e garantir a segurança da pessoa.
“Muitas vezes o desconhecimento faz com o que o cuidador bata de frente, discuta, diga que a pessoa com Alzheimer insiste numa coisa de pirraça, que quer maltratar a família, mas isso só vai gerar mais agitação para ambas as partes”, diz.
Uma das orientações é mudar o foco, dizer que seria melhor tomar um banho ou comer algo antes, dar uma volta de carro e avisar depois que chegaram em casa.
Quanto à agitação, sugere-se identificar o período do dia em que isso costuma acontecer com mais frequência e planejar atividades e exercícios que possam reduzir a ansiedade.
Evitar lugares movimentados e com muitos estímulos, como shoppings e grandes supermercados, também faz parte da prevenção.
Sobre a segurança, a pessoa com Alzheimer deve ter sempre alguém vigilante por perto.
A Alzheimer’s Association indica ainda luzes noturnas pela casa, campainha sonora nas portas que anuncie a passagem por elas, rótulos nas entradas de cada cômodo que expliquem sua finalidade e travas altas ou baixas nas portas, num nível fora da linha de visão da pessoa.
Outra dica primordial: esconder chaves, carteiras e agasalhos que possam desencadear a vontade de sair.
Vizinhança a par de tudo
Avisar vizinhos e amigos sobre a situação é mais uma medida valiosa.
Quando tinha 79 anos, um ano depois de ser diagnosticado com a Alzheimer, Osvaldo Pimenta de Oliveira saiu de casa e desapareceu por algumas horas.
Foi encontrado por um amigo de seu filho perambulando pelo bairro onde a família sempre morou, na cidade paulista de Franca, a cerca de 344 km da capital.
“Foi algo que nos assustou, eu e meus irmãos não tínhamos o conhecimento de que isso podia acontecer”, diz Maria Auxiliadora de Oliveira Pereira, filha de Osvaldo.
A partir dali, tiraram seu acesso à chave de casa e se organizaram para que o pai e a mãe, Maria Divina de Oliveira, também diagnosticada com Alzheimer, fossem morar com Maria Auxiliadora algum tempo depois.
“Não foi fácil, porque meu pai insistia, normalmente ao entardecer, em voltar para casa”, lembra ela.
Em 2019, ano da morte dos pais, o marido de Maria Auxiliadora, Silvino Gonçalves Pereira, então com 68 anos, também passou a apresentar sinais de falta de memória, como esquecer completamente onde havia estacionado o carro. Exames confirmaram as primeiras evidências do Alzheimer.
“Hoje, ele depende completamente de mim para tomar banho, para se vestir, para colocar os alimentos no prato, porque ele confunde os alimentos”, afirma Maria Auxiliadora.
Mesmo sob total vigilância, Silvino teve um dia acesso à chave da porta principal de casa e foi encontrado pela sua mulher a vários quarteirões de distância, parado em uma das esquinas da avenida em que fica o supermercado onde Maria tinha acabado de fazer compras.
Lista do passado
Diante da possibilidade de algum parente com Alzheimer se perder, a recomendação é que se tenha à mão uma lista de lugares e pessoas do passado dessa pessoa potencialmente revisitáveis, como a casa da mãe, a igreja frequentada, o restaurante preferido, a manicure ou o barbeiro da vida toda.
Além disso, é bom pedir a vizinhos e amigos entrem em contato com a família caso vejam a pessoa vagando na rua está na lista, assim como manter uma foto atual e em close à mão, para entregar a polícia, se for o caso.
O GPS é outro recurso. Luciane Midory Sakuma e o irmão, Rhenan, contrataram uma empresa para monitorar a mãe, Iracema Sizuko Gushi Sakuma, de 72 anos, diagnosticada há 7 anos com a doença. O intuito era deixar Iracema independente, mas sob vigilância.
Na bolsinha inseparável de dinheiro dela, colocaram uma carteira de identificação com seu nome, endereço, o problema de saúde e o contato de Luciane, também gravado no objeto.
“Cheguei a comprar uma correntinha com esses dados, mas ela a tirava na hora do banho e deixava pendurada no box”, diz Luciane.
O melhor recurso, porém, foi a rede de apoio da redondeza. “Meu tio avisou os vizinhos, os funcionários do supermercado, o pessoal da padaria, lugares por onde ela passava, para que, se a vissem vagando na rua, era para acompanhá-la até em casa, mas isso felizmente nunca aconteceu.”
O que aconteceu foi Iracema ter dado dinheiro a mais nas compras, mas, segundo a filha, as pessoas sempre devolviam o valor. “Ela sempre foi muito querida e carismática.”
Alerta prateado
Nos Estados Unidos, existe um sistema de notificação público chamado Silver Alert (alerta prateado, em inglês), que transmite informações sobre idosos desaparecidos que tenham Alzheimer ou outra demência a fim de ajudar na localização deles.
Modelado a partir do Amber Alert (alerta âmbar, em inglês), para o rapto de criança, o Silver Alert usa uma gama de meios de comunicação, como estações de rádio e de TV, afora mensagens nas estradas voltadas a motoristas, para alertar sobre a situação.
Cuidadores de idosos desaparecidos no Brasil se sentem, em geral, sem recursos quanto a isso.
Depois de fazer o boletim de ocorrência, Silvana e filhas de José Pereira do Nascimento fizeram cartazes que nem puderam afixar em rodoviárias e pontos de ônibus de Cordeirópolis e cidades próximas, porque não há autorização pública para isso.
Silvana cogitou contratar um funcionário que anuncia promoções no supermercado para intercalar o preço dos produtos com o desaparecimento do marido. Trotes não faltaram, o que desgasta ainda mais a família.
“No país, ainda não temos políticas públicas voltadas às demências”, avalia Aline Gratão.
“Se forem bem estabelecidas e aprovadas, a gente consegue traçar caminhos e unir forças, inclusive em torno da segurança, mas os trabalhos que fazemos são ainda muito iniciais quando comparados aos países desenvolvidos.”
Silvana manteve o ambiente do jeitinho que José gostava. Tem consigo que “Deus vai abrir a mente dele”, que ele vai lembrar que mora em Cordeirópolis e que sua mulher se chama Silvana ou Fia.
Tanto que nunca mais passou cadeado no portão. “Ele vai voltar e entrar.”
Fonte: BBC
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