- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @marianaalvim
Em 1974, em plena ditadura militar no Brasil, a carta de uma mãe à professora do seu filho chegou às mãos do Exército.
“Aproveito para lhe pedir também por consciência religiosa que isente o Fábio de qualquer participação em festas que sejam alusivas ao dia da Pátria. Saudação à Bandeira e Hino Nacional, enfim, tudo que for idolatria”, dizia a mãe.
Ela era seguidora das Testemunhas de Jeová, e sua carta foi incluída em um dossiê sobre esse grupo cristão que foi alvo de vários documentos, reuniões e até infiltrações de agentes do regime militar.
Na prática, desde o início do século 20, não fazer “parte deste mundo” tem se traduzido, para esses fiéis, na abstenção em eleições, na recusa ao alistamento militar e na não idolatria a símbolos nacionais — esses dois últimos exemplos se revelaram “pedras nos coturnos” dos militares brasileiros na ditadura.
“A recusa da participação a qualquer homenagem à Pátria e aos Símbolos Nacionais é uma infiltração negativa e insidiosa nos alicerces do sentimento cívico-patriótico e com repercussões na segurança nacional”, conclui o documento de 1974 do Ministério do Exército sobre o grupo religioso que incluía a carta daquela mãe.
Em acervos públicos como o do Arquivo Nacional, há dezenas de documentos antes confidenciais da ditadura sobre as Testemunhas de Jeová, boa parte deles escritos na década de 1970 e focados no Estado de São Paulo e na região Sul.
Para o historiador Grimaldo Zachariadhes, coordenador do Núcleo de Estudos Sobre o Regime Militar (NERM), a perseguição ao grupo religioso mostra a “amplitude” da repressão durante a ditadura — mesmo que, nesse caso específico, ela não se refletisse em tortura e mortes.
“A direita e os setores conservadores também foram vítimas da ditadura militar. As Testemunhas de Jeová são um caso emblemático disso”, aponta Zachariadhes, doutor em história pela Fundação Getulio Vargas (FGV).
“Eles sofreram perseguição por justamente serem conservadores ao extremo. Eles são mais conservadores do que os setores que apoiavam a ditadura.”
Zachariadhes conta que, no período, as Testemunhas de Jeová foram vigiadas, seus líderes foram interrogados e seus filhos passaram por constrangimentos nas escolas, às vezes até mesmo chegando a ter a matrícula impedida.
Tensão nas escolas
Os documentos da ditadura revelam que um dos pontos mais sensíveis entre o regime e a religião estava nas escolas.
Alguns diretores de colégios e burocratas da educação registraram esse tipo de conflito.
Em 1970, o fato de três crianças não terem usado fitinhas verde-amarelas durante a Semana da Pátria (1º a 7 de setembro) fez uma diretora enviar um relatório que chegou ao Ministério do Exército com os nomes desses alunos.
O documento lista também os nomes de dois estudantes que haviam faltado às aulas naquela semana. A localidade da escola não está identificada.
“Esta diretoria lamentou muitíssimo haver uma organização religiosa, como ‘Testemunhas de Jeová’, que confunde com idolatria veneração e respeito incondicional pelo nosso Torrão Natal [pátria]”, escreveu a diretora.
Em uma carta enviada em 1971 ao delegado da 4ª Junta de Alistamento Militar, o diretor de uma escola em Santo André (SP) pede orientação sobre casos de pais que estavam impedindo os filhos de participarem de “atividades cívicas”.
Ele sugere o “enquadramento” dos pais sob a Lei de Segurança Nacional. Na carta, o diretor diz que sua escola vinha sendo “forçada à aplicação de todas as penalidades previstas em lei aos alunos desobedientes incorrigíveis”, como “advertência, repreensão, suspensão e […] eliminação”.
No mesmo ano, um informe do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) relata outro episódio nas escolas primárias: além dos conflitos entre famílias de Testemunhas de Jeová e professores, os filhos desses religiosos estariam zombando dos estudantes que cumpriam as atividades patrióticas.
“Chega a ponto dessas crianças ridicularizarem aquelas que prestam o culto à Bandeira, ao Hino Nacional e demais símbolos”, diz o informe.
Em 1974, um documento do Ministério do Exército apresentou o receio de que a postura das Testemunhas de Jeová poderia levar a outros alunos “maus exemplos, contrários aos interesses nacionais, podendo, inclusive, criar um grupo de antipatriotas”.
O Anuário das Testemunhas de Jeová de 1974, enviado pela organização à BBC News Brasil, traz também relatos de casos de expulsões de alunos Testemunhas de Jeová das escolas a partir de 1969.
Mas o documento interno afirma que, após negociações e até uma reunião no Ministério da Educação, os casos de expulsões começaram a diminuir a partir de 1971.
Grimaldo Zachariadhes afirma que a ditadura brasileira tinha bastante capilaridade, o que chegava também às escolas, principalmente as públicas.
“Era muito comum nas escolas ter algum militar participando, tomando conta, fazendo vigia”, diz.
“A rede de montada pelos órgãos de informação era muito eficiente e ampla. Tinha desde funcionários mais diretos a pessoas que concordavam [com o regime] e delatavam”.
Para o historiador, esse exemplo demonstra o clima de “paranoia” gerado pelo regime.
“Os militares no Brasil não foram tão enfáticos na violência como no Chile e na Argentina, mas eles usaram muito a psicologia do medo. Isso acaba criando uma paranoia que é muito eficiente”, afirma.
“E nossa ditadura foi extremamente burocrática. Você não tem na América do Sul nenhuma outra ditadura que tenha tanta documentação quanto os nossos órgãos de informação.”
Outra questão que despertava a preocupação do regime era a recusa ao alistamento militar.
Alguns documentos oficiais reconhecem que, de acordo com a Constituição, cidadãos podiam ser eximidos do serviço militar por conta de convicções religiosas, mas os militares demonstravam temor com a dimensão que esse tipo de recusa poderia tomar.
Um relatório de 1972 do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em Santos (SP) avaliou que essa recusa das Testemunhas de Jeová serviria “de ótimo e maravilhoso argumento para o ingresso de milhares de adeptos” ao grupo religioso, pois “nenhuma mãe gostaria de ver seu filho pegar em armas para matar os seus irmãos e muito menos morrer numa guerra”.
De acordo com a assessoria de imprensa das Testemunhas de Jeová no Brasil, o governo do marechal Arthur da Costa e Silva publicou em 1967 um decreto com instruções detalhadas para a isenção do serviço militar por convicções religiosas. A BBC News Brasil não conseguiu acessar este documento.
Entretanto, era comum que, diante dessa recusa, os jovens perdessem seus direitos políticos. Embora fosse um período ditatorial, havia eleições para alguns cargos, apesar de fortemente controladas pelos militares.
“Essa situação perdurou até o fim do regime militar”, disse a representação das Testemunhas de Jeová sobre a cassação dos direitos políticos.
Embora alguns documentos da época citem o risco de infiltração por meio de uma organização religiosa estrangeira, cuja sede estava nos Estados Unidos, essa não se mostrou a maior das preocupações dos militares brasileiros com as Testemunhas de Jeová.
Agente conta ter se infiltrado como ‘verdadeiro adepto’
O autor desse relatório, não identificado no documento, também relata ter ingressado na comunidade das Testemunhas de Jeová como “verdadeiro adepto, tomando parte ativa em suas reuniões públicas e particulares”.
O agente afirma ter observado muitas pessoas humildes entre os adeptos, o que as faria de “instrumento para sustentar uma doutrina esquisita, que procura destruir o senso de brasilidade dos nossos patrícios”.
Há vários documentos escritos por setores militares em diferentes partes do país contando a história das Testemunhas de Jeová e reproduzindo publicações do grupo. Outros relatam o monitoramento da organização e de encontros locais.
Um informe registrado pelo Ministério da Aeronáutica, de 1971, por exemplo, afirma que “o ritual ‘Testemunhas de Jeová’, mais conhecidos como ‘Crentes’, está infestando o interior de São Paulo”.
Já um pedido de busca da Superintendência da Polícia Federal em Santa Catarina solicitou, em 1978, que fossem investigados “quais os líderes da seita Testemunhas de Jeová na área deste órgão e qual seu verdadeiro interesse em alienar os jovens”.
O documento pede também a apuração de fatos que pudessem possibilitar a “decretação de ilegalidade da citada seita”.
De acordo com os historiadores Bruna Hanime e Grimaldo Zachariadhes, não há notícias de que as Testemunhas de Jeová tenham de fato se tornado proscritas, ou seja, ilegais no Brasil durante a ditadura civil-militar — algo que aconteceu com o grupo durante outro período autoritário no Brasil, o Estado Novo.
Também não há registros conhecidos de Testemunhas de Jeová que tenham sido torturadas ou mortas na ditadura.
Em relação a prisões, há notícias de que ao menos detenções temporárias aconteceram.
O advogado Manoel Martins, então com 88 anos, relatou em 2012 à Comissão Nacional da Verdade ter sido preso com cerca de 1,8 mil pessoas em um estádio em Niterói (RJ) logo no início da ditadura, em abril de 1964.
Ele relatou que, por 18 dias, o estádio foi o “terror implantado”, e os presos precisavam ir ao banheiro acompanhados “por um soldado com metralhadora”.
Além de operários, professores e camponeses, o advogado relatou que entre os presos em Niterói estavam também fiéis das Testemunhas de Jeová.
Resistência?
Em 1971, os militares receberam um documento de três páginas com esclarecimentos por parte da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, o órgão de representação legal das Testemunhas de Jeová no Brasil.
A sociedade assegurou que suas funções eram “essencialmente religiosas” e “caritativas”.
“A Sociedade Tôrre de Vigia não proíbe que certas pessoas, quer das Testemunhas de Jeová, quer não, participem em certos atos cívicos”, disse a organização na época, apontando apenas “esclarecer” o que está nas “Escrituras Sagradas”.
“Assim sendo, é fácil compreender que a Sociedade não proíbe, nem pode proibir alguém de cantar o hino nacional, saudar a bandeira ou prestar serviço militar. A decisão sobre êsses assuntos tem que ser pessoal […]”, continua.
Apesar dessa colocação, a historiadora Bruna Hanime pontua que, tanto no passado quanto no presente, ainda que a organização afirme que seus adeptos têm liberdade, a pressão social para que cumpram seus preceitos é forte.
“Se eu falar para você que existe [a liberdade], eu vou estar indo contra pesquisas da antropologia e das ciências da religião que mostram a morte social que é dada a essas pessoas [que não seguem os preceitos”, diz Hanime, que tem vários parentes seguindo a religião, embora ela mesma não seja adepta e nunca tenha sido batizada nessa fé.
O Anuário das Testemunhas de Jeová de 1974 relata que, pelo menos desde 1972, pareceu aumentar o número de líderes religiosos sendo convocados pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) para depor.
“[…] Todas as entrevistas seguiam certo padrão, sendo feitas perguntas sobre a base de nossa posição neutra, por que as Testemunhas de Jeová não cantam o hino nacional nem saúdam a bandeira, e assim por diante”, diz o documento da organização religiosa.
Após esses episódios, a organização pediu audiências com autoridades do SNI, o que pareceu dar certo.
“Ambas audiências resultaram ser informativas e foram conduzidas numa atmosfera amigável. Acha-se que as autoridades em todos os níveis estão melhor familiarizadas com as testemunhas de Jeová e com nossa obra e com nossa posição bíblica”, relata o documento de 1974.
Zachariadhes confirma que, com o tempo, a preocupação dos militares com as Testemunhas de Jeová foi se dissipando.
“No final, eles perceberam que não tinha ali nenhum contexto de subversão maior”, aponta o historiador.
Um informe da agência regional de São Paulo do SNI de 1971 já demonstrava essa percepção.
“Tendo-se em vista o conteúdo filosófico da doutrina em questão bem como o fanatismo de que se investem seus cultores fica logicamente afastada a possibilidade de virem os mesmos sofrer infiltrações dos agentes esquerdizantes”, diz o texto.
Para Zachariadhes, no período, as Testemunhas de Jeová demonstraram resistência ao “não abrir mão da fé deles”.
O historiador avalia que o grupo “talvez seja a denominação religiosa mais perseguida no século 20 por ditaduras”.
As Testemunhas de Jeová foram perseguidas no Holocausto, no regime salazarista em Portugal, na ditadura militar argentina e na União Soviética, entre outros episódios.
Hanime explica que a perseguição faz há muito tempo parte da trajetória desse grupo cristão — e, na verdade, faz parte da própria formação do fiel.
“As Testemunhas de Jeová olham a questão da perseguição como um elemento que vai legitimar que elas são a verdadeira religião”, diz a historiadora, que no mestrado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) fez uma pesquisa sobre o grupo religioso.
“Eles falam que o fim dos tempos vai ser consagrado a partir do momento que houver de fato uma proibição total da divulgação das ideias religiosas do mundo inteiro”, explica.
Uma característica central dessa religião é a crença de que o fim do mundo está próximo, a partir de um entendimento bastante literal do livro do Apocalipse, da Bíblia.
“Eles são preparados desde sempre a terem essa postura de se sacrificar pela religião, de continuar a pregação de qualquer forma que for necessária. Não existe no idioma Testemunha de Jeová você ficar sem pregar de casa em casa”, exemplifica a pesquisadora.
Hanime afirma que, nesses vários episódios de repressão, as Testemunhas de Jeová atuaram clandestinamente.
De acordo com a historiadora, durante o Estado Novo, as Testemunhas de Jeová foram declaradas ilegais entre 1940-1947 e, novamente, em 1949 — só voltando a ter suas atividades aceitas e reconhecidas oficialmente em 1957 por decisão do então presidente Juscelino Kubitschek.
Segundo a organização religiosa, em 1939, 20 pessoas foram presas em São Paulo, onde ficaram detidas por um dia no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS). Elas foram acusadas de perturbar a ordem pública ao divulgar folhetos dizendo que o governo de Deus era a única solução para a humanidade.
“A gente vê que eles [no Estado Novo] vão olhar as Testemunhas de Jeová como um corpo alienígena norte-americano infiltrado no Brasil. É um grupo que não vai se submeter ao Estado forte, que não se submete aos governos civis e que tem um poder distribuição de impressos muito forte”, aponta Hanime.
“Isso é visto como uma ameaça por parte não só do governo brasileiro, mas de muitos outros países.”
Mas a historiadora afirma que, quando sua fé não é ameaçada, as Testemunhas de Jeová são “discretas”.
“Eles não têm uma postura de instigar conflitos. Eles procuram obedecer à ordem vigente, no sentido de ordem pública, desde que não cerceiem as liberdades deles em questão de pregação”, aponta.
Para ela, de fato as Testemunhas de Jeová são neutras na política, o que é demonstrado pela abstenção nas eleições e pela ausência de seus líderes em entrevistas para a imprensa, em debates públicos e na própria política — ela diz ser “impossível” imaginar um membro do clero se candidatando para um cargo eletivo.
“Qualquer associação com direita ou esquerda é totalmente mal vista, por conta justamente dessa política de não fazer parte do mundo”, explica Hanime.
Entretanto, isso não quer dizer que esses religiosos estejam completamente alheios ao resto do mundo. A pesquisadora exemplifica isso com a aversão que a denominação demonstrou à internet nos anos 2000 e com a conhecida rejeição a transfusões de sangue.
Hanime reconhece que as Testemunhas de Jeová são também conservadoras nos costumes, opondo-se, por exemplo, ao casamento homossexual e demonstrando desconfiança do ambiente universitário.
“Elas não adotam esse discurso muito escancarado de ódio às minorias, a questões de diversidade”, diz, comparando com alguns pastores de igrejas evangélicas que participam ativamente da política.
“Eles não apoiam, olham como sinal dos últimos tempos [a abertura à diversidade sexual]. Mas esse discurso raivoso não é tão presente assim”, completa a historiadora.
Em nota, a assessoria de imprensa das Testemunhas de Jeová afirma que elas “respeitam e cooperam com as autoridades”, mas “não tomam qualquer partido em movimentos separatistas, protestos, conflitos civis, campanhas políticas ou ações que visam influenciar ou mudar governos”.
“Elas respeitam os símbolos nacionais e os governos representados por eles. No entanto, creem que somente Deus merece sua devoção sagrada”, continua.
“Além da neutralidade política, as Testemunhas de Jeová não participam em guerras porque desejam aplicar a advertência bíblica de ‘não aprender mais a guerra’ (Isaías 2:4) Elas também querem seguir o mandamento de Jesus: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo'”, completa a organização religiosa.
Fonte: BBC
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