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Mulheres em frente à primeira clínica de controle da natalidade dos EUA, em Nova York, em 1916

  • Author, Alessandra Corrêa
  • Role, De Washington para a BBC News Brasil

Uma lei aprovada há 150 anos e por décadas caída no esquecimento está no centro de uma disputa judicial que pode definir o acesso ao aborto nos Estados Unidos.

A chamada Lei Comstock, aprovada pelo Congresso americano em 1873, classifica como crime federal enviar ou entregar, tanto pelo correio quanto por outros serviços de transporte, qualquer material considerado obsceno.

Entre vários itens proibidos, a lei menciona especificamente produtos abortivos e para controle de natalidade.

Muitos nos Estados Unidos nunca haviam ouvido falar da lei, que não é aplicada há quase cem anos.

Mas ela continua válida, e foi ressuscitada recentemente em uma ação judicial movida por uma coalizão de grupos antiaborto no Texas, que querem retirar do mercado a pílula abortiva mifepristona, aprovada no país desde 2000.

Essa pílula é tomada em conjunto com outro medicamento, o misoprostol, nos abortos farmacológicos, que são procedimentos sem cirurgia para interromper a gravidez em estágios iniciais.

Mais da metade dos abortos no país são realizados dessa maneira e, desde 2021, é permitido que pacientes com receita médica recebam a mifepristona pelo correio após teleconsulta, sem necessidade de ir a uma clínica.

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Comstock era profundamente religioso e havia lutado na Guerra Civil

Um dos argumentos dos autores da ação no Texas é o de que o envio de pílulas abortivas pelo correio é proibido pela Lei Comstock.

Caso os juízes concordem com essa interpretação, todos os tipos de aborto, não apenas os farmacológicos, poderiam sofrer impacto, já que clínicas em todo o país dependem de instrumentos entregues pelo correio ou por outras empresas para realizar o procedimento.

Desde o ano passado, quando a Suprema Corte, mais alta instância da Justiça americana, derrubou a decisão que garantia o direito constitucional ao aborto, o acesso ao procedimento é regulado por cada Estado, e vários adotaram proibições mesmo em fases iniciais da gestação.

Mas a decisão sobre a Lei Comstock poderia afetar a prática até nos Estados que não têm restrições.

Pornografia e ‘impureza sexual’

Os Estados Unidos ainda estavam se recuperando da Guerra Civil (1861-1865) quando o ativista Anthony Comstock iniciou sua campanha anti-obscenidade e em defesa da moral pública. Profundamente religioso, ele havia lutado naquele conflito ao lado das forças da União.

“Ele ficou alarmado com a quantidade de pornografia que viu nas mãos dos soldados”, diz à BBC News Brasil a historiadora do direito Mary Ziegler, autora de livros sobre a história jurídica do debate sobre o aborto nos Estados Unidos e professora de Direito da Universidade da Califórnia, em Davis.

Com o fim da guerra, Comstock se instalou em Nova York, onde logo ficaria conhecido por seus esforços contra o que via como uma cultura de impureza sexual.

Em 1872, ele recebeu apoio financeiro de nomes importantes da sociedade nova-iorquina para organizar o Comitê para a Supressão do Vício, com a missão de combater a pornografia.

Segundo historiadores, Comstock acreditava ser papel do governo e de ativistas impedir que material ofensivo chegasse ao público, para defender as pessoas de influências nocivas e evitar que caíssem em pecado.

Ele argumentava que uma solução seria proibir que itens do tipo fossem distribuídos pelo correio.

Apesar de já existirem algumas leis que restringiam a importação e o envio de determinados artigos classificados como “obscenos”, Comstock dizia que eram inadequadas, e defendia restrições mais rígidas.

Em seu empenho para convencer o Congresso a aprovar uma nova lei, ele chegou a reunir e exibir aos parlamentares uma coleção de itens que descrevia como “imorais”, incluindo livros, panfletos, imagens, letras de música, brinquedos sexuais e dispositivos usados para aumentar a potência sexual, controle de natalidade ou abortos.

Em 1873, finalmente conseguiu que o Congresso aprovasse a lei federal de sua autoria, proibindo que o Serviço Postal dos Estados Unidos transportasse material obsceno.

Apesar da linguagem vaga para definir o que poderia ser enquadrado como “obscenidade”, a lei era explícita em um ponto: a proibição incluía “qualquer artigo destinado a prevenir a concepção ou a obter um aborto”.

Prisões, processos e suicídios

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Comstock destruiu centenas de toneladas de materiais considerados imorais

O Congresso designou Comstock como inspetor especial do Serviço Postal, com o poder de prender e processar quem fosse descoberto enviando materiais proibidos pela lei.

Auxiliado por uma equipe de censores, ele vasculhava correspondências em busca de infrações.

Com a lei havia sido redigida de forma ampla, seu alcance era muito abrangente, incluindo fotografias e objetos de arte, obras de literatura e teatro, panfletos de educação sexual, livros didáticos de anatomia, informação sobre prevenção de doenças transmitidas sexualmente e até cartas pessoais com conteúdo sugestivo.

Seus alvos incluíam obras de autores quase desconhecidos e também de nomes importantes, como Walt Whitman e James Joyce. Depois que, em 1905, Comstock tentou censurar a peça A profissão da Sra. Warren, seu autor, o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, chegou a cunhar o termo “Comstockery” para descrever uma “oposição excessiva à suposta imoralidade nas artes”.

Comstock confiscou e destruiu centenas de toneladas de materiais considerados imorais e prendeu e processou mais de 4 mil pessoas.

Em 1909, o alcance da lei foi ampliado, abrangendo não apenas o Serviço Postal, mas qualquer transporte comercial de materiais obscenos.

Um dos casos mais notórios de aplicação da lei envolveu Ann Lohman, que era conhecida como Madame Restell e durante décadas foi uma das principais fornecedoras de produtos de controle da natalidade e abortos em Nova York.

Ela era uma das mulheres mais ricas da cidade na década de 1870, e morava em uma mansão na 5ª Avenida, em frente à Catedral de St. Patrick.

Em 1878, fingindo ser um marido em busca de contraceptivos, Comstock conseguiu prender Restell por distribuição do produto. Acredita-se que a prisão tenha levado Restell a cometer suicídio.

“Como era tão ampla, a lei não era aplicada de forma justa”, ressalta Mary Ziegler, da Universidade da Califórnia, ao citar excessos cometidos, como processos contra pessoas que haviam denunciado mortes em abortos ilegais e foram enquadradas simplesmente por mencionar o procedimento.

“Há exemplos em que uma mulher tinha um romance com o marido de outra, e a mulher injustiçada enviava uma carta irritada com isso e acabava sendo processada”, destaca Ziegler.

“Em um dos casos mais ridículos, a sociedade contra o vício em Chicago quase foi processada por enviar pelo correio seu relatório anual (que mencionava atividades consideradas “imorais”).”

Esquecimento e ressurgimento

Logo começou a se formar o que Ziegler descreve como “uma reação muito grande e consistente” à lei, por parte de diferentes grupos, como feministas, ativistas pelo controle da natalidade, sufragistas, escritores, editores, artistas e defensores de liberdades civis.

No início do século 20, pioneiras na defesa dos direitos reprodutivos, como Margaret Sanger e Emma Goldman, lutaram publicamente contra a lei.

Apesar da crescente impopularidade, a Lei Comstock nunca foi revogada. Mas, a partir da década de 1930, diante de avanços na sociedade, a lei recebeu várias emendas, e muitos juízes passaram a mudar sua interpretação e a limitar sua aplicação.

“(Passaram a) permitir o envio de materiais sobre educação sexual, doenças venéreas, controle de natalidade ou aborto que fossem medicinalmente importantes”, ressalta Ziegler.

“E começaram a processar casos envolvendo aborto e contracepção somente quando o procedimento era ilegal por algum outro motivo, como quando era executado por alguém sem licença médica ou qualificação.”

Ao longo das décadas seguintes, a Lei Comstock lentamente caiu no esquecimento e deixou de ser aplicada. No início da década de 1970, o Congresso aprovou uma emenda assegurando o acesso a contraceptivos e, em 1973, a Suprema Corte anunciou sua decisão no caso Roe versus Wade, garantindo o direito constitucional ao aborto em todo o país.

Mas, no ano passado, depois de quase meio século, a Suprema Corte derrubou sua decisão em Roe versus Wade, abrindo caminho para que cada Estado estabeleça suas próprias regras e restrições em relação ao aborto.

Foi nesse cenário que, após décadas sendo encarada como uma relíquia do passado, a Lei Comstock voltou ao centro das atenções nos Estados Unidos.

A antiga lei começou imediatamente a ser invocada por alguns ativistas contrários ao aborto, na expectativa de forçar restrições ao procedimento.

O caso mais notório envolve o processo iniciado em novembro do ano passado no Texas.

Os autores da ação querem revogar a aprovação da mifepristona, e argumentam que a FDA (Food and Drug Administration, agência do governo responsável pelo controle de medicamentos) ignorou preocupações sobre a segurança da pílula abortiva, “não seguiu os protocolos adequados” e falhou na regulamentação desde então.

A FDA e o governo do presidente Joe Biden rejeitam essas alegações, citam estudos que demonstram a segurança da mifepristona e ressaltam que a pílula passa periodicamente por reavaliações.

A posição da defesa é apoiada por especialistas em saúde e por importantes associações médicas do país, como o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas.

Mas o processo do Texas inclui um segundo argumento: o de que o envio de mifepristona pelo correio ou por empresas de transporte infringe a Lei Comstock.

Os autores questionam a interpretação mais limitada da lei adotada nas últimas décadas e argumentam que é explícita a proibição do envio de material usado em abortos, mesmo em Estados sem restrições ao procedimento.

A briga na Justiça

Em abril, um juiz do Texas, Matthew Kacsmaryk, concordou com quase todos os argumentos dos autores da ação, incluindo o de que a Lei Comstock proíbe o envio da mifepristona pelo correio.

O juiz determinou que a FDA violou a lei na forma como aprovou a pílula abortiva e que, portanto, essa autorização deveria ser suspensa.

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Decisão final sobre como a Lei Comstock deve ser interpretada provavelmente caberá à Suprema Corte

O caso foi então para o Tribunal de Apelações do 5º Circuito, no Estado da Louisiana, que derrubou parte da decisão de Kacsmaryk e determinou a manutenção da aprovação da mifepristona.

Mas o tribunal concordou com outros pontos da opinião do juiz do Texas, entre eles o de que enviar a pílula pelo correio seria uma violação da Lei Comstock.

Em resposta, o governo Biden pediu à Suprema Corte que derrubasse as novas restrições e garantisse acesso total à mifepristona.

Em uma ordem de emergência, a Suprema Corte concordou em manter o acesso à pílula enquanto o processo tramita, e o caso foi enviado de volta ao tribunal de apelações, que deve anunciar sua decisão nos próximos meses.

Em meio à disputa judicial, ficaram aparentes as divisões em relação à Lei Comstock.

No ano passado, o escritório de assessoria jurídica do Departamento de Justiça americano havia emitido parecer afirmando que a mifepristona poderia ser enviada pelo correio sem infringir essa lei, desde que o remetente não pretendesse que o destinatário usasse o produto ilegalmente.

Um dos argumentos do Departamento de Justiça é o de que a Lei Comstock há muito tempo deixou de ser interpretada literalmente, e mais de 50 ex-oficiais do departamento, de ambos os partidos, disseram que o juiz do Texas errou “gravemente” em sua interpretação.

Mas, para especialistas, decisões como a do Texas poderão ser tomadas por outros juízes “textualistas”, que interpretam as leis com base no significado literal do texto, sem levar em conta o contexto histórico ou a intenção dos autores.

Após o parecer do ano passado, mais de 40 parlamentares republicanos disseram em carta ao secretário de Justiça que o departamento distorcia “o significado claro da lei”.

No início deste ano, procuradores-gerais e parlamentares republicanos também alertaram farmácias de que, no caso de um futuro governo federal “que respeite o estado de direito e a santidade da vida”, elas poderiam ser punidas pela distribuição da mifepristona, por violarem a Lei Comstock. A lei prevê até cinco anos de prisão na primeira infração.

Futuro do aborto

Alguns defensores do direito ao aborto sugerem que o Congresso deveria revogar a Lei Comstock totalmente, mas outros alertam que isso poderia prejudicar o argumento atual de que é uma lei ultrapassada.

Uma decisão final sobre como a lei deve ser interpretada provavelmente caberá à Suprema Corte, para onde o caso deve ser enviado após a decisão do tribunal de apelações.

Caso seja interpretada como proibindo o envio, por correio ou outra empresa, de qualquer material que possa ser usado em abortos, o efeito iria muito além da mifepristona.

Isso abriria caminho para a proibição de dilatadores, curetas, espéculos e outros instrumentos despachados a clínicas ginecológicas em todo o país, mesmo em Estados sem restrições ao aborto.

De acordo com Ziegler, da Universidade da Califórnia, há muito tempo um dos objetivos do movimento antiaborto é conseguir que o procedimento seja proibido nacionalmente e, idealmente, que seja também declarado inconstitucional.

“Mas é muito difícil ver como isso poderia acontecer”, afirma, salientando que objetivos como uma emenda constitucional proibindo o aborto são pouco prováveis.

Nesse contexto, seria mais viável conquistar a meta de uma proibição nacional por meio de uma lei já existente, como a Lei Comstock. Bastaria convencer os juízes de que a lei deve ser interpretada literalmente, como na época de sua elaboração.

“Não seria necessário aprovar nada”, ressalta a professora de Direito.