O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, inaugurou nesta segunda-feira (22/1) um grande templo ao deus hindu Ram na cidade de Ayodhya — uma obra que dividiu grupos religiosos no país e despertou críticas de políticos de oposição.
O templo — chamado de “Vaticano hindu” por líderes nacionalistas hindus — substitui uma mesquita do século 16 que foi demolida por uma multidão de hindus em 1992, provocando tumultos nos quais quase 2 mil pessoas morreram (leia mais abaixo).
A construção do templo ao deus hindu Ram em Ayodhya cumpre uma promessa feita a nacionalistas hindus. Muitos hindus acreditam que a mesquita no local havia sido construída por invasores muçulmanos sobre as ruínas de um templo onde nasceu o deus hindu.
Na década de 1990, o movimento para construir o templo ajudou a impulsionar o partido nacionalista BJP, de Modi, na cena política nacional. Antes do movimento, o partido tinha pouca expressão nacional.
O templo abrirá ao público na terça-feira (23/1) e sua administração espera 100 mil visitantes por dia durante os próximos meses. A cerimônia de abertura foi marcada pela presença de celebridades e grande cobertura da imprensa. Alguns Estados declararam feriado e a bolsa de valores da Índia fechou.
Em discurso nesta segunda, Modi disse que o templo sinaliza “uma nova era” para a Índia.
“Uma nação que se levanta quebrando a mentalidade da escravidão cria assim uma nova história”, disse Modi. “22 de janeiro de 2024 não é apenas uma data no calendário, mas anuncia o advento de uma nova era. São as bênçãos supremas de Ram que estamos testemunhando.”
A construção do templo marca o cumprimento de uma promessa feita pelo BJP e sinaliza um alinhamento forte do governo com os hindus, que representam a maior religião do país.
No entanto, alguns líderes espirituais hindus e a maior parte da oposição boicotaram a inauguração do templo, dizendo que Modi está utilizando o evento para ganhos políticos.
Eles dizem que o partido de Modi usará o templo para conseguir votos nas eleições, em abril — já que 80% da população do país é hindu.
Os críticos também acusam o governo de explorar uma celebração religiosa em um país que — segundo sua constituição — é secular. Para os muçulmanos, a maior minoria da Índia, o evento evoca medo e memórias dolorosas.
Para alguns críticos, Modi está subindo o tom do nacionalismo hindu na véspera da eleição — o que é visto com receio por outras minorias religiosas.
A seguir, leia a reportagem de Soutik Biswas, correspondente da BBC na Índia.
Em uma manhã especialmente fria, Yogendra Guru parecia perdido em meio a um labirinto de carros após visitar o santuário improvisado, e fortemente protegido, onde os hindus acreditam que o deus hindu Ram nasceu.
O intenso trabalho de construção de um vasto centro para receber peregrinos, com portões de arenito arqueados, e um amplo corredor que leva a um grande templo de US$ 217 milhões (ou mais de R$ 1 bi) para a divindade hindu, era o pano de fundo.
Uma reforma multibilionária destruiu partes de Ayodhya para transformá-la no novo templo.
Guru fez uma cansativa viagem de ônibus de 14 horas acompanhado de duas dezenas de integrantes da família. Eles saíram do vilarejo onde vivem, no distrito de Morena, no Estado central de Madhya Pradesh, para fazer a peregrinação a Ayodhya.
“Estou eufórico por finalmente estarmos ganhando um novo templo. Parece que os hindus despertaram, experimentando uma sensação de liberdade. Acho que antes éramos reprimidos”, ele me disse.
A construção do templo era uma promessa de décadas feita aos nacionalistas hindus. Ele substitui uma mesquita do século 16, em um dos locais religiosos mais controversos da Índia.
Em 1992, uma multidão de hindus derrubou a mesquita Babri, alegando que ela tinha sido construída por invasores muçulmanos sobre as ruínas de um templo de Ram. Houve protestos em todo o país e quase 2 mil pessoas morreram.
A disputa entre hindus e muçulmanos pela propriedade do local foi encerrada em 2019, quando a Suprema Corte concedeu o local aos hindus, apesar de afirmar claramente que a demolição da mesquita foi uma “violação flagrante do estado de direito”.
O tribunal concedeu aos muçulmanos outro terreno em Ayodhya, para que construíssem uma mesquita.
Modi inaugurou o templo de Ayodhya meses antes das eleições gerais na Índia, com seu partido BJP de olho em um terceiro mandato consecutivo recorde. Ele diz que o novo templo “unificará a nação”. O ministro Rajnath Singh acredita que o santuário marcará “o início do renascimento cultural da Índia e restaurará o orgulho nacional”.
Críticos dizem que o momento da abertura está mais relacionado a estratégia política do que ao significado religioso, com a criação de um momento nacionalista hindu antes de pesquisas de intenção de voto. E relembram que o movimento para construir um templo foi um fator importante para impulsionar o BJP a uma posição de destaque na política indiana.
“Depois de passar a vida em uma barraca, o Senhor Ram agora encontrou uma morada de direito. Tem sido um teste de paciência para todos nós”, disse Satyendra Das, o líder religioso de 86 anos à frente do santuário improvisado, onde uma imagem menor de Ram foi colocada nas últimas três décadas.
O novo templo é o mais grandioso possível. Estendendo-se ao longo de 2,9 hectares em um complexo de 28 hectares, a imponente estrutura de três andares, revestida de arenito rosa e ancorada por granito preto, possui pilares imponentes e descansa sobre 6.503m² de mármore branco intocado. Uma imagem de Ram de cerca de 1,30 metro será colocada em um pedestal de mármore.
Somente o piso térreo foi inaugurado. Até o final do ano, o templo espera receber 150 mil visitantes por dia, um número sete vezes superior ao atual.
O governo de Modi está empenhado em transformar Ayodhya, uma tranquila cidade de peregrinação às margens de Saryu, um afluente do Ganges, no que as autoridades chamam de “cidade de nível internacional, onde as pessoas vêm como peregrinos e turistas”.
A reforma de US$ 3,85 bilhões (R$ 19 bi) inclui expansão de estradas, um novo aeroporto, uma enorme estação ferroviária e um estacionamento de vários andares.
Mais de 3 mil casas, lojas e “estruturas de natureza religiosa” foram total ou parcialmente demolidas para facilitar o alargamento de quatro estradas principais, incluindo a recém-batizada Ram Path, de 13 km, que leva ao templo. Uma tinta amarela clara agora dá aos edifícios uma aparência uniforme.
Redes de hotéis como Radisson e Taj estão construindo novas propriedades; 50 novos hotéis e casas de família fazem parte do projeto, e dezenas de pousadas estão sendo renovadas. Não surpreende que os preços das terras já tenham triplicado.
“Você não consegue reconhecer o local, mudou muito. Há, na verdade, um misto de choque e admiração por tudo isso que aconteceu”, disse Valay Singh, autor de Ayodhya: City of Faith, City of Discord (Ayodhya: Cidade da Fé, Cidade da Discórdia, em tradução livre) que visita a cidade desde 2016.
Há também planos para atrações adicionais em torno do novo templo, incluindo uma caminhada sinalizada por 162 murais retratando a vida de Ram, uma instalação em uma ilha do rio Saryu que oferece “vista da civilização védica” e a criação de uma cidade do casamento e o desenvolvimento do lugar como um centro de naturopatia.
“Queremos criar a cidade mais bonita do mundo”, diz Gaurav Dayal, autoridade de Ayodhya.
A fé está presente em cada parte da vida em Ayodhya, onde os templos sobem como sentinelas em um horizonte desordenado, e os monges andam pelas ruas.
Dezenas de milhares de peregrinos circulam pela cidade pelo menos duas vezes por ano. Os macacos, onipresentes, correm soltos. Os bazares estão repletos de vendedores ambulantes que vendem objetos religiosos: flores, sândalo, livros devocionais, réplicas de divindades.
Uma “economia frágil e dependente de peregrinos”, descreve Singh.
Em sua primeira visita à cidade, Disha Chakraborty, uma estudante de Ciências, de Shillong, no nordeste da Índia, me disse: “Este lugar está em ruínas, vamos ser honestos. Mas não importa, as pessoas são tão dedicadas. Tantos colocaram sua fé coletiva em um ídolo.”
No entanto, nesta cidade de alguns milhares de templos, grandes e pequenos, e mais de 45 mesquitas, festivais e feiras, uma transformação está em andamento, misturando o antigo com o novo.
Além de estúdios de tatuagem e comida para viagem, Ayodhya tem um restaurante chamado Dark Cloud e um salão chamado Stylish Chand Men’s Parlour, que oferece uma variedade de cortes e estilos de cabelo.
Shows de laser iluminam o céu quando a noite cai. O lugar está repleto de YouTubers e influenciadores do Instagram tentando tornar o lugar uma “tendência”.
Inspirados pela fé, tradição e curiosidade, espera-se que milhões de devotos e turistas apareçam em Ayodhya após a abertura do novo templo. Mas há espaço para o descontentamento. A iniciativa de expansão da estrada para peregrinos deixou um rastro de casas e lojas destruídas por escavadeiras que atravessa a cidade.
Anand Kumar Gupta, que dirige uma associação de lojistas locais, conta que cerca de 1600 deles “foram deslocados e não têm para onde ir”. E conta que as pessoas receberam uma média de 100.000 rúpias (US$ 1.200) para os reparos. “Essa reconstrução nos atrapalhou”, disse.
Em uma rota de peregrinação em ampliação, cerca de três dúzias de casas de pessoas que trabalham nos templos da cidade foram parcialmente demolidas. Com canos vazando, a rua transborda esgoto. Pontes instáveis de bambu se estendem precariamente sobre trincheiras lamacentas que permeiam o chão do lado de fora das portas. Os donos das casas receberam terrenos longe dali.
Vishal Pandey disse que metade da casa que está com sua família há gerações, com seis quartos, foi demolida para o alargamento da estrada.
Apesar de uma compensação de cerca de US$8.400 (R$ 40 mil) para a parte afetada, o impacto é irreversível, acrescentou.
“Há raiva entre os moradores”, me disse o Pandey. “Mas também estamos felizes que Ram esteja finalmente conseguindo um lar permanente. Ele ficou em uma barraca por tanto tempo. Agora é a nossa vez (de sofrer).”
“Onde há destruição, há desenvolvimento. Vamos ver o que acontece.”
Kanti Devi, que perdeu metade de sua casa, é mais incisiva.
“Não estamos felizes, de forma alguma”, diz ela. “Até os funcionários vêm e nos dizem que estão nos causando muita dor. É bom que o templo tenha sido feito, mas como isso nos ajuda? O que quer que tenhamos construído, eles arrasaram para conseguir mais peregrinos para a cidade.”
Autoridades dizem que os moradores de casas e lojas demolidas receberam compensações financeiras e novas casas de programas governamentais.
“Toda a compensação foi dada. É adiada em alguns casos por causa de litígios envolvendo disputas familiares. Não há mais nada a ser feito agora”, diz Dayal.
De muitas maneiras, as pessoas que chegam de fora moldaram o destino de Ayodhya, onde hindus e muçulmanos há muito moram em bairros mistos. Isso resistiu apesar da demolição e de um ataque à comunidade muçulmana local em dezembro de 1992, que teria levado à morte de 18 muçulmanos e ao incêndio de suas casas. A cidade virou um ponto crítico da violência religiosa.
“Nós seguimos em frente. Esses eventos, no entanto, seguem sendo uma fonte de dor para nós”, disse Khaliq Ahmed Khan, assistente social.
Khan acredita que hindus e muçulmanos compartilharam relações calorosas em Ayodhya, enraizadas em uma interdependência centenária. “A devoção hindu a Ram está entrelaçada com o apoio dos muçulmanos, particularmente na economia do templo, onde o comércio deles desempenha um papel crucial. As duas comunidades são inseparáveis.”
Esse sentimento é ecoado por Raghuvansh Mani, um professor universitário local: “O conflito sectário veio de fora; a população local tem envolvimento mínimo nisso”. Alguns moradores compartilham sentimentos semelhantes, de que pessoas de fora estão determinando seu destino, já que o novo templo visa abrir Ayodhya ao mundo.
“Só o tempo dirá”, diz Pandey.
Fonte: BBC
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