- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Foi um marco científico. O ácido acetilsalicílico, popularmente conhecido pela marca comercial Aspirina, é considerado o medicamento que inaugurou a indústria farmacêutica.
Trata-se do primeiro fármaco a ser sintetizado em laboratório, ou seja, que não pode ser encontrado em sua forma final na natureza.
Seu registro de patente foi realizado pela empresa Bayer em 6 de março de 1899, em Berlim, na Alemanha. Era o começo de uma história de sucesso, que mudaria a maneira como a humanidade lida com a dor.
Mas antes de prosseguir com esta história, cabe um alerta sempre necessário quando o assunto é medicamento — e mais importante ainda no caso de um remédio barato e acessível como é a Aspirina, que pode ser comprada, no Brasil, sem a necessidade de receita médica: a automedicação é sempre um risco.
“[O ácido acetilsalicílico] é facilmente encontrado e vendido nas farmácias e, por conta dessa facilidade de acesso, esse medicamento acaba sendo usado de maneira inadequada, o que pode trazer efeitos adversos como problemas gastrointestinais, toxicidade renal e hepática”, alerta à BBC News Brasil o farmacêutico Jean Leandro dos Santos, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“É sempre muito importante que haja orientação de um profissional de saúde no momento da indicação de um medicamento, como é o caso da Aspirina. O uso incorreto desses fármacos tem potencial [de consequência] grave. É importante que a população seja sempre orientada, no momento da decisão de utilizar um medicamento, mesmo que seja de fácil aquisição, isento de prescrição e de acesso direto na farmácia” completa o especialista, que também é coordenador do grupo de pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos na Unesp e membro da American Chemical Society (ACS).
Mas se a Aspirina tem 125 anos, sua história é derivada de uma substância — esta, sim, encontrada na natureza — utilizada pelo ser humano há pelo menos 2,4 mil anos. Trata-se do ácido salicílico.
Chorão
Salicílico é uma derivação de Salix, a denominação científica da família do salgueiro — árvore também chamada de chorão, famosa pelas folhas pendentes. Desde a antiguidade, sabe-se que tanto as folhas quanto o caule dessas plantas eram boas para fazer um extrato utilizado no alívio de sintomas como dor e febre.
O salgueiro é rico em salicilato. Seu uso medicinal consta no famoso papiro Ebers, um tratado médico do Egito antigo datado de aproximadamente 1550 a.C. Aclamado como o pai da medicina, Hipócrates (460 a.C. – 370 a.C) prescrevia o chá da planta para seus pacientes.
A medicina ancestral era muito mais empírica — e somente a partir do século 18 pesquisadores conseguiram identificar a substância benéfica desses extratos.
Mas havia um problema: se o ácido salicílico era bom no combate a dores, febre e inflamações, seus efeitos colaterais não podiam ser ignorados. Em outras palavras, o remédio causava sérios danos ao estômago.
“O ácido salicílico foi descoberto no período grego a partir da casca de um salgueiro que, uma vez fervida, rendia um chá com propriedades analgésicas, antipiréticas e capazes de aliviar a dor e a inflamação”, conta Santos.
“Só que o produto isolado da casca do salgueiro, chamado de salicina, ainda hoje é utilizado no tratamento de verrugas e calos. Se a gente imaginar em termos de efeito adverso que é utilizado para reduzir calos, imagina o estrago que faz no estômago. Por isso, com base nos efeitos adversos, que esta substância precisou ser modificada até chegar ao ácido ácido acetilsalicílico”, acrescenta.
Isso se tornou uma preocupação científica. Era preciso dar um jeito de seguir utilizando a substância para o objetivo desejado, sem trazer novas complicações para os pacientes.
Foram muitas tentativas, algumas malsucedidas, outras parcialmente bem-sucedidas. Até que em 1897, movido por uma questão pessoal — ele queria encontrar algo para tratar o reumatismo do pai —, o químico alemão Felix Hoffmann (1868-1946), pesquisador da Bayer, conseguiu o feito.
Em laboratório, ele criou o ácido acetilsalicílico, abrindo um novo modelo de tratamento da dor para a humanidade.
Foi a primeira vez que um fármaco foi sintetizado em laboratório, ou seja, não apenas isolado da natureza.
Como o medicamento de Hoffmann não pode ser encontrado naturalmente, essa invenção se tornou um marco, considerado o ponto zero da indústria farmacêutica. Em 6 de março de 1899, a Aspirina foi então patenteada.
“Antes da descoberta do ácido acetilsalicílico, não havia muitas opções terapêuticas para o tratamento de quadros de dor. Basicamente, a população utilizava plantas medicinas para aliviar os sintomas”, observa Santos.
“Até o final do século 19, existiam poucos analgésicos. Basicamente a morfina e o ácido salicílico”, acrescenta à BBC News Brasil a biomédica Ana Paula Herrmann, professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do portal FarmacoLógica.
Ela lembra que a morfina tinha histórico de causar dependência, e o ácido salicílico acarretava problemas por irritar as paredes estomacais.
Em sua primeira versão, o ácido acetilsalicílico era um pó, ministrado sempre com acompanhamento médico.
A partir de 1900, torna-se um comprimido, solúvel em água, vendido em pequenos tubos de vidro. Foi a primeira droga de uso geral vendida sob esse formato.
Pela primeira vez, alguém poderia se medicar sem a necessidade do auxílio de um médico ou um boticário. Foi uma revolução.
A simplicidade, o baixo custo, a acessibilidade e a eficácia transformaram a Aspirina em um sucesso quase instantâneo.
Em pouco tempo, se tornou sinônimo de comprimido, de remédio. E passou a ser um item onipresente nas casas.
“Tornou-se um dos medicamentos mais vendidos do mundo”, destaca a biomédica.
Na Primeira Guerra Mundial, a Aspirina se tornou um medicamento essencial para todos os soldados na linha de frente de combate. E espalhou-se rapidamente pelo mundo.
Como funciona
Mas, afinal, como a Aspirina funciona?
“[Ela] inibe de maneira irreversível uma enzima no organismo responsável pela formação de prostaglandinas, que são substâncias que causam dor, e tromboxano, substância que causa fenômenos trombóticos”, explica à BBC News Brasil o médico Gilberto de Nucci, professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Essa característica da inibição, irreversível, se deve à capacidade do acetilsalicílico de acetilar essa enzima, cujo nome é ciclo-oxigenase”, completa Nucci, que é membro da Academia Nacional de Medicina, da Academia Nacional de Farmácia e da Academia Brasileira de Ciências.
Santos detalha que essa enzima “é responsável pela produção de mediadores que regulam o funcionamento e o equilíbrio de vários órgãos”,
“Frente a uma inflamação ou quadro febril, esses mediadores são produzidos em excesso, e esse aumento de produção acaba aumentando o quadro inflamatório e sensibilizando os terminais receptivos responsáveis pela dor”, explica o farmacêutico.
O “pulo do gato” de Hoffmann foi, de acordo com Santos, “uma estratégia bastante simples”, na qual ele “fez uma reação química de acetilação do ácido salicílico, levando à formação do ácido acetilsalicílico”.
“A introdução desse grupamento é responsável pela redução das propriedades indesejadas que o ácido salicílico tinha”, completa.
Durante muito tempo, no entanto, esse mecanismo de ação do medicamento era desconhecido. Sabia-se que funcionava por conta da experiência prévia com o extrato do chorão. Mas não se entendia exatamente como o fármaco agia no organismo.
“Isso só foi descoberto depois. E rendeu um Nobel para o descobridor”, destaca Herrmann.
Os méritos são do farmacêutico britânico John Vane (1927-2004), ganhador do prêmio Nobel em 1982, anos após demonstrar o mecanismo de ação do ácido acetilsalicílico.
A Aspirina começou a perder o posto de analgésico preferido depois que foram desenvolvidos outros fármacos destinados a aliviar a dor, como o paracetamol, em 1956, e o ibuprofeno, em 1962.
Outros usos
Segundo Herrmann, hoje o medicamento é mais utilizado na prevenção de doenças cardiovasculares do que para aliviar a dor.
“No Brasil, hoje, como analgésico se usa muito mais o paracetamol, a dipirona e outros, que têm menos efeitos danosos para o estômago”, diz ela.
“O uso da Aspirina é principalmente na prevenção de eventos cardiovasculares e também na prevenção de alguns tipos de câncer.”
Santos explica que essas outras indicações acabaram sendo descobertas apenas com o uso.
“Com a própria utilização, foram observados tais efeitos. Isso normalmente acontece com a pesquisa clínica, quando são percebidos efeitos adicionais do uso de um remédio”, afirma.
No caso, constatou-se que, como a Aspirina inibe a ciclo-oxigenase, também previne ou inibe a formação de trombos.
Por isso, sua ingestão, em dosagens menores, passou a ser recomendada para alguns pacientes com histórico de doenças cardiovasculares, como forma de prevenir infarto e acidente vascular cerebral (AVC).
Mais recentemente, algumas pesquisas indicaram que o medicamento pode ser eficaz na prevenção de alguns tumores cancerígenos, por conta de seu papel inibidor de mediadores fisiológicos.
Para o professor Santos, é importante lembrar que, “embora seja um fármaco conhecido há mais de 100 anos, ainda há muitas pesquisas buscando a compreensão de seus mecanismos”.
“Ainda é uma fonte de inspiração para o desenvolvimento de novos compostos, novos fármacos. Embora centenário, [o ácido acetilsalicílico] ainda é capaz de prover novas ideias, desenvolvimento de novas formulações, medicamentos e associações em que ele é combinado a outras substâncias”, acrescenta.
Fonte: BBC
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