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Até que ponto nosso comportamento é controlado pela herança biológica?

  • Author, David Cox
  • Role, BBC Future

Nas profundezas do subsolo de um edifício de granito nos arredores da capital da Islândia, Reykjavik, um robô reordena lenta e metodicamente o sangue resfriado de dezenas de milhares de pessoas de todo o mundo.

O processo que ocorre nesta câmara de concreto é bem calculado. O DNA é extraído das amostras e alimenta máquinas de sequenciamento, que determinam lentamente as linhas exclusivas de bases químicas que formam a identidade de cada uma daquelas pessoas.

Posteriormente, algoritmos de inteligência artificial irão relacionar esse código genético ou genoma a informações detalhadas, que foram armazenadas em biobancos sobre a sua vida — como a sua alimentação, personalidade, escolhas de relacionamento, hobbies e doenças que acabaram causando sua morte — e buscar conexões que os cientistas podem considerar estatisticamente significativas.

Esta câmara de concreto é propriedade de uma empresa islandesa chamada deCODE genetics. Ela já sequenciou mais genomas inteiros — mais de 400 mil e o número segue aumentando — do que qualquer outra instituição do mundo.

Com este processo, foi possível realizar contribuições importantes para compreender nosso risco hereditário de sofrer de Alzheimer, esquizofrenia, doenças das artérias coronarianas, diversas formas de câncer e muitas outras doenças crônicas.

Mas a deCODE também inspirou pesquisadores em outras partes do mundo a usar o mesmo processo para mergulhar profundamente na psique humana e encontrar conexões entre o genoma e a nossa personalidade, preferências alimentares e até a nossa capacidade de manter relacionamentos.

Este tipo de estudo começa agora a examinar algo mais íntimo do que simplesmente a busca de novos remédios, revelando novas conexões entre o nosso código genético e nossas escolhas de vida.

Muitos cientistas começam a questionar até que ponto o nosso comportamento é produto da nossa própria vontade ou simplesmente pré-determinado pela nossa herança biológica.

“Quando você olha para nós enquanto espécie, nós passamos a existir com base nas informações que moram no nosso genoma e, depois, na interação daquelas informações com o ambiente”, segundo o cientista islandês Kári Stefánsson, fundador da deCODE.

Criada em 1996, a empresa tinha o objetivo inicial de usar o cenário genético exclusivo da Islândia para aumentar a compreensão sobre doenças comuns.

O país tem uma população pequena que foi relativamente isolada ao longo dos séculos. Por isso, existe muito menos variação genética na Islândia do que em outras nações.

Esta característica também significa que existe menos ruído de fundo para complicar os estudos, facilitando a identificação de variantes genéticas significativas para os cientistas.

Stefánsson tem 73 anos de idade. Neurologista e filósofo, ele se convence cada vez mais de que o complexo coquetel de DNA que herdamos dos nossos pais, em conjunto com cerca de 70 mutações espontâneas que adquirimos ao acaso, determina subconscientemente o nosso comportamento, muito mais do que sabemos.

Podemos não perceber, mas, aparentemente, muitos aspectos rotineiros do nosso dia a dia podem ser parcialmente determinados pelo nosso genoma. Diferenças genéticas sutis nos receptores de sabor, por exemplo, ajudam a determinar se você prefere beber chá ou café.

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Muitos cientistas começam a questionar até que ponto o nosso comportamento é produto da nossa própria vontade ou simplesmente pré-determinado pela nossa herança biológica

O que ocorre é que os amantes do café são menos sensíveis ao amargor da cafeína. Já os que preferem chá não percebem outros tipos de substâncias amargas com tanta força.

A genética também exerce influência quando o assunto são as nossas inclinações ou aversões por todos os tipos diferentes de atividades.

Falando de forma simplista, a genética determina o quanto você gosta de exercícios físicos e se você prefere formas mais solitárias de atividade física, como correr, ou competir com os demais em esportes de equipe.

Mas o nosso DNA também pode nos orientar a buscar atividades de lazer mais específicas. Quinze anos atrás, uma pesquisa entre 2.000 adultos britânicos indicou, pela primeira vez, que pode existir uma espécie de “gene do hobby”.

A simples observação da árvore genealógica de uma pessoa e dos passatempos favoritos dos seus ancestrais sugeriu forte inclinação para determinados tipos de atividades. Muitos participantes da pesquisa ficaram surpresos ao descobrir que, na verdade, eles vêm de uma longa linhagem de jardineiros amadores, colecionadores de selos ou confeiteiros.

Na década seguinte, muitas pessoas em todo o mundo referiram-se ao estudo depois de descobrirem que o passatempo favorito de um pai ou avô subitamente ressurgiu de forma inexplicável na idade adulta.

Em um blog na plataforma Medium, o agente de seguros Michael Woronko, de Ottawa, no Canadá, escreveu:

“Nunca tive interesse por jardinagem, mesmo quando minha mãe me arrastava com ela para a sua horta comunitária quando eu era criança. Eu não tinha o menor interesse em tomates híbridos, germinação de pimentas etc. Mas, quando surgiu a oportunidade (na idade adulta), algo profundo dentro de mim aflorou e levei aquilo adiante.”

Grandes estudos de sequenciamento genômico estão agora começando a explicar os motivos. Stefánsson descreve como os cientistas da deCODE chegaram a descobrir uma variante genética específica que determina se você gosta de palavras cruzadas.

“Nós sabemos que, se você tiver [a variante], você irá gostar de resolver palavras cruzadas, mas ela não influencia se você é bom nisso ou não”, ele ri.

Isso também é verdade em relação ao complexo tema de como os nossos genes determinam os caminhos de vida que seguimos.

De Boston, nos Estados Unidos, até Shenzhen, na China, diversas startups de tecnologia vêm procurando há anos os chamados genes do talento — variantes genéticas que podem fornecer força natural congênita ou capacidades excepcionais de linguagem, permitindo que as pessoas sejam levadas às áreas nas quais elas têm mais a oferecer. Mas não é algo tão simples quanto parece.

Geneticistas do Instituto Max Planck em Leipzig, na Alemanha, tentaram recentemente traçar conexões entre um gene chamado ROBO1, que controla o desenvolvimento de matéria cinzenta em uma parte do cérebro envolvida na representação numérica, e as capacidades matemáticas das crianças.

Mas, até agora, parece que, para todos os talentos, seja lidar com números, a capacidade musical ou a destreza esportiva, a genética é apenas uma parte relativamente pequena da equação.

Na verdade, como Stefánsson descobriu com as palavras cruzadas, nossos genes aparentemente influenciam nossas inclinações naturais para realizar certas atividades.

Mas o que realmente determina se temos qualquer tipo de aptidão para elas são fatores como os ensinamentos e outras oportunidades que recebemos no início da vida, bem como nossa própria disposição de praticar, persistir e melhorar.

E isso nos leva para pontos nos quais a genética pode exercer sua mais forte influência sobre os nossos caminhos de vida — nossos traços de personalidade.

‘DNA não é destino’

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O fundador da empresa islandesa deCODE genetics, Kári Stefánsson, acredita que o DNA que herdamos determina de forma subconsciente o nosso comportamento – muito mais do que sabemos.

A professora de psiquiatria Danielle Dick, da Universidade Rutgers em Nova Jersey, nos Estados Unidos, é autora do livro The Child Code (“O código da criança”, em tradução livre).

Ela afirma que a maioria das dimensões de personalidade — se somos introvertidos ou extrovertidos, cuidadosos, agradáveis, impulsivos ou até o quanto somos criativos — tem algum tipo de componente genético.

“Isso reflete o fato de que os nossos genes influenciam como se forma o nosso cérebro, o que traz impactos sobre como pensamos e interagimos com o mundo”, afirma Dick.

“Algumas pessoas têm cérebros que são mais inclinados a buscar experiências inovadoras ou interessantes, mais propensos a assumir riscos ou atraídos por recompensas mais imediatas.”

Todas essas características podem nos trazer benefícios. Empreendedores, CEOs, pilotos de caça e atletas que competem em esportes extremos, por exemplo, costumam assumir riscos de forma natural.

Mas esses antecedentes genéticos também trazem certos custos. As pessoas que gostam de correr riscos são mais propensas a desenvolver dependência, por exemplo. E o trabalho de Stefánsson demonstrou que uma parte das pessoas portadoras da genética que costuma incentivar o pensamento criativo, na verdade, acaba desenvolvendo esquizofrenia.

Dick é uma das autoras de um estudo recente, que compilou dados de cerca de 1,5 milhão de indivíduos para identificar variantes genéticas relacionadas à impulsividade.

Ela concluiu que pessoas impulsivas costumam apresentar maior propensão a desenvolver transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) na infância, além de fumar e ingerir substâncias na adolescência e na idade adulta, até desenvolverem, mais tarde, condições associadas como obesidade e câncer do pulmão.

“Dito isso, também é claro que o DNA não é destino”, afirma Dick. “Nossos genes influenciam nossas disposições, que influenciam nossas tendências naturais, mas isso não significa que as pessoas irão sempre desenvolver problemas.”

O ambiente à nossa volta desempenha imenso papel para determinar se agimos ou não com base nas nossas inclinações genéticas.

Stefánsson afirma que as pessoas que têm variantes genéticas no cérebro que as fazem ter problemas com inibição terão maior propensão a comer em demasia se trabalharem perto de restaurantes fast food, além de dificuldades para deixar de fumar depois de começarem.

“Os indivíduos com risco mais alto são também os que mais se beneficiam do ambiente saudável”, segundo a professora de psiquiatria Cecilia Flores, da Universidade McGill, no Canadá. “O ambiente positivo pode reprimir a susceptibilidade genética e até revertê-la.”

Mas isso não ajuda apenas a explicar a conexão entre a personalidade e os padrões de comportamento que levam à dependência.

Cientistas sociais estão agora descobrindo que estudar este tipo de interação entre os genes e o ambiente ajuda a explicar por que algumas pessoas são mais propensas a manter relacionamentos duradouros do que outras.

A genética do amor

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A nossa genética determina o quanto gostamos de nos exercitar

Quatro anos atrás, sociólogos da Faculdade de Saúde Pública da Universidade Yale, nos Estados Unidos, realizaram um estudo que envolveu 178 casais, com 37 a 90 anos de idade.

Cada um dos parceiros respondeu a uma série de questões relativas à sua felicidade e à sensação de segurança no relacionamento, fornecendo uma amostra de saliva que seria utilizada para analisar certos genes.

Os cientistas descobriram há muito tempo que a genética influencia de alguma forma as nossas escolhas de amigos e até de parceiros amorosos. Nos dois casos, nossa tendência é de formar conexões com pessoas que têm certas similaridades físicas conosco.

“Nós tendemos a formar relações sociais com indivíduos geneticamente mais similares a nós”, segundo Andrew DeWan, epidemiologista genético de Yale.

“Podemos pensar nos genes que controlam essas características como exercendo alguma influência sobre quem escolhemos para formar amizades.”

Ocorre que os genes também detêm responsabilidade significativa pela nossa capacidade de manter relacionamentos estáveis e felizes ao longo de anos e décadas.

Pesquisas anteriores demonstraram que filhos de pais divorciados apresentam maior propensão ao divórcio. Já o estudo de Yale pesquisou o papel de um hormônio chamado oxitocina, que dirige as conexões e faz com que os parceiros se sintam mais próximos entre si.

O estudo concluiu que, quando pelo menos um dos parceiros de um casamento tem uma certa variante genética que aumenta a atividade da oxitocina e torna a mente mais receptiva aos seus benefícios, aquele parceiro é menos propenso a exibir sintomas psicológicos conhecidos como o apego ansioso. Como resultado, o casal é mais feliz.

O apego ansioso é uma forma específica de insegurança no relacionamento que se desenvolve a partir de experiências do passado com familiares próximos e parceiros anteriores. Ele resulta em redução da autoestima, alta sensibilidade à rejeição e busca de aprovação.

“Isso demonstra que as nossas variantes genéticas hereditárias podem contribuir para a nossa felicidade nos relacionamentos”, afirma DeWan.

“Nossa genética não só determina nossa capacidade de formar relacionamentos duradouros, mas é também um fator que colabora e pode nos orientar em uma direção ou na outra, para perto ou para longe deles.”

Em todo o espectro da medicina e da psicologia, os psiquiatras, especialistas em desenvolvimento infantil e em obesidade estão procurando usar a quantidade cada vez maior de informações genéticas disponíveis para definir políticas de saúde pública, fornecendo conselhos práticos às pessoas.

Nicola Pirastu é especialista em bioestatística do instituto de pesquisa Human Technopole, na Itália. Ele descobriu que variantes genéticas das preferências alimentares podem nos fazer não gostar de frutas e legumes, em favor de alimentos gordurosos, com alto teor de calorias.

Como grande quantidade dessas variantes encontra-se no cérebro, Pirastu acredita que a obesidade deve ser cada vez mais tratada como uma doença, com medicamentos, e não com intervenções alimentares.

“Perder peso é superdifícil”, segundo ele. “E não é só questão de força de vontade.”

“Se você estiver sempre com fome, é claro que você quer comer. Por isso, os medicamentos que agem sobre essa ânsia por alimentos certamente podem ajudar as pessoas”, explica Pirastu.

“É claro que você também pode fazer isso com a alimentação, mas manter a dieta é meio que um trabalho em tempo integral que muitas pessoas não conseguem fazer.”

Como o custo do sequenciamento genético é cada vez menor, é possível que ele possa ser utilizado no futuro para identificar crianças ou adolescentes com sinais de comportamento que levam à dependência.

“Minha esperança é que, conforme aumenta a compreensão do público de que problemas como a adicção ou o comportamento infantil, muitas vezes, são relacionados à sorte ou ao sorteio em relação aos genes herdados, a estigmatização seja reduzida”, afirma Danielle Dick.

“Identificando os indivíduos em risco no início do seu desenvolvimento, podemos concentrar recursos para ajudá-los a atingir todo o seu potencial.”

Dick acredita que, se o indivíduo e sua família souberem que têm propensão a dependências ou a assumir riscos, talvez seja possível ajudá-los a buscar ativamente esses ambientes. Mas ela afirma que a sociedade também precisa participar.

“Muitos de nós, no campo da adicção, estamos particularmente preocupados com as novas leis nos Estados Unidos, que estão facilitando o acesso à cannabis e a jogos online, pois sabemos que ambientes que promovem maior disponibilidade e aceitação desses comportamentos estão associados ao aumento da incidência de problemas“, segundo ela.

Mas ainda estamos apenas começando a compreender exatamente como os nossos genes determinam o que fazemos e o papel que eles desempenham nas nossas escolhas.

Nas últimas duas décadas, Kári Stefánsson e outros pesquisadores vêm lentamente descobrindo diversas dessas conexões, mas ainda existem muitas questões básicas aguardando para serem respondidas.

“Uma das grandes questões é se você pode herdar um pensamento”, segundo ele. “A forma como você pensa é transmitida pela sua mãe e pelo seu pai?”

“Um dos problemas para comprovar isso é que não temos uma boa definição de pensamento. Se você tomar a nossa espécie, podemos dizer que somos definidos, em grande parte, pelos nossos pensamentos e emoções.”

“Mas, em 2023, ainda nem chegamos a definir um dos atributos que nos definem”, conclui Stefánsson.