- Author, Leandro Prazeres
- Role, Enviado da BBC News Brasil, em Pequim
- Twitter, @PrazeresLeandro
A viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à China foi marcada por uma série de mensagens relativamente claras sobre aquilo que deverá ser a sua política externa neste seu terceiro mandato.
Tanto por meio de discursos quanto pelas agendas, Lula deu mostras de que vai manter a aposta nas parcerias com o chamado sul-global e suas críticas aos fóruns e organismos tradicionalmente ligados ou controlados por potências como os Estados Unidos.
Lula chegou à China para encerrar o que alguns diplomatas vinham classificando como uma espécie de “pontapé inicial” da sua agenda internacional.
Esse pontapé contou com visitas aos três principais parceiros do Brasil: Argentina, Estados Unidos e, agora, a China.
Recebido com entusiasmo pelos chineses, Lula aproveitou sua passagem pelo país asiático para deixar mais evidente o que esperar da sua agenda internacional.
Se havia alguma dúvida sobre qual era o principal recado que Lula queria dar à comunidade internacional durante essa viagem, ela foi dissipada na sexta-feira (15/04): o presidente diz que quer mudar as regras da governança global, tradicionalmente percebida como uma estrutura de poder que beneficia, historicamente, países como os Estados Unidos e a Europa.
“Os nossos interesses na relação com a China não são apenas comerciais […] Temos interesses políticos e nós temos interesses em construir uma nova geopolítica para que a gente possa mudar a governança mundial dando mais representatividade às Nações Unidas”, disse durante encontro com o presidente do Comitê Permanente da Assembleia Nacional Popular da China, o equivalente ao parlamento chinês, Zhao Leji.
E para deixar seu ponto claro, Lula defendeu a cooperação com países em desenvolvimento, criticou organismos multilaterais tradicionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), criticou uma suposta falta de força da Organização das Nações Unidas (ONU) e teve até “alfinetada” entendida como recado para os Estados Unidos.
Confira quais foram os principais recados de Lula durante sua passagem pela China:
Aposta no Brics e sul-global
O primeiro recado dado por Lula em sua viagem é de que ele vai continuar a apostar no Brics, grupo de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
O grupo se consolidou na segunda metade dos anos 2000 e se tornou uma aposta da diplomacia brasileira para que o país tivesse alternativas de articulação política fora da zona de influência dos Estados Unidos e da União Europeia.
Atualmente, o Brics representa aproximadamente 46% da população mundial e estimativas apontam que os países são responsáveis por algo em torno de ¼ do produto interno bruto global.
A aposta redobrada de Lula no Brics ficou clara no discurso que ele fez durante a cerimônia de posse da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) como nova presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), conhecido também como o Banco dos BRICS. Dilma foi afastada da presidência do Brasil em 2016, após um processo de impeachment.
Ela foi a primeira mulher a ocupar a presidência do banco, criado em 2014, quando ela era presidente do Brasil.
A chegada de Dilma ao comando do banco, aliás, só foi possível graças a uma articulação diplomática liderada pelo Brasil já sob o comando de Lula.
Em seu discurso na sede do banco, Lula fez uma série de menções a importância do Brics e prometeu se empenhar pelo seu fortalecimento.
“Precisamos utilizar de maneira criativa o G-20 (que o Brasil presidirá em 2024) e o Brics (que conduziremos em 2025) com o objetivo de reforçar os temas prioritários para o mundo em desenvolvimento na agenda internacional”, disse Lula.
Crítica ao sistema financeiro internacional
E nesse esforço de mudar as regras da governança global, Lula não poupou críticas ao sistema financeiro internacional.
Durante a cerimônia de posse de Dilma Rousseff como presidente do Banco do Brics, Lula defendeu a criação de bancos multilarerais de desenvolvimento nos moldes do banco do Brics como uma espécie e alternativa às instituições semelhantes tradicionais como o FMI e Banco Mundial.
Ele disse que essas organizações não deveriam ficar “asfixiando” as economias de países em desenvolvimento.
“Os bancos têm de ter paciência. Se for preciso, renovar o acordo e colocar a palavra tolerância em cada renovação porque não cabe ao banco ficar asfixiando as economias dos países, como está fazendo agora com a Argentina o Fundo Monetário Internacional”, disse Lula em seu discurso na quinta-feira.
Lula também defendeu a redução da dependência dos países desenvolvimento em relação ao dólar como moeda preferencial em suas transações comerciais.
“Quem decidiu que é era o dólar a moeda depois que desapareceu o ouro como padrão? Por que não foi yene? Por que não foi o Real? Por que não foi peso? Porque as nossas moedas eram fracas […] porque hoje um país precisa correr atrás do dólar para poder exportar, quando ele poderia exportar sua própria moeda e os bancos centrais certamente poderiam cuidar disso”, disse Lula.
“É difícil porque tem gente mal-acostumada porque todo mundo depende de uma única moeda. Eu acho que o século 21 pode mexer com a nossa cabeça e pode nos ajudar, quem sabe, a fazer as coisas diferentes”, afirmou o presidente na quinta-feira.
Aceno a empresa banida pelos EUA
O terceiro recado enviado por Lula foi menos sutil e parecia ter um endereço certo: os Estados Unidos.
Na quinta-feira, Lula foi ao um centro de pesquisas da Huawei em Xangai. A empresa é uma das maiores do mundo e lidera o mercado em áreas como a tecnologia 5G.
Na sexta-feira, Lula deixou claro que sua ida à empresa foi um recado.
“Ontem (quinta-feira, 13/4), fizemos uma visita à Huawei numa demonstração de que nós queremos dizer ao mundo que não temos preconceito na nossa relação como os chineses e que ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”, disse Lula.
As declarações acontecem após uma série de pressões feitas pelo governo dos Estados Unidos para que o Brasil não permitisse que a Huawei participasse das licitações para a construção da rede 5G no país.
A pressão foi grande durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas ele permitiu que a empresa pudesse participar da disputa.
Nos últimos anos, a Huawei e outras companhias chinesas do setor de alta tecnologia, passaram a ser alvo de críticas do governo americano.
Autoridades dos EUA passaram a criticar a empresa e levantar suspeitas de que a companhia poderia usar informações de seus usuários em benefício do governo chinês.
A China, por sua vez, rebate as acusações e vem dizendo que elas são uma forma de retaliação.
Significados e consequências
Para especialistas em relações internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, os recados enviados por Lula ao longo da viagem à China foram cuidadosamente pensados para gerar repercussão internacional e posicionar o seu governo diante dos demais atores globais.
“A questão do dólar é uma tentativa de o Brasil se colocar como um dos principais pautadores de agenda no sul-global, como um país que busca participar ou moldar a construção de um mundo menos centrado nos EUA”, disse o professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Oliver Stuenkel.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador visitante da Universidade de Oxford Dawisson Belém Lopes, as declarações de Lula mostram que ele continuaria a ser o que o professor chamou de “revisionista suave”.
“Lula é um revinisiosta suave na medida em que ele atua sem desafiar os seus pilares da ordem mundial, mas reivindicando, a todo tempo, uma rediscussão e uma revisão das regras do jogo de novo para contemplar o Brasil mais generosamente com, por exemplo, um assento como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU ou para ter mais cotas em organismos multilaterais”, disse Lopes.
Os dois afirmam que a atual postura do presidente pode, dada a conjuntura, gerar reações dos Estados Unidos.
“É claro que isso pode causar alguma fricção com os Estados Unidos. Mas acho que a aposta de Lula é que o Brasil seja tratado no Ocidente como a índia, que tem sua política independente, que discorda, mas ao mesmo tempo, tem parceria muito profunda com potencias ocidentais como os EUA”, disse Stuenkel.
Lopes, por sua vez, avalia que o mundo, atualmente, o acirramento das tensões entre Estados Unidos e China diminui a margem de manobra do Brasil para se manter equidistante em relação aos dois países.
“Quando o Brasil se aproxima da China, ele necessariamente se distancia dos Estados Unidos e vice-versa. O sistema internacional ficou menos permissivo com países que pendulam entre Estados Unidos e a China. Mas Brasil deve saber navegar por essas águas”, disse.
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