• André Bernardo
  • Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

Crédito, Acervo Pessoal Rafael Spaca

Legenda da foto,

Pelé e Renato Aragão nas filmagens de Os Trapalhões e o Rei do Futebol, em 1986

Em 1986, 15 anos depois de ter parado de jogar pela Seleção Brasileira e 12 anos depois de ter deixado de vestir a camisa do Santos, Pelé (1940-2022) voltou a pisar o gramado do Maracanã, o maior estádio de futebol do mundo na época.

No dia 20 de abril, ele participou das filmagens de Os Trapalhões e o Rei do Futebol, dirigido pelo experiente Carlos Manga (1928-2015), durante a final da Taça Guanabara.

No intervalo da partida entre Vasco e Flamengo, Pelé, Renato Aragão e um grupo de figurantes rodaram as últimas cenas do filme, diante de um público estimado de 121 mil torcedores. “A equipe de filmagem teve menos de 15 minutos para rodar aquelas cenas.

Em uma época em que não havia computação gráfica ou efeitos especiais, ainda mais no Brasil, essa foi a solução encontrada para dar aquele clima de final de campeonato, com estádio lotado e tudo o mais”, explica o jornalista Rafael Spaca, autor de O Cinema dos Trapalhões – Por Quem Fez e Por Quem Viu (Laços, 2016).

Os Trapalhões e o Rei do Futebol estreou no dia 26 de junho de 1986, a três dias da final da Copa do Mundo do México, e foi assistido por 3,6 milhões de espectadores.

No filme, Pelé interpretou um repórter esportivo chamado Nascimento que, aos 35 minutos do segundo tempo, aceita jogar como goleiro para ajudar o fictício time do Independência Futebol Clube. Bom de bola, o repórter ainda marca um golaço ao cobrar o tiro de meta. Placar final: Independência 5 x 4 Gavião.

“Guardo duas recordações do set de filmagens. Na ocasião, os Trapalhões alugaram um trailer de primeira para oferecer todo o conforto possível ao Pelé. Quando soube que teria um trailer só para ele, agradeceu, mas dispensou. Queria ficar junto com todo mundo.

Nas cenas de briga, Pelé ficava preocupado de não machucar os figurantes”, relata o humorista Dedé Santana que, por dispensar dublê, quebrou os dois pés logo no início das filmagens ao pular de uma árvore e teve que fazer o restante do filme com uma bota de gesso pintada de preto no filme com o rei do futebol, que morreu nesta quinta-feira (29/12) aos 82 anos.

Crédito, ullstein bild

Legenda da foto,

Pelé nas gravações do filme Fuga para Vitória

Talento imodesto

Aquela não foi a primeira vez em que Pelé atuou em um longa-metragem. A primeira participação dele na tela grande foi no filme O Rei Pelé, de 1962, com direção de Carlos Hugo Christensen (1914-1999).

O longa conta a trajetória de vida do menino nascido em Três Corações, passando por Bauru e Santos até conquistar o mundo como rei do futebol. Pelé foi dublado por um menino durante a infância e por um rapaz para ilustrar a adolescência do rei. Tarefa difícil pois ambos não só tinham que guardar semelhança física com o rei, mas também serem bons de bola.

Mas a tabelinha do garoto que cresceu assistindo aos filmes da dupla Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo (1915-1993) com o cinema não parou aí. Em 1971, fez uma participação especial no filme O Barão Otelo no Barato dos Bilhões.

Logo, vieram outros, como Os Trombadinhas (1979), de Anselmo Duarte; Fuga para Vitória (1981), de John Huston, e Pedro Mico (1985), de Ipojuca Pontes.

Na ocasião, a primeira opção do cineasta para o personagem-título, um típico malandro dos morros cariocas, foi o americano Sidney Poitier (1927-2022).

Às voltas com sua candidatura para a Academia de Hollywood, o astro de Ao Mestre, Com Carinho (1967) declinou do convite.

Como precisava de um nome forte para projetar o filme internacionalmente, Pontes convidou Pelé depois de conversar com o veterano John Huston (1906-1987) em Nova Iorque.

“Pelé deu algum trabalho, porque nunca foi um ator profissional. Mas era sensível, sincero e malandro para se sair bem. Trabalhamos para que ele não ‘interpretasse’, mas, sim, agisse naturalmente em cena. Ele foi correto, e a coisa funcionou”, avalia o diretor.

Além dos filmes, Pelé participou também de documentários, como Isto É Pelé (1974), de Eduardo Escorel e Luiz Carlos Barreto, Pelé Eterno (2004), de Aníbal Massaini Neto, e Cine Pelé (2011), de Evaldo Mocarzel.

“Dos filmes em que atuei, o que me deu mais prazer e reconhecimento foi, sem dúvida, Fuga para a Vitória“, elegeu Pelé, em entrevista à BBC News Brasil em 2020.

“Na época, jogava no Cosmos de Nova York e tive a chance de contracenar com Sylvester Stallone e Michael Caine. Se tivesse que me dar uma nota como ator, bem, acho que daria dez.”

Reza a lenda que, segundo o roteiro original, quem marcaria o gol de bicicleta na sequência final de Fuga para a Vitória seria Stallone. Mas, diante da dificuldade do astro de Rocky, Um Lutador (1976) de completar a jogada, ele teve que se contentar com o papel de goleiro.

Além de se enveredar pela telona, Pelé aceitou um convite da novelista Ivani Ribeiro (1922-1995), autora de “remakes” de sucesso, como A Gata Comeu (1985), Mulheres de Areia (1993) e A Viagem (1994), da TV Globo, para protagonizar uma produção de sua autoria, Os Estranhos (1969), na extinta TV Excelsior.

Na trama, o jogador dá vida a Plínio Pompeu, um escritor de sucesso que mora numa ilha distante e, certo dia, conhece e faz amizade com seres extraterrestres do planeta Gama Y-12. Na ocasião, Pelé conciliava as gravações da novela com os jogos do Santos.

Para não fazer feio em frente às câmeras, a direção da novela escalou o ator Stênio Garcia para “bater o texto” com o jogador. No jargão artístico, ensaiar as cenas antes da gravação.

“Pelé era muito gentil e esforçado. Estava aprendendo, né?”, recorda a atriz Rosamaria Murtinho, que interpretou uma das alienígenas da novela, Dioneia. “Mas, a novela não fez sucesso, não. Tanto que pedi para sair.”

Crédito, Arquivo Pró-TV/Museu da TV

Legenda da foto,

Stênio Garcia, Regina Duarte e Pelé nos bastidores da novela Os Estranhos, em 1969

De lá para cá, Pelé gravou outras participações: na sitcom Família Trapo (1967), da Record, onde aprendeu a jogar bola com Ronald Golias (1929-2005); no humorístico A Praça É Nossa (1991), do SBT, onde ouviu poucas e boas da fofoqueira Dona Vamércia, vivida por Maria Teresa Fróes (1936-1999); e na novela O Clone (2002), da TV Globo, onde visitou o bar da Dona Jura, interpretada por Solange Couto.

Na gravação, Pelé aproveitou a deixa para exercitar outra faceta artística: a de cantor. Ele soltou o vozeirão na música Em Busca do Penta, de sua própria autoria.

Pé quente, o jogador deu sorte à seleção comandada por Luís Felipe Scolari. Três meses depois, o Brasil venceu a Alemanha por 2 a 0 e conquistou a Copa do Mundo de 2002, na Coreia do Sul e no Japão.

Do gramado para o estúdio

Sim, além de aspirante a ator, Pelé também gostava de compor e cantar. Autor de mais de cem músicas, como Meu Mundo É Uma Bola, Cidade Grande e ABC do Bicho Papão, gravou um compacto ao lado de Elis Regina (1945-1982), participou de especial de Natal do Roberto Carlos e lançou um álbum produzido por Sérgio Mendes.

Um de seus álbuns, Peléginga (2006), gravado com coro, banda e orquestra, foi lançado apenas no mercado internacional. Com 12 músicas selecionadas entre as mais de cem que compôs, vendeu 100 mil cópias.

“Algumas de suas canções são boas. Outras nem tanto. Uma das minhas favoritas é Acredita no Véio. Ele compôs para o pai de santo que os jogadores consultavam antes dos jogos. Quando o time ganhava, estava tudo bem. Quando perdia, o pai de santo arranjava um monte de desculpa”, diverte-se o maestro, produtor e arranjador Ruriá Duprat.

Crédito, Divulgação

Legenda da foto,

Pelé e Ruriá Duprat no estúdio de gravação do álbum Peléginga, em 2006

No estúdio, Duprat conta que Pelé costumava dar trabalho, sim. Mas afirma que o jogador nunca se recusou a regravar uma música quantas vezes fossem necessárias: “Quando algo não está legal, sou franco, e ele procurava fazer melhor. Nessas horas, o Pelé não saía do estúdio enquanto não ficava satisfeito com o resultado”, diz.

Em 2009, Pelé e Duprat cogitaram a hipótese de lançar um novo álbum. Na ocasião, o ex-jogador chegou a convidar Bono para dividir os vocais em uma das faixas, mas o vocalista do U2 não pôde participar do projeto por causa da turnê 360º.

“Nunca pensei que, um dia, pudesse viver da música ou do cinema. O dom que Deus me deu foi jogar bola. A música e o cinema simplesmente aconteceram. Entre cantar e atuar, acho que me saio melhor atuando”, arriscou Pelé.

A Turma do Pelezinho

Foram muitos os convites que Pelé recebeu ao longo dos anos. Para fazer filmes, gravar novela, lançar discos. O mais inusitado de todos aconteceu a bordo de um avião, entre Roma e São Paulo. O convite partiu do desenhista Maurício de Sousa, o “pai” da Turma da Mônica, em 1976.

Crédito, Acervo MSP

Legenda da foto,

Pelé e Maurício de Sousa em 1977, no lançamento da revista Pelezinho

Sua ideia era transformar o atleta do século em personagem de história em quadrinhos. Pelé topou na hora. Passado algum tempo, Maurício agendou uma reunião em Nova Iorque e levou uns esboços para Pelé aprovar.

Com os desenhos em mão, o jogador franziu a testa. “Não gostou?”, perguntou Maurício. “O desenho está bonitinho, mas eu pensava que devia ser diferente”, gaguejou o jogador. “Diferente como?”, quis saber o desenhista. “Devia ser um atleta. Vitorioso, campeão…”, tenta explicar. “Pelé, a ideia não é essa. Criança gosta de brincar com criança”, argumentou. “Ah, não sei…”, coçou a cabeça, em dúvida.

Diante da indecisão do jogador, Maurício propôs um trato: levar os esboços para casa, mostrá-los aos filhos, Kelly Cristina e Edinho, e perguntar o que eles acharam. “Eu sabia qual seria a resposta e não deu outra. Os filhos do Pelé adoraram a versão infantil do pai e, assim, nasceu o Pelezinho”, orgulha-se Maurício que, para criar Cana Brava, Frangão e a turma do Pelezinho, colecionou histórias e mais histórias da infância de Pelé.

A revista do Pelezinho foi publicada de agosto de 1977 a dezembro de 1986. Desde então, só seria publicada em ocasiões especiais, como em 1990, por ocasião do aniversário de 50 anos do Pelé, e em 2012, às vésperas da Copa das Confederações do Brasil, em 2013.