- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
De lares para idosos — tradicionalmente chamados de “asilos” — a abrigos para orfãos, passando por creches e outras instituições, não são poucos os equipamentos assistenciais no país batizados em homenagem a São Vicente de Paulo (1581-1660).
O religioso que empresta seu nome a tantas obras de beneficência foi um padre nascido no interior na França, na região dos Pirineus, que acabou muito conhecido por seu empenho nos trabalhos sociais.
Canonizado em 1737 pelo papa Clemente 12 (1652-1740), ele recebeu o título de patrono de todas as obras de caridade da Igreja Católica — honraria concedida pelo papa Leão 13 (1810-1903), em 1885. São Vicente é celebrado no dia 27 de setembro, data de sua morte.
Conforme explica o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará, esse reconhecimento dado ao religioso por meio de homenagens nos nomes das instituições assistenciais é em decorrência da biografia do mesmo.
“Por causa de seu acolhimento a todos os necessitados, muito especialmente aos idosos que eram largados nas ruas”, frisa ele.
Esse ímpeto em atuar em prol dos mais pobres teria acontecido depois de um episódio importante em sua vida, já como sacerdote.
“Ele atuava como missionário, anunciando o evangelho e pregando entre camponeses pobres. Em determinado momento, ele presenciou o morte de um camponês e foi quando percebeu que havia uma carência na sacramentalização da Igreja, pois nem todos morriam recebendo os cuidados devidos”, contextualiza o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
“Isso marcou uma reviravolta no pensamento de Vicente e mudou a forma como ele enxergaria o apostolado”, acrescenta.
‘Homem para os outros’
A partir desse momento, já na segunda metade da década de 1610, o padre francês começou a reunir confrarias e diversos grupos de assistência. Em 1617, fundou a Damas da Caridade, hoje Associação Internacional de Caridades.
No mesmo ano, criou as Confrarias da Caridade. Oito anos mais tarde, fundou a Congregação da Missão. Em 1633, a Filhas da Caridade.
Maerki ressalta que, com essas organizações, Vicente de Paulo buscava soluções para dois pontos importantes no contexto francês da época. De um lado, as obras de caridade e o atendimento aos fiéis. De outro, a formação do clero — e para isso, sua intelectualidade era ferramenta basilar.
“Essas duas ideias são os pilares que construíram sua santidade”, pontua.
“Havia uma carência de formação teórica e moral do clero. E ele entendia que os padres deveriam ser bem formados para poderem guiar o povo de Deus”, comenta o pesquisador.
“São Vicente se preocupou muito com isso. E ao longo de 60 anos de trabalhos, foi um evangelizador incansável, com uma atividade apostólica muito intensa.”
Durante seu pontificado, papa João Paulo 2º (1920-2005) definiu São Vicente como “homem de ação e de oração, de organização e de imaginação, de comando e de humildade, homem de ontem e de hoje”. E afirmou que o religioso havia sido um camponês “convertido pela graça de Deus em gênio da caridade”.
Há uma famosa frase atribuída ao santo que sintetiza bem sua trajetória. “Não me basta amar a Deus se eu não amo o meu próximo. Os pobres são meu peso e minha dor”, teria afirmado ele.
Maerki analisa uma inovação vicentina, no contexto da época, a formação de um clero voltado às atividades mais pastorais.
“Segundo a concepção da escola francesa de formação de padres, o sacerdote deveria em primeiro lugar estar ligado ao altar, celebrando missas, dedicando-se aos ritos e a aspectos próprios da Igreja”, compara.
“São Vicente propôs a interpretação de que, na verdade, o padre é um ‘homem para os outros’, alguém que deveria se doar para os necessitados. Este é um elemento fulcral dos ensinamentos dele.”
De prodígio a escravizado por piratas
Nascido em uma pobre família de camponeses no ano de 1581, Vicente de Paulo teve uma infância em que se destacou pela inteligência. Decidiu se tornar padre, muito provavelmente, em busca de uma estabilidade de vida que não encontraria de outra forma, dadas as dificuldades de ascensão social.
“Naquele início de século 17, o Estado eclesiástico significava uma espécie de afirmação social. Ser padre era questão de status”, pontua Maerki.
Foi ordenado com apenas 19 anos, o que indica, conforme explica Lira, que tenha havido alguma “autorização da Santa Sé, por conta da idade mínima”. Sua facilidade de aprendizado e seu afinco aos estudos devem ter sido utilizados para fundamentar tal processo.
Contudo, nunca negou suas origens humildes. “Ele se autodenominava ‘porqueiro e andrajoso'”, diz o pesquisador Maerki.
Em 1605, foi surpreendido com uma herança. Uma viúva que admirava seu trabalho como pregador morreu e deixou a ele uma propriedade em Marselha, acreditando que Vicente saberia administrar tudo em favor dos pobres.
Ele precisou viajar até lá por conta do inventário e, na volta, acabou vítima de uma emboscada. Piratas turcos o sequestraram, levaram-no a Túnis, onde ele foi escravizado.
Foi vendido primeiro a um pescador, depois a um químico. Quando este morreu, acabou sendo obrigado a servir o sobrinho dele — que acabou vendendo-o para um fazendeiro.
Ali sua sorte mudaria. O fazendeiro era um ex-católico, que havia se convertido ao islamismo com medo de ser perseguido. Vicente fazia os trabalhos que lhe ordenavam e, durante a labuta, costumava entoar cânticos religiosos cristãos.
Uma das três esposas do fazendeiro encantou-se com isso e foi procurar saber o que era. Quando soube, teria dito ao marido. E este, recordando-se de seu passado como cristão, decidiu ajudar o escravizado.
Planejaram o retorno do religioso à França — e o próprio fazendeiro teria se convertido novamente ao cristianismo. Cruzaram o Mediterrâneo juntos e se estabeleceram em Avignon. Vicente assumiu novamente suas funções como padre, estudou direito canônico e se tornou monge.
Destacado por seu trabalho, acabou caindo nas graças até do rei francês, Henrique 4º. (1553-1610), que chegou a incumbi-lo como portador de documentos que precisava remeter ao papa, entre outras tarefas. Como agradecimento, Vicente foi nomeado capelão da rainha e tinha a prerrogativa de atuar como esmoleiro e cuidador de pobres e doentes em nome da coroa.
“Para ele, a caridade era algo essencial. Ele poderia ter se tornado um bispo, com o prestígio que tinha, destacado na vida social e religiosa francesa”, pontua Lira. “Mas preferiu servir aos menos favorecidos. Por isso ele fundou entidades religiosas masculina e feminina, para fazer caridade. Levava fé, conforto e apoio aos que mais necessitavam. Isso o fez um santo tão perfeito e mesmo mais de 360 anos de sua morte ainda é lembrado, reverenciado, amado.”
Em um momento marcado por conflitos religiosos mesmo dentro do cristianismo, com o advento de religiões protestantes e a perda da hegemonia da Igreja Católica, Vicente de Paulo preferia a conciliação.
“Era um homem de consciência religiosa e humana extraordinárias”, diz Maerki. “Ele não entrava nos embates com protestantes, preferia não entrar nesse tipo de debate, não alimentar polêmicas.”
Quando morreu, em 27 de setembro de 1660, já era reverenciado como um homem santo. Nas palavras do religioso Francisco de Sales (1567-1622), que o conheceu pessoalmente, aquele era “o homem mais santo do século”.
Reconstituição realista
Vicente de Paulo foi sepultado em Paris. Seus restos mortais estão em uma capela que leva seu nome.
Em fevereiro deste ano, em um trabalho idealizado por José Luís Lira e executado pelo designer brasileiro Cicero Moraes a partir de estudos de oito especialistas em medicina forense, teve seu rosto reconstituído de forma realista e tridimensional.
Conforme conta Lira, tudo começou em 2015, quando em uma pesquisa de rotina para um artigo científico ele encontrou fotos do crânio do santo, “tomadas no reconhecimento de suas relíquias, em 1960”. “Então pensei na possibilidade da reconstrução facial”, relata. “Busquei o amigo Cicero Moraes, um dos maiores especialistas em reconstrução facial, e perguntei se aquelas imagens seriam suficientes.”
Moraes tem uma carreira marcada por trabalhos do tipo. Já reconstituiu faces de dezenas de personalidades, de Santo Antônio de Pádua (1195-1231) a dom Pedro 1º. (1798-1834). Para o uso das imagens, Lira solicitou autorização de padre Gregory George Gay, superior geral da congregação vicentina, e obteve os negativos das fotos, que estão sob a guarda da Universidade DePaul, em Chicago, nos Estados Unidos.
“O resultado da reconstrução foi apresentado ao mundo em fevereiro deste ano, na Catedral da Diocese de Crato, no Ceará”, relata. “Vimos, na imagem, o olhar, o envelhecimento, não presente nas imagens não-contemporâneas à morte do santo, que se deu aos 79 anos. A reconstrução está com essa idade e características.”
Lira destaca alguns aspectos da fisionomia de Vicente, principalmente a boca. “Seus dentes superiores eram mais para dentro que o normal e o queixo, mais avantajado. Havia uma retrusão e isso não ficou claro nas imagens anteriores. Eu fiquei muito feliz com o resultado e até refleti que Deus busca é a beleza interior.”
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