Mais de 150 mil torcedores frequentaram os setores visitantes dos estádios no 1° turno da Série A do Brasileirão. Ainda que isso represente apenas 4% do público total do campeonato (mais de 3,8 milhões), os números evidenciam dados sobre as capilaridades nacionais das torcidas brasileiras e discrepâncias de tamanho dos clubes na primeira divisão. Flamengo e Corinthians lideram o ranking com mais de 30 mil pessoas em nove jogos, média superior a 3.500 por partida e setores esgotados em todos os cantos do país. Mas a real disputa sobre o tema não é por quem leva mais gente em jogos fora de casa, e sim se o direito a assistir uma partida do seu time fora do seu estádio seguirá existindo no Brasil.
Só no primeiro turno do Brasileirão, dez jogos — uma rodada inteira — tiveram determinação de torcida única. Flamengo x Palmeiras, por uma decisão do STJ; seis clássicos paulistas, por uma determinação estadual já tradicional; os clássicos goiano e paranaense e a partida entre Juventude e Athletico-PR, em Caxias do Sul-RS, quando os visitantes foram proibidos de entrar após uma briga do lado de fora do estádio. A violência é, justamente, o principal argumento de quem quer acabar com o setor visitante no Brasil. Um dos maiores defensores da bandeira é justamente o presidente do clube paranaense.
“A gente briga muito porque a preocupação é com a violência dentro de campo ou fora dele, nas proximidades. Tivemos casos seríssimos, 20 jogos punidos. Nós brigamos pela torcida única. Não tem mais condições. É um custo absurdo na sociedade, um custo absurdo nos clubes”, destacou Mario Celso Petraglia, que até propôs liberar bandeirões e adereços à organizada do clube na Arena da Baixada se eles parassem de viajar para ver o time fora de Curitiba. “Acho que haverá a torcida única muito rapidamente para o Brasil todo”.
O discurso encontra ecos silenciosos e ruidosos em outros clubes e autoridades públicas do país. Em São Paulo, a Secretaria da Segurança Pública do Estad, junto com o Ministério Público, a Polícia Militar, Civil e o Juizado do Torcedor, decidiu por torcida única em todos os clássicos em 2016. Ainda que brigas e mortes entre torcedores sigam acontecendo em dias de jogos, mesmo em pontos distantes do estádios, a entidade se diz satisfeita com a medida.
A Secretaria não respondeu os contatos da reportagem, mas há menos de um mês disse, em nota ao Estadão, que “a medida trouxe resultados efetivos, uma vez que muitas vidas foram poupadas e houve melhoras na sensação de segurança na população de maneira geral” e que não há plano ou previsão de revogação da medida. Segundo a entidade, houve redução de 43% nas ocorrências de confrontos de torcidas se comparados os 44 clássicos antes e depois da decisão.
Para Flávio de Campos, professor da pós-graduação em História Sociocultural do Futebol na Universidade de São Paulo (USP), a medida é um atestado de incompetência do poder público.
“Não há capacidade de se fazer uma gestão democrática que respeite o torcedor. Respeitar não é ser conivente com a violência. Significa ter políticas públicas de contenção à violência, ter polícia especializada e ter um trato de diálogo com as organizadas. Dar participação e cobrar responsabilidades. Esta rivalidade simbólica na arquibancada contribui para atenuar a violência, não estimular. Eliminou-se a presença de duas torcidas no mesmo espaço, mas os conflitos continuam a ocorrer fora do estádio”, opinou.
O jornalista botafoguense Pedro Dep viaja para todos os jogos do Botafogo fora de casa desde 2017 e divulga as experiências — que vão muito além do estádio — nas redes sociais do “Setor Visitante”, seu canal. Para ele, o perfil do torcedor visitante vai além do senso comum.
“O setor visitante tem a função de conectar o clube com torcedores espalhados no Brasil inteiro. Nos jogos que vou, 10 ou 20% é de gente do Rio. A grande maioria é local, que tem a oportunidade uma ou duas vezes no ano de ver seu time. Eles só querem se sentir próximos”, analisa. “E não tem sensação melhor no futebol do que calar um estádio cheio em uma vitória fora de casa. É algo que todo torcedor deveria viver uma vez”.
Se Dep destaca a importância dos visitantes para a cultura do futebol, Campos ressalta que a tentativa de proibição ajuda a entender aspectos sociológicos do país.
“A gente vive um momento curioso no Brasil. No lugar de estimular o diálogo, a gente estimula a eliminação um do outro. E precisamos retomá-lo. A sociedade só resolve seus problemas se cultivar a cultura da negociação. Estou falando isso porque o futebol mais uma vez parece uma janela privilegiada para entendermos a sociedade brasileira”.
Fonte de renda
Fora do país, há situações distintas. Enquanto na Argentina a torcida única é uma realidade no futebol local — só há torcida visitante em ligas menores ou jogos internacionais — , na Inglaterra o away fan é parte fundamental da cultura boleira britânica, sendo visto como alguém mais aguerrido e fanáticos. Em estádios ingleses, é comum o setor visitante cantar mais alto do que o local.
Por aqui, há quem saiba aproveitar a demanda. Os seis primeiros times do ranking, por exemplo, têm capilaridade nacional em suas torcidas, o que faz os mandantes aumentarem o preço ou até mesmo o tamanho do setor visitante (pela regra da CBF, os times podem solicitar até 10% dos ingressos para sua torcida) para lucrarem mais com bilheteria nos confrontos.
Os times cearenses são exemplo. Três dos cinco maiores públicos visitantes do turno foram no Castelão, incluindo o maior, quando o Ceará disponibilizou mais de 12 mil ingressos para torcedores do Flamengo.
“Nós gostamos de receber os visitantes. Temos no nosso estado muitas pessoas que torcem por times que não são daqui. E é uma fonte de renda. Temos 44 mil sócios, portanto quem vai na nossa torcida não paga para entrar no dia do jogo, e a torcida visitante paga”, destaca Marcelo Paz, presidente do Fortaleza.
“Não tem mais condições. É um custo absurdo na sociedade, um custo absurdo nos clubes”. Mario Celso Petraglia, presidente do Athletico-PR. “O setor visitante tem a função de conectar o clube com torcedores espalhados no Brasil inteiro.”
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Fonte: Folha PE