- Leandro Machado
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Começa assim a carta que libertou João (nome fictício) da cadeia depois de quatro anos em regime fechado: “Aos excelentíssimos senhores ministros, declaro para os devidos fins que sou pessoa humilde, não podendo pagar um advogado particular. Pedindo então o auxílio de um defensor público”.
O assunto do texto: “Pedido de Revisão Criminal”. O destinatário era o Supremo Tribunal Federal (STF).
João, um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclusão por um assalto ocorrido em 2018 em um bairro da periferia de São Paulo. Na carta, ele conta não ter nada a ver com o crime, e que sua prisão e sentença foram ilegais.
A correspondência, escrita na cela de um presídio no interior de São Paulo, chegou a Brasília e foi encaminhada à Defensoria Pública da União (DPU), que assumiu o caso e entrou com um recurso no STF.
Para três dos cinco ministros da 2ª turma do Supremo, a detenção não seguiu a lei e o jovem fora condenado sem provas. Ele foi inocentado em fevereiro.
Hoje livre, João agora tenta lidar com as consequências dos anos encarcerados. “A prisão acabou com a minha vida. Parei no tempo”, diz, na casa de sua mãe, com uma cópia da carta nas mãos — ele escreveu outras quatro, mas só uma foi anexada ao processo.
Não só ele parou no tempo, toda a família parou. Sua mãe por quatro anos sofreu com a ausência do filho, sentimento de impotência e falta de dinheiro para bancar um advogado particular.
“Qualquer um cobrava R$ 5 mil só para analisar o processo. A gente economizava, pedia emprestado pra parentes e amigos, mas não dava para manter”, diz ela.
O dinheiro da família era tão curto que não sobrava nem para visitar João no interior.
“Sempre mudavam ele de cidade, a 300 quilômetros ou mais. A gente não tinha como pagar carro, gasolina, estadia… Estava tentando sobreviver aqui, fiquei quatro anos sem dormir direito, só pensando nele naquela cadeia”, conta.
‘Nada de ilícito’
O caso de João começou em uma noite chuvosa no final de 2018, quando três pessoas foram assaltadas em frente a uma casa na periferia paulistana.
Eram três os ladrões, um deles armado. O trio levou um relógio, um celular e R$ 100. A Polícia Militar foi chamada, e passou a circular pelas ruas.
Uma hora depois, em uma ciclovia que liga vários bairros da região, os policiais “avistaram um indivíduo correndo em desabalada carreira”, segundo o boletim de ocorrência.
Era João. “Eu estava voltando de uma balada, não sabia de roubo nenhum. Estava correndo porque chovia forte, e eu queria chegar rápido em casa. Quando passava embaixo de um viaduto, apareceram uns policiais atrás da pilastra”, conta.
Os agentes relataram que não foi encontrado “nada de ilícito” com o jovem — o paradeiro da arma usada no crime é desconhecido. “Indagado acerca do roubo, este negou peremptoriamente a conduta”, os PMs disseram ao delegado, mais tarde.
Os policiais então tiraram uma foto do jovem e a enviaram pelo WhatsApp para colegas que estavam com as três vítimas. Elas disseram ter reconhecido João pela imagem no celular. Ele foi preso em flagrante — ninguém mais foi detido.
Mais tarde, na delegacia, as três vítimas o reconheceram pessoalmente.
O problema é que todo o processo criminal que se seguiu, calhamaço que por anos mobilizou promotores, defensores, desembargadores e até ministros do STF, foi baseado nesse reconhecimento produzido de uma maneira considerada ilegal pela própria Justiça.
O artigo 226 do Código de Processo Penal determina que o reconhecimento de suspeitos tem de seguir algumas regras.
Pessoas parecidas fisicamente devem ser colocadas lado a lado, e a vítima vai apontar quem ela acredita ser o autor do crime. Ou seja, não é permitido colocar uma pessoa baixa, branca e loira ao lado de um homem negro, alto e corpulento.
Com João essas regras nunca foram seguidas. Na delegacia, as vítimas o reconheceram novamente, mas ele foi a única pessoa apresentada pelo delegado. Em audiência no fórum, aconteceu da mesma forma.
O argumento da defesa sempre versou sobre esse ponto: João foi reconhecido de maneira ilegal, e não havia outras provas contra ele.
“O reconhecimento fotográfico pode gerar identificações equivocadas, como já aconteceu inúmeras vezes. Hoje o entendimento é de que ele não pode servir como única prova. Quando há outras, é considerado como um ponto a mais para justificar a condenação”, diz Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor público federal que representou João no STF.
“Não quer dizer que a vítima aja de má-fé para prender um inocente, mas ela está em um momento de tensão, nervosismo, medo… É comum se confundir vendo uma foto isolada, fora de contexto”, diz.
“Mas, no caso dele, não havia mais nada. A foto foi feita à noite, no escuro. Na delegacia, as vítimas dificilmente iriam mudar de opinião porque elas já tinham reconhecido pela imagem, e ele foi a única pessoa mostrada”, diz.
O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou João, alegando que as provas “eram robustas e maciças”. Citou como exemplo o reconhecimento e o testemunho dos policiais sobre o flagrante — esses, no entanto, não estavam no momento do crime.
Quando a Defensoria Pública de São Paulo pediu a revisão da sentença, o procurador José Antonio Franco da Silva respondeu que, na análise de roubo, “a palavra da vítima assume peso fundamental no contexto probatório para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como única fonte.”
Para ele “a utilização da fotografia do acusado não significou fundamento para a condenação, que está alicerçada no reconhecimento pessoal, realizado em duas oportunidades, afastando por completo eventual dúvida acerca da autoria.”
Relator do caso no Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade concordou com a tese do MP e manteve a condenação.
Mais tarde, três ministros do STF discordaram desse argumento e absolveram o jovem (leia mais abaixo).
Já na carta ao STF, o pedreiro contou toda a história sobre como foi reconhecido pelo WhatsApp. E explicou: “Em matéria criminal, tudo deve ser preciso e certo para que não haja possibilidade de desencontros na apreciação das provas.”
‘Julgaram pelo passado’
João conta que procurou o Código Penal na biblioteca da cadeia para entender seu caso e fundamentar as cartas enviadas à Justiça.
“Comecei a ler até entender a lei. Vi que reconhecimento por foto não era correto. Falei com funcionários do presídio, e todo mundo me falava que isso não existe, que eu tinha de recorrer. Alguém me orientou a escrever pra Brasília.”
Na correspondência, ele credita sua prisão ao preconceito por causa de uma condenação anterior — ele estava cumprindo regime semiaberto por um roubo. “Os policiais pegaram o primeiro que apareceu na frente, viram que eu tinha passagem e me prenderam”, diz.
Sua mãe vai na mesma linha. “Julgaram meu filho pelo passado. Ele estava se recuperando, fazendo cursos, tinha arrumado um emprego. Ele me contou da primeira vez que ele errou. Mas dessa vez ele me disse: ‘dessa vez eu não fiz, mãe'”, conta.
Para ela, a abordagem policial e a condenação foram influenciadas pelo racismo. Ela acredita que a história teria sido outra se seu filho fosse branco.
“Se você é negro, se anda na rua com determinada roupa, de chinelo, já te veem como maloqueiro, ladrão. Passei por isso também, muitas vezes. Em qualquer abordagem tem essa diferença. Se meu filho fosse loiro, cabelo liso, teria sido solto, porque ele não estava com nada, não estava com arma, nada.”
Ela conta que, depois de quatro anos, a cadeia mudou seu filho.
“Ele voltou outra pessoa: magro, sem vontade de comer, não consegue dormir, não sai de casa, não tem ânimo para nada. E eu morro de medo de ele sair e ser preso de novo, não paro de ligar para saber onde ele está”, diz.
João cita outro efeito negativo. Quando foi preso, ele esperava um filho com uma garota com quem se relacionou brevemente. “Meu filho nasceu comigo na cadeia. Não o vi nascer, nunca tive contato com ele. Cresceu sem o pai. Hoje, ele não me reconhece”, diz.
Acesso à defesa
João, que parou de estudar no Ensino Médio, é um exemplo do perfil majoritário dos presos do Brasil: negro, jovem, de pouco estudo e baixa renda. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, dois em cada três detentos são negros — apenas 51% concluíram o Ensino Fundamental. Já 62,3% têm entre 18 e 34 anos.
Em 2020, o Brasil tinha 919.651 pessoas detidas, alta de 209% em relação a 2005 — os dados são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O número de vagas no sistema, porém, era de 442 mil.
Embora o Código Penal preveja mais de mil crimes, apenas três deles correspondem a 71% de todo o sistema carcerário: tráfico, furto e roubo. Já delitos contra a pessoa, como homicídio, respondem por 11,3% do total.
“Furto, roubo e tráfico acontecem nas ruas: a polícia prende em flagrante sem investigar, e a Justiça costuma condenar com provas frágeis. Quem é preso nessas circunstâncias? Os pobres que transitam pelo espaço público”, disse Maurício Dieter, professor de criminologia da USP, em entrevista recente à BBC News Brasil.
Escrever uma carta ao STF foi a solução encontrada por João para que sua historia fosse analisada com mais cuidado. “Eu sentia que ninguém prestava atenção ao processo”, diz.
Quem leu sua mensagem foi a defensora pública federal Miriam Aparecida de Laet Marsiglia, de Brasília. “Para mim ficou muito claro que ele era inocente, e que precisávamos corrigir a injustiça. Foi um caso que me tocou muito”, diz.
Há quatro anos, o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmaram um acordo para repassar as correspondências de presos enviadas a Brasília para a Defensoria Pública da União (DPU).
Apenas Miriam, uma das responsáveis pelo serviço, recebe cerca de 30 mensagens por semana.
“Normalmente, quando o preso manda carta é porque está desesperado por uma defesa melhor. Muitas pessoas não conseguem manter um advogado particular, porque é muito caro. Ou sentem que o defensor público não dá muita atenção ao caso”, diz Miriam.
Um recente estudo da DPU apontou que, embora o número de defensores tenha crescido nos últimos anos, o Brasil tem apenas 6.956 desses profissionais em atuação. Em média, há um defensor para cada 29,9 mil pessoas com renda de até três salários mínimos (cerca de R$ 3,6 mil), parcela considerada economicamente vulnerável e público-alvo do serviço.
Mas os dados acima se referem apenas aos defensores estaduais, que atuam na primeira e segunda instâncias da Justiça.
No caso da defensoria federal, que representa réus em cortes superiores como STJ e STF, a situação é ainda mais dramática: há apenas um defensor para cada 291 mil pessoas de baixa renda.
“A demanda é muito grande em relação à quantidade de profissionais. A defensoria não dá conta de atender às pessoas. Muitas vezes o defensor tem muito processos para cuidar e não se concentra em determinado caso como deveria”, diz Gustavo Almeida, da DPU, que atua no STF há 15 anos.
Outro problema é a falta de defensores em muitas comarcas da Justiça pelo país — ou seja, nesses pontos há juízes e promotores, mas falta quem defenda os mais pobres. Nesses casos, o Judiciário indica um advogado para representar o réu, e ele é remunerado pelo trabalho. Mas nem sempre o sistema funciona como deveria, segundo defensores.
Alessa Veiga, defensora pública de Minas Gerais, conta ter enfrentado esse problema quando visitava presídios da região de Uberlândia.
“Havia detentos de várias cidades sem defensoria. Eles também não tinham advogado, e a gente só ficava sabendo quando o preso escrevia um bilhete contando sua história”, diz.
‘Memórias falhas’
No início do ano, o processo de João ficou conhecido nos tribunais de Brasília como uma mudança na jurisprudência sobre reconhecimento de suspeitos. A partir dele, os processos devem seguir as regras do Código de Processo Penal — em nota, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo afirmou que a norma é seguida nas delegacias do Estado.
Embora a Procuradoria-Geral da República (PGR) tenha pedido a confirmação da sentença, os ministros do STF Gilmar Mendes, Edson Fachin e Kassio Nunes Marques votaram pela absolvição do pedreiro, alegando que não havia provas e que o reconhecimento por WhatsApp é ilegal.
Para Mendes, relator do caso, as provas de um crime não devem se basear apenas na memória das testemunhas, porque “memórias podem falhar ou ser influenciadas por agentes externos”.
Em seu voto, ele sustenta que a prova deve ser anulada caso o reconhecimento do suspeito não siga as regras do Código Penal. Também ressalva que o reconhecimento fotográfico poderia ser aprimorado e regulado, mas ainda assim seriam necessárias mais provas para justificar uma condenação.
Sobre o caso de João, o ministro ainda questionou os motivos que fizeram os policiais escolherem o jovem como um suspeito do roubo: “Não há, nos autos, informações que expliquem por qual razão os policiais fotografaram o recorrente no momento da abordagem, uma vez que, com ele, nada foi encontrado.”
Já Ricardo Lewandowski ficou ao lado de André Mendonça — ambos consideraram as provas suficientes. Lewandowski, por exemplo, afirmou que, embora o procedimento fotográfico seja ilícito, João fora reconhecido outras duas vezes pessoalmente — na delegacia e em audiência.
“Tal mosaico fático, acrescido dos depoimentos dos policiais militares, a meu sentir, traduz um quadro seguro quanto à autoria dos ilícitos penais”, escreveu o ministro.
O placar foi apertado (3 a 2), mas o jovem acabou absolvido. “Eu nem esperava mais sair… Mas um dia me chamaram na cadeia dizendo que eu estava livre, nem sei dizer o que senti, falta a palavra”, conta.
Sua mãe só soube da vitória quando o filho chegou em casa. “Ele nem me avisou, não ligou. De repente apareceu na minha frente, meu coração quase parou”, relata.
Na sala do pequeno sobrado da família, o rapaz recebeu da reportagem uma cópia da carta que o tirou do presídio. “Lembro bem quando escrevi essa. Foi a única com tinta era verde…”, diz.
A carta termina assim: “Peço que meu processo seja revisado porque estou sendo punido por algo que não cometi. Para uma possível condenação tudo deve ser claro como a luz. Condenação exige certeza, e não ‘alta probabilidade’. Desde já agradeço e aguardo retorno.”
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