• Edison Veiga
  • De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Crédito, Marcelo Correa/ Divulgação

O Menino Maluquinho, Flicts,O Joelho Juvenal… São inúmeras as criações de Ziraldo que não só povoam o imaginário infantil por gerações como têm um reconhecimento acadêmico de grandeza e qualidade.

Para especialistas, ele já é um clássico e sua obra pertence ao primeiro escalão do cânone cultural brasileiro.

Nascido em Caratinga (MG) há exatos 90 anos, Ziraldo Alves Pinto está recluso. Sua saúde debilitou-se bastante depois de três acidentes vasculares cerebrais sofrido de 2018 para cá.

De acordo com a família, por ordens médicas, ele não pode conceder entrevistas.

O que não impede que amigos e fãs celebrem seu aniversário com alegria e, principalmente, reconhecimento.

Neste mês O Menino Maluquinho se tornou série de animação do serviço de streaming Netflix, há o relançamento, em edições especial, de duas de suas obras — O Bichinho da Maçã e Menina Nina.

E ainda um livro-homenagem, preparado pelo cartunista Edra, com 45 cartuns e 45 depoimentos de pessoas que foram influenciados por Ziraldo: 90 Maluquinhos por Ziraldo – Histórias e Causos.

Em um dos seus mais recentes vídeos, gravado em 2019 para divulgação de uma exposição dedicada a ele, Ziraldo comentou que não estava triste, ao se desculpar pela voz um tanto abatido. Era a idade que havia chegado.

“Vocês podem achar que eu estou um pouco triste, falando devagar, porque não é meu estilo. Acontece que eu de repente fiquei velho. Foi outro dia. Eu acordei de manhã e estava velho”, disse ele, vestindo um de seus indefectíveis coletes. “Mas eu estou alegre, estou feliz da vida.”

Ziraldo virou “o Velhinho Maluquinho”.

Em depoimento por escrito enviado à reportagem, o quadrinista Mauricio de Sousa, criador da Turma da Mônica comentou que “falar do Ziraldo é chover no molhado”, já que “todo mundo tem um grande carinho por ele e seus personagens”.

Mauricio cita a obra de ambos para ressaltar que “nossa história se entrelaça junto com as crianças e nossos personagens”.

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O cartunista Edra preparou um livro-homenagem para celebrar os 90 anos de Ziraldo

“Ziraldo sempre diz que o mais importante é ler. Mas para que isso aconteça, cada vez mais, é preciso ter autores como ele para arrebatar milhões de crianças leitoras”, comenta ele, desejando “90 anos de sorrisos e muito mais” ao amigo e colega de profissão.

A cartunista Laerte define Ziraldo como “uma referência total, um mestre”.

“Por todos os motivos possíveis. Ele é alguém que fez parte da formação de todos nós, cartunistas e quadrinistas da geração seguinte, vamos dizer”, comenta.

“E sempre foi uma pessoa muito disponível: sempre nos recebeu, sempre nos ajudou, sempre nos apoiou e deu opinião. É uma pessoa que sempre foi muito aberta.”

Ela diz que Ziraldo é alguém “que nunca se atrapalhou com nada, jamais teve qualquer empecilho como autor, como artista gráfico, como pessoa absolutamente genial”. “Ele presta atenção aos detalhes em que é bom prestar atenção. E ensinou a gente a prestar atenção nessas coisas”, afirma.

Renomado autor de best-sellers infantojuvenis, Pedro Bandeira acredita que “o talento, o patriotismo e a coragem de Ziraldo construíram um Brasil bem maior”.

Bandeira diz que acompanha o trabalho do cartunista desde a sua própria infância.

“Até tornar-me seu amigo, acompanho os talentos deste artista desde meus 10 anos, curtindo seus trabalhos como quadrinista, escritor, jornalista, caricaturista, ilustrador e, principalmente, como patriota. E olhe que, quando eu tinha 10 anos, Ziraldo tinha apenas 20 e já era um quadrinista de primeira!”, afirma.

“Logo, quando a ditadura arrasava e dentre seus ataques impunha-nos uma censura que me prejudicava especialmente, porque eu vivia do jornalismo e atuava como ator de teatro, Ziraldo publicou o mais lindo poema gráfico da história do Brasil: Flicts, que veio para dar força aos injustiçados, aos exilados, aos expropriados pelo fascismo brasileiro”, acrescenta Bandeira, sobre o livro que conta a história de uma cor que não era aceita pelas outras.

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‘Nossa história se entrelaça junto com as crianças e nossos personagens’, diz Mauricio de Sousa

Segundo o escritor, em Flicts Ziraldo enxugou “nossa lágrima, ao dizer que, em algum lugar, talvez na Lua, ainda haveria esperança para nosso desespero”.

“Quando eu lia o livro para meu filho, parecia ouvir a voz do Ziraldo: ‘Calma, a arte um dia vencerá a injustiça’. Eu entendi, Ziraldo. E há de vencer novamente”, diz.

Bandeira avalia que “Ziraldo é mestre, mas não é imitável”.

“Ninguém pode ser Ziraldo. Quando ele ilustra, o livro inteiro cresce, explode e se magnifica. Numa Bienal ou numa feira de livros, Ziraldo é cercado pelas crianças e adultos que o leem como se fosse um Papai Noel distribuindo brinquedos”, analisa.

“E ele aceita ficar por horas autografando para seus leitores, tirando fotos e fazendo caricaturas nos livrinhos.”

“Todos nós, escritores para crianças e jovens, somos fãs do auditório do Ziraldo”, acrescenta.

“Os textos de Ziraldo não têm vilões. Todos seus pequenos heróis, como o Menino Maluquinho, flutuam pelas histórias como se dançassem em seus próprios sonhos. Só Ziraldo sabe como as crianças sonham”, comenta Bandeira.

O escritor comenta que desde a pandemia está “enfurnado” mas que tem saudades de conviver com o amigo.

“Falamos por telefone, trocamos carinhos, mas nada consola minha vontade de ouvir novamente sua voz, ver seu sorriso quando acolhe algum leitorzinho de olhos arregalados de admiração”, diz.

“Nós, que o amamos, jamais poderemos oferecer tanto amor quanto ele já espalhou pelo Brasil.”

Presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, José Alberto Lovetro, mais conhecido como JAL, define Ziraldo como alguém que “tem o DNA da cultura brasileira”.

“Não só por sua arte no humor gráfico, mas também por criar personagens que invadem a vida das pessoas como se fossem da família de cada um. Agrada crianças de até 100 anos de idade”, comenta.

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Entre os cartuns do livro comemorativo, está este de Angeli

JAL conta que quando era bastante jovem encantou-se pelo jornal ‘O Pasquim’, semanário alternativo que circulou durante a ditadura militar e que teve Ziraldo no time.

“Quando eu era ainda garoto já era absorvido pelo Pasquim. De ameba fui descobrindo o que era política. E Ziraldo sabe conquistar a inteligência das pessoas”, recorda.

“Fiquei inebriado por aquela linguagem engraçada e ao mesmo tempo cheia de estilo. Virei desenhista.”

Trajetória de sucesso

Responsável pela publicação da obra dele na Editora Melhoramentos, a editora Leila Bortolazzi avalia que trabalhar com ele “nunca foi muito complicado”.

“Mas claro que, como todo artista compulsivo, obsessivo em atingir a perfeição, ele costumava fazer várias revisões em textos e ilustrações”, lembra ela.

“Tudo era muito bem cuidado, ia e voltava, sempre era assim.”

Ela recorda que antes de o trabalho ser feito por meio de digitalização, “era sempre um evento” quando, com a pastinha debaixo do braço, o autor ia pessoalmente até a editora para levar seu trabalho e defender as ilustrações.

“Quando chegava um livro novo dele era sempre uma novidade, porque ele sempre foi muito criativo, muito original, muito único. Acho que isso faz a obra dele ser tão perene: a originalidade, a criatividade dele”, comenta.

“Fica até difícil comparar, não tem como falar ‘tem influência disso e daquilo’. Ele é muito original mesmo, seu trabalho e seu traço é único e bem marcante.”

Bortolazzi começou a trabalhar na Melhoramentos em 1981, ou seja, sua trajetória na empresa é praticamente tão longa quanto o sucesso de Ziraldo no mundo dos livros — O Menino Maluquinho, seu maior sucesso, foi lançado em 1980; hoje acumula 18 edições, 135 reimpressões e já vendeu mais de 4,1 milhões de exemplares.

Com mais de 200 livros publicados, Ziraldo tem diversos outros best-sellers. Uma Professora Muito Maluquinha, de 1995, já vendeu mais de 500 mil exemplares. Menina Nina, de 2002, 140 mil. O Bichinho da Maçã, de 1982, mais de 300 mil. O Planeta Lilás, de 1984, 200 mil. O Menino Quadradinho, de 1989, 120 mil. Flicts, de 1984, mais de meio milhão de exemplares.

Ziraldo começou sua carreira em 1954 no jornal Folha da Manhã — hoje Folha de S. Paulo. Ele tinha uma coluna de humor. Depois passou pela revista O Cruzeiro e pelo Jornal do Brasil. Em 1960 lançou o primeiro gibi brasileiro feito por um só autor, a Turma do Pererê — a publicação acabou descontinuada a partir de 1964, por conta da ditadura militar.

Durante o regime autoritário, foi um dos idealizadores e parte integrante da equipe do semanário de contracultura O Pasquim, que fez sucesso e acabou marcando uma geração. Ele acabou sendo preso no dia seguinte a promulgação do Ato Institucional Número 5, em dezembro de 1968.

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O livro ‘Flicts’, de 1984, vendeu mais de meio milhão de exemplares

Figura sempre ligada à esquerda, ele foi membro do Partido Comunista Brasileira. Em 2005 ele se filiou ao recém-criado Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e desenhou o logo da agremiação. Nas últimas eleições, declarou apoio a candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT), como nas duas vezes em que Dilma Rousseff ganhou a eleição e, na última, quando Fernando Haddad ficou em segundo lugar.

Sucesso de crítica

Professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora do livro Articulação Textual na Literatura Infantil e Juvenil, Leonor Werneck dos Santos considera “impossível falar de literatura infantil brasileira sem falar de Ziraldo”.

“Ele deu grande impulso à literatura infantil no Brasil, trouxe a literatura infantil para um lugar de destaque, inclusive academicamente”, avalia.

Ela acredita que isso se deu por um conjunto de fatores, como a criatividade, a atualidade dos temas, a “linguagem que toca fundo no leitor de todas as idades, “o traço e o projeto gráfico que parecem tão simples mas são cuidadosamente pensados e dialogam com a proposta de cada livro”.

“Tudo faz com que a obra ultrapasse a época em que é produzida. Por isso se torna um clássico”, afirma Santos.

Criadora do projeto Grandes Livrinhos, no Instagram (@grandeslivrinhos), a jornalista Giovana Franzolin acredita que são muitas as razões que fazem da obra de Ziraldo tão importante para as crianças — e resistentes ao tempo, conseguindo ter o mesmo peso hoje que tinha quando os sucessos foram criados, décadas atrás.

“Entendo que isso acontece porque os personagens retratam uma infância atemporal, de criança arteira, feliz, com alegrias, dificuldades… não é tão somente a infância dele próprio ou uma infância datada, tem um pouco da infância de todo mundo”, comenta ela.

“Além disso, ele fala com a criança sem didatismo, sem ser moralizante, mesmo abordando temas mais ‘cabeludos’. Ele consegue desenvolver qualquer temática com leveza, sensibilidade e criatividade. Por exemplo, vejo que o Menino Maluquinho, o personagem mais emblemático e mais conhecido, é uma alegoria da infância, a criança sapeca e ‘maluquinha’, que não era nada mais que uma criança feliz.”

Franzolin aponta algumas características do autor como fundamentais para definir sua genialidade. Primeiro, o pioneirismo, pois ele escreveu “para o universo da literatura infantil numa década em que o mercado mal existia”. E também pelo cuidado com os aspectos gráficos. Nesse sentido, ela ressalta que Flicts foi uma obra “disruptiva, ousada para a época”.

“Além disso, pelo conjunto da obra. São dezenas e dezenas de títulos representando uma densidade impressionante para qualquer autor”, aponta a jornalista.

“Mas mais do que tudo, creio que Ziraldo se consolidou por saber como nenhum outro representar a infância, com seus prazeres e agruras. Ele consegue representá-la com seriedade e leveza, ao mesmo tempo em que não foge de temas mais difíceis ou tabus, como morte, separação dos pais, rejeição… Ele toca a alma das crianças e dialoga com elas como nenhum outro, no meu ponto de vista. E ao fazer isso, emociona também os adultos, reacende neles as memórias das próprias infâncias.”

A jornalista comenta que Ziraldo, mesmo com 90 anos, “parece um eterno menino”.

“Escreve com naturalidade, fala da infância sem esforço”, diz.

“Interesso-me em especial pelo texto, me emociona toda vez que leio. Apresenta camadas de interpretação, de subjetividade, que captamos conforme a maturidade e o momento da vida.”

Doutora pela Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a professora de literatura Vânia Maria Resende diz que a “grandeza de Ziraldo está na singularidade da linguagem plástica genial, vibrante, forte, exuberante”. E, não só. Também “na força da poesia e do humor em equilíbrio”, na “dimensão lúdica que flui em sintonia com a naturalidade infantil”.

“Acrescente-se a isso, o diálogo versátil de seus livros com repertório de textos visuais, gráficos, verbais dos mais diferentes autores e fontes, não restritamente infantis, o que abre amplas perspectivas culturais para os leitores”, diz ela, que é autora dos livros Ziraldo e o Livro para Crianças e Jovens no Brasil e O Menino na Literatura Brasileira.

“Além da beleza visual que é fator de sedução estética, importante observar a riqueza simbólica, até mesmo de narrativas aparentemente mais simples, o que significa dizer que sua literatura não se reduz a mero entretenimento. Finalmente, destaco a grandeza do poder de comunicação da obra do artista com leitores de diferentes idades, não apenas os infantis.”

Resende acredita que “a concepção peculiar de livro infantil de Ziraldo” é o seu maior legado. Esse conceito foi favorecido “por traços específicos da sua formação de escritor-desenhista-artista gráfico” e, ao mesmo tempo, compatível “com o pensamento complexo da contemporaneidade”. Para ela, Flicts é o marco desse formato, afirmando-se com “a peculiaridade do estilo verbo-visual, de direcionamento de leitura simultaneísta, com apoio semiótico, diferentemente da pura leitura linguística.”

Para a pesquisadora Monica Rebecca Ferrari Nunes, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e doutora em semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “Ziraldo trabalha com personagens que têm universalidade”. E isso explica a “força de seus personagens”, de “forma que esses textos que ele constrói são longevos na cultura”.

“Há uma emoção quase que universal que possibilita a permanência através do tempo”, comenta ela.

Nunes ainda ressalta a habilidade do autor na “hibridização da linguagem”.

“Ele faz a mistura de signos em que o verbal vai se misturando ao imagético, e o imagético ao verbal. E constrói uma linguagem de alta complexidade que, ao mesmo tempo, tem um efeito muito rápido na compreensão”, comenta ela.