- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
A Londres pós-Revolução Industrial vivia um alvoroço social. De um lado, a falta de legislação trabalhista fazia com que uma imensa massa de operários, inclusive crianças, fosse submetida a jornadas desumanas nas fábricas. De outro, o capitalismo enfim permitia que o dinheiro circulasse de uma forma antes nunca vista no meio urbano.
Até para extravasar o estresse da rotina insalubre nas indústrias, muitos encontravam nos cada vez mais presentes atrativos ligados aos prazeres a válvula de escape, o jeito de viver o pouco tempo livre que restava. Bares e bordéis se espalhavam pela cidade. Crianças, jovens e adultos se misturavam.
Foi neste contexto que surgiu a Associação Cristã de Moços (ACM). Ou YMCA, na sigla em inglês.
Considerada a mais antiga instituição de caridade para jovens do mundo, a instituição hoje congrega 65 milhões de associados em 120 países. No Brasil, onde chegou em 1893, conta com 54 mil associados.
“Globalmente, são mais de 12 mil unidades, apoiadas por 920 mil voluntários e 90 mil profissionais”, diz Eudes Araujo, secretário-geral da ACM/YMCA Brasil. “No Brasil, são 35 unidades, contando com 1.355 voluntários e 1.645 profissionais.”
A primeira unidade brasileira foi no Rio de Janeiro — na época, não havia nenhuma outra na América Latina. Conforme relata o livro Rio Antigo, publicado pelo jornalista e memorialista Charles Jullius Dunlop (1908-1987) em 1963, funcionava “numa pequena sala” no sobrado de um antigo prédio no centro.
“Seu fim é educar, seu lema é servir. Não tem intuitos comerciais nem políticos. Não faz, tampouco, propaganda religiosa, posto que tenha ideal religioso – por isso se chama cristã. Seu emblema é um triângulo equilátero que mostra o equilíbrio dos valores básicos do indivíduo nos seus aspectos espiritual, intelectual e físico. Nesta harmonia encontra-se o homem integral que é, em síntese, o objetivo da Associação Cristã de Moços”, escreveu ele.
Dunlop elogiava os, para ele, imutáveis “princípios morais e espirituais” da ACM.
“A noção de fraternidade, na Associação Cristã de Moços, é uma coisa real e imaculável. Todos ali se estimam, não há choques de interesse, nem podem medrar sentimentos egoísticos. É uma instituição ideal e, efetivamente, de uma vantagem extraordinária para os moços”, disse o jornalista. “Nada mais útil, numa grande cidade, onde vivem tantos jovens afastados das suas famílias. Refugiando-se em seu seio, nas horas de suspensão do trabalho, evitam o vício e as seduções malignas.”
Ele ainda notou que empresários cariocas apoiavam a instituição porque nela viam que seus empregados estudavam e trilhavam “o caminho da decência e da honestidade”.
‘Cristianismo atlético’
O fundador do projeto foi o inglês George Williams (1821-1905), um filho de fazendeiros de Somerset que, aos 20 anos, mudou-se para Londres para trabalhar em uma loja de tecidos.
Depois de infância e adolescência problemáticas — o próprio Williams, mais tarde, se descreveria como um “jovem desmanzelado, impulsivo, ímpio e dado a xingamentos” — ele se converteu ao cristianismo congregacionalista, frequentando a igreja King’s Weig House.
Aos poucos, o funcionário foi crescendo na empresa. Mais tarde, ele se casaria com a filha do proprietário e, com a morte do sogro, em 1863, se tornaria o dono da firma.
Mas, muito antes disso, quando ele ainda era um jovem de 20 e poucos anos e usava seu tempo livre para ler a bíblia, ele passou a refletir sobre aquele mundo industrial urbano que o cercava. Achava que aqueles jovens e crianças estavam fadados à perdição, sem condições dignas.
Reuniu 11 colegas e fundou a YMCA. Seu objetivo era ter um local que não levasse os jovens ao pecado. Desde o início uma organização não denominacional, ou seja, não restrita a membros de uma determinada igreja, se tornou uma das principais propagadoras de uma linha filosófica em voga na Inglaterra do século 19, o cristianismo atlético — também chamado de cristianismo musculoso.
Era uma maneira de viver a fé em Jesus com uma forte crença nos deveres patrióticos, na disciplina pessoal, no autossacrifício e na beleza física e moral do atletismo. Defendia que a educação física era essencial para a formação moral do indivíduo. Pela ideologia, era preciso exercitar a musculatura das virtudes.
Conforme explica à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, a ACM é fruto de efervescência social em que religiosos, especialmente protestantes, buscavam um “reavivamento” da fé, ao mesmo tempo em que, derivados de uma linha chamada “pietismo”, que valorizava as experiências de cada crente, pensavam em novas formas de evangelização.
“Era uma renovação dentro do protestantismo, com o pietismo muito voltado a questões missionárias, a levar a mensagem do evangelho”, contextualiza o professor. “Então as igrejas acabaram aproveitando o contexto todo, a pobreza resultante do impacto da revolução industrial, e foram se envolvendo em questões sociais.”
“As igrejas passaram a olhar para os ‘pobres que estão aqui no meio de nós’, com crianças exploradas e trabalhando 12 horas por dia, não estudando, mulheres sendo estupradas, homens submetidos a condições terríveis nas fábricas, com tristes condições de moradia”, comenta Moraes.
Além disso, o professor lembra que “a valorização dos aspectos físicos, do corpo e dos esportes” era uma marca desse momento histórico que acabou sendo absorvida por cristãos de grupos interdenominacionais. “Esses grupos paraeclesiais perceberam que isso poderia ser uma porta de entrada para acolher pessoas que estavam precisando ouvir a mensagem do evangelho dentro dos grandes centros urbanos”, diz.
Em 6 de junho de 1844, quando ocorreu a primeira reunião da recém-criada instituição em Londres, Williams declarou que seu objetivo era “melhorar a condição espiritual dos jovens” que trabalhavam especialmente nas empresas têxteis.
Na YMCA, os jovens passaram a ter acesso a práticas e aulas esportivas, além de uma biblioteca e assistência social. A evangelização também ocorria, é claro. Mas a mensagem cristã era focada muito mais nos valores, na retidão e nos princípios de cidadania do que nos textos bíblicos propriamente ditos. A ideia dos envolvidos era afastar a juventude da profusão de álcool, jogatina e prostituição que havia pelas ruas.
Segundo Moraes, a ACM nasceu de um contexto de grupos que buscavam “levar o evangelho e disputar o grande mercado da fé através da pregação, disputando novos convertidos” em meio a uma “demanda social enorme, de um mundo conflagrado”, com “sérios problemas, uma massa enorme de pobres explorados e as questões sociais todas ali pulsando”.
É do mesmo contexto instituições como a Escola Dominical — inaugurada em 1802 — e o Exército de Salvação, de 1865.
O secretário Araujo acrescenta que a ACM “teve seu início com reuniões de leitura bíblica no local onde Williams trabalhava em Londres” e “desde o princípio” se posicionou como “uma organização cristã ecumênica, sem vínculo exclusivo com uma denominação específica”.
“As primeiras ACMs/YMCAs nasceram com o objetivo de fortalecer os jovens por meio da cultura, com bibliotecas, do espírito, com leituras bíblicas, e do corpo, com ginástica, natação, etc.”, pontua ele.
A partir de 1851, a entidade passou a se espalhar pelo mundo, com sedes sendo criadas nos Estados Unidos, na Austrália, na Bélgica, na França, na Alemanha, no Canadá, em Hong Kong, na Suíça e nos Países Baixos.
O fundador da sede em Genebra, na Suíça, acabaria se tornando o homem que moldou o futuro da instituição. Empresário e ativista humanitário, de família fortemente calvinista, Henry Dunant (1828-1910) defendeu que o movimento se tornasse global e internacional.
Por sua influência, a YMCA realizou a primeira conferência mundial em Paris, em 1855, reunindo 99 representantes de nove países — foi o marco da chamada Aliança Mundial da YMCA, unida sob o lema bíblico “para que todos sejam um”.
Mais tarde, Dunant se afastaria da entidade. Em 1863, ele fundaria o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Em 1901, ele ganhou o Nobel da Paz, na primeira edição do prêmio.
Entre os princípios da primeira conferência estavam a necessidade de respeitar a autonomia local de cada sede e a ideia de unir todos os jovens cristãos do sexo masculino “para a extensão e expansão do Reino de Deus” — sim, naquela época, eram apenas “moços” homens os participantes.
Gradualmente, mulheres começaram a reivindicar espaço na instituição. Em 1858, a YMCA de Charleston, na Carolina do Sul, foi pioneira nessa questão: ali foi criada uma unidade auxiliar que congregava mulheres em trabalhos de educação e realizando campanhas beneficentes.
Mais tarde, principalmente na Guerra de Secessão — de 1861 a 1865 — e na Primeira Guerra Mundial — de 1914 a 1918 — comitês formados por mulheres atuaram de forma voluntária no apoio aos combatentes. Só em 1933, contudo, as mulheres passaram a ser aceitas de modo pleno na instituição, com mulheres passando a ser consideradas membros do YMCA.
Em 1941 o Conselho Nacional de YMCAs dos Estados Unidos criou um comitê especial para debater a inserção feminina na organização – chamava-se Princípios e Padrões de Trabalho da YMCA com Mulheres e Meninas. Apenas em 1957 as mulheres passaram a ser mencionadas oficialmente em documentos basilares da instituição, incluídas portanto na missão do projeto e também como público-alvo dentre os frequentadores, voluntários e profissionais da entidade.
Principalmente entre 1870 e 1930, a entidade mesclava intensamente cultos evangélicos e leituras bíblicas com as práticas esportivas, sendo, portanto, uma ferramenta de evangelização.
Ao longo do século 20, a entidade participou de acontecimentos importantes.
Na Primeira Guerra Mundial, a YMCA criou centenas de centros temporários, chamados de cabanas, para apoiar tanto soldados quanto civis.
Nos esforços de guerra, eles atuavam motivando e promovendo bem-estar para os que estavam nas linhas de frente.
Na Segunda Guerra, a participação da YMCA foi semelhante. A entidade foi uma das fundadoras, em 1941, da United Service Organizations (USO), uma organização que promove entretenimento e apoio social para membros das Forças Armadas dos Estados Unidos e seus familiares. Os “moços cristãos” também tiveram uma atuação na ajuda a refugiados, principalmente judeus, na Europa.
Essa atuação rendeu ao então líder mundial da entidade, o missionário metodista americano John Raleigh Mott (1865-1955), o Nobel da Paz em 1946. Araujo enfatiza que isso foi “em reconhecimento ao trabalho humanitário da YMCA […] pelo apoio prestado durante a Segunda Guerra nos campos de concentração”.
A instituição ainda teve um papel importante na luta contra o apartheid, promovendo campanhas contra essa política discriminatória segregacionista. Em 1998, em reunião do conselho mundial, a YMCA definiu que seus desafios para o século 21 seriam promover igualdade de gênero, desenvolvimento sustentável, paz e justiça social, combatendo o racismo e contribuindo para resolver os desafios da globalização.
Segundo informações oficiais da YMCA nos Estados Unidos, essa postura já estava presente desde os anos 1960, quando a luta pelos direitos civis se tornou premente.
“A discriminação racial foi proibida em todas as YMCAs em 1967, quando muitas YMCAs afro-americanas se tornaram locais de encontro e pontos de reunião do Movimento dos Direitos Civis”, enfatiza a instituição.
Como em todas as partes do mundo, no Brasil também o viés comunitário sempre foi forte. A ACM teve papel na consolidação do Dia das Mães como comemoração no país. Embora a data só tenha sido oficializada por aqui em 1932, há registros de que a celebração familiar ocorria antes por conta da força dessa associação. Em 12 de maio de 1918, por exemplo, a unidade do Rio Grande do Sul promoveu uma festa em homenagem às mães.
“Eles se envolveram praticamente em todas as questões importantes do século 20, sempre trabalhando com um olhar social”, diz Moraes.
O historiador e teólogo acredita, entretanto, que é o fato de não ser ligada a nenhuma denominação religiosa que explica sua capacidade de “se espalhar muito rapidamente pelo mundo”. “E conseguiram se manter ativos”, acrescenta.
Basquete, vôlei e futsal
Mas, no âmbito atlético, as ACMs não se limitaram a praticar esportes já existentes. A entidade acabou criando modalidades esportivas que se tornaram muito famosas. Um exemplo é o basquete. O professor de educação física e capelão cristão canadense James Naismitgh (1861-1940) era professor na International Young Men’s Christian Association Training School, depois rebatizada de Springfield College, em Massachusetts, quando teve a ideia do jogo.
O basquete foi inventado porque ele buscava um esporte que pudesse ser praticado indoor durante os meses de inverno. A primeira partida foi realizada em dezembro de 1891 e, conforme manuscrito do próprio Naismith, a bola utilizada foi de futebol, em vez de aros foram utilizadas duas cestas para colher pêssegos, e jogaram nove contra nove.
Outro esporte que foi criado e popularizado pela instituição foi o futebol de salão.
A história mais provável é que a modalidade tenha surgido na unidade de Montevidéu, no Uruguai, quando um educador físico argentino, Juan Carlos Ceriani Gravier (1907-1996) decidiu misturar regras do futebol, do basquete, do handebol e do polo aquático para conceber um outro esporte.
De acordo com informações da ACM de São Paulo, cinco anos mais tarde o jogo passou a ser praticado também na unidade local, porque dois professores brasileiros haviam ido para o Uruguai e lá a aprendido. E teria sido na capital paulista que o nome foi inventado: “futebol de salão”.
O vôlei também foi invenção da YMCA. Originalmente, se chamava mintonette, uma derivação de badminton, esporte que inspirou seu idealizador. Foi criação do educador físico americano William George Morgan (1870-1942), que queria um esporte sem contato físico e que, menos exigente fisicamente, pudesse ser praticado também pelos mais velhos.
A primeira partida ocorreu em dezembro de 1895, em Massachusetts.
Araujo acredita que “com essas invenções, o esporte ganhou destaque nas ACMs, especialmente nas Américas, atraindo jovens e famílias” para “práticas esportivas, natação, ginástica e musculação”.
Mas ele destaca que, em outras partes do mundo, a entidade também oferece “uma ampla gama de atividades, de centros comunitários até programas universitários e instalações hoteleiras”.
Araujo avalia que a ACM tem “relevância singular” em todo o planeta por “capacitar jovens para uma vida melhor, contribuindo nos momentos mais desafiadores da história”.
“Os princípios cristãos permeiam o cotidiano de muitos movimentos da ACM/YMCA, com práticas como devocionais diários, encontros de missão cristã e momentos de oração”, diz. “Além disso, existem redes de missão cristã atuantes na América Latina e Caribe, África, Ásia e Europa, variando em intensidade de acordo com as características e necessidades de cada movimento”.
Hit musical
No fim dos anos 1970, a instituição acabou virando tema e emprestando nome a um dos maiores hits musicais de todos os tempos: a música Y.M.C.A. do grupo americano Village People, lançada em outubro de 1978.
Foi um sucesso instantâneo e chegou ao topo das paradas em mais de 15 países.
Literalmente, a letra da música exalta a instituição como um local “divertido” em que “não é preciso ficar deprimido” e onde “eles podem te ajudar a voltar ao seu caminho”. Ressalta que é um local onde você pode se limpar, “ter uma boa refeição” e “fazer o que quiser”. Ou seja: estaria mesmo alinhada aos valores e aos serviços da entidade, com virtuosismo.
Contudo, naquele contexto de cultura gay, do mundo das discotecas e do auge da banda Village People, o hit acabou sendo interpretado como se o YMCA fosse um local para homens se encontrarem para outros fins.
Mais tarde, Victor Willis, um dos autores da letra, reconheceu que tudo foi pensado para ter duplo sentido.
Desde 2020, a canção é protegida pela Biblioteca do Congresso americano como patrimônio para a posteridade, por ser “cultural, histórica e esteticamente significativa”.
Fonte: BBC
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