- Jamille Bastos
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
Um homem negro que, comprovadamente, não estava em Brasília no domingo (8/1) teve sua imagem circulada entre centenas de milhares de pessoas como alguém que se infiltrou na multidão para iniciar o quebra-quebra.
Na manhã do dia seguinte (9/1), Raull Santiago viu suas redes sociais explodindo de mensagens com as acusações de que ele seria um infiltrado presente no dia anterior.
“Não param de chegar marcações nas minhas redes sociais de pessoas que estão recebendo em grupos de família por todo o Brasil e me mandando. Imagens minhas e de amigos encaminhadas dizendo que nós somos lideranças infiltradas que destruíram Brasília, que somos caçadores de bolsonaristas, que somos pessoas que estavam no meio deles para causar toda essa algazarra”, diz Raull.
Essa não é a primeira fake news que o ativista e CEO da agência BRECHA enfrenta com a sua imagem, mas tem sido, com certeza, a mais viral. São xingamentos, ameaças e racismo.
Para Raull Santiago, a escolha de sua imagem por bolsonaristas para espalhar a tese de que as depredações foram provocadas por “infiltrados” não foi por acaso.
Raull estava, na verdade, no Rio de Janeiro trabalhando. “Eu estava aqui no Complexo do Alemão o dia inteiro recebendo um grupo de cinco jovens que coordenam um projeto social muito legal em São Paulo chamado New School e que nunca haviam vindo aqui”, conta o ativista.
Ataques orquestrados contra a imagem de Raull Santiago não são novidade.
A segunda fake news mais recente relacionada à Raull aconteceu há apenas alguns dias, com uma foto que ele, Rene Silva e Preto Zezé da Cufa tiraram com o Ministro do STF Alexandre de Moraes após um jantar no Itamaraty durante a posse de Lula.
Na mensagem encaminhada milhares de vezes em grupos bolsonaristas, Raull e as outras lideranças eram chamados de traficantes com os quais o ministro teria se associado.
Rene Silva, do Complexo do Alemão, usava um boné com as letras CPX, uma abreviação da palavra ComPleXo. Bolsonaristas já haviam ligado essas letras a facções criminosas durante a visita de campanha de Lula à favela.
“É uma forma de criminalizarem o território e as pessoas em uma pegada bem violenta no campo do racismo, no campo da violência direta com pessoas pobres periféricas”, diz Raull.
O último ataque, que tem tomado proporções gigantescas, carregou junto, além de outras lideranças, amigos de Raull que de significativo para a acusação só tinham o fato de serem negros.
“Uma das fotos que estão circulando como sendo de infiltrados eu tirei no sábado, um dia antes dos atos lá em Brasília, com três amigos em uma laje. Os três são negros retintos”, diz Raull, que se preocupa com o uso das imagens dos amigos e faz questão de esclarecer que um deles é mototaxista, o outro é produtor e o terceiro é bispo de uma igreja evangélica.
As pessoas próximas são, inclusive, as que Raull revela que mais sofrem com os ataques à sua imagem.
“Infelizmente não é a primeira vez que eu passo por essa situação, então eu já estou um pouquinho mais preparado para lidar com elas. O pior disso tudo são as tensões paralelas, minha mãe e meu pai ficam muito preocupados”, conta o ativista, que essa semana já recebeu em suas redes sociais mensagens que vão desde “Nós vamos te pegar” até sua imagem associada à legenda “Como vamos puní-lo?”.
“Tem um cansaço mental, uma base de adoecimento que é coletiva para as pessoas próximas a mim. É um cansativo num nível absurdo”, desabafa.
Mas Raull faz questão de destacar também o lado positivo e diz que, ao mesmo tempo as fake news se espalham em alta velocidade também há uma onda de acolhimento, de pessoas demonstrando solidariedade e o ajudando a monitorar os perfis que divulgam sua imagem para os processos judiciais que o ativista pretende abrir contra eles.
A primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, foi uma das que manifestou solidariedade na terça-feira (11/01) e escreveu ao ativista no Twitter: “Que situação absurda, Raull! Todo meu apoio e solidariedade. Não deixe de denunciar esta gente”.
Racismo
Em uma das imagens circuladas em grupos e páginas bolsonaristas, Raull aparece de terno e gravata em um grande corredor. A foto foi tirada no último dia 01/01, quando o ativista se preparava para ir à posse de Lula, para a qual recebeu convite para todos os atos oficiais junto com outras lideranças sociais das comunidades do Rio de Janeiro.
Na montagem a narrativa é de que Raull seria segurança no Palácio de Planalto e que ele facilitou a entrada de infiltrados para a prática de terrorismo.
“Isso já traz não só o fato de ser fake, mas a estereotipagem de verem pessoas periféricas e negras de terno e gravata e automaticamente me associarem a um segurança do lugar, nunca a um convidado de um presidente”, diz Raull.
Para Pablo Nunes, Coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), essa manobra mostra a tentativa de resgate de uma narrativa Bolsonarista que foi contrariada pelos próprios integrantes do movimento no último domingo.
“Essa dissonância nesse mundo quase que paralelo em que eles vivem precisa sempre fazer sentido. O sentido é as pessoas negras serem as perigosas, as violentas, as criminosas, os seguranças, as babás, os garçons. Quando isso muda, a partir inclusive das próprias ações deles, eles precisam reconstruir essa narrativa”, diz.
A professora da Universidade de Brasília e especialista em gênero e raça Kelly Quirino lembra que isso não é algo novo.
“A extrema-direita, do jeito que ela está se configurando no começo do século XXI, dialoga muito com os regimes totalitários que a gente tem no começo do século 20. Esses movimentos tinham a perspectiva da supremacia branca e acreditavam, por exemplo, em teorias como o racismo científico de Lombroso, que coloca o negro como mais propenso a cometer crimes. Essa extrema-direita reconfigura teorias históricas como essa para justificar que não cometeu essa barbárie”, afirma.
Tanto no caso de Raull Santiago quanto dos jovens acusados pela multidão no último domingo, o objetivo segundo o professor da UFS Marcus Eugênio Lima, que estuda o que há de novo no racismo do Brasil, é o mesmo.
“Escolher membros de minorias racializadas sociais como ‘bodes expiatórios’ para defender a posição de domínio de um grupo, seu status e sua imagem social. Isso é um elemento estruturante do racismo”, afirma.
Para o professor, essa estratégia busca, no mínimo, duas vantages para os extremistas. “De um lado, preserva a imagem externa de ‘pureza’ e moralidade do grupo, necessária para manter seu apoio social e, por outro, aumenta a coesão interna do grupo, por canalizar e materializar seu ódio contra membros da minoria social percebida como inimiga”, diz o professor, que cita o Brexit no Reino Unido e o muro de Donald Trump na fronteira com o México como estratégias contemporâneas parecidas.
Segundo Raull, a desaprovação popular foi fundamental para que a extrema-direita precisasse achar culpados como ele. “Foi um tiro que deu errado, virou totalmente fora de controle e algo criticado pela população em geral, então eles tentam através de fake news desvencilhar deles trazendo a ideia dos infiltrados”, diz.
Para Pablo, o enquadramento das fake news não surpreende. Sobre a conexão entre favela e criminalidade propagada essa semana em grupos bolsonaristas através da imagem de Raull, Pablo lembra que a sociedade ouviu esse discurso recentemente pela boca da deputada Carla Zambelli, aliada de Bolsonaro.
“Ao falar da apreensão de sua arma de fogo após perseguir um homem pelas ruas, ela disse que a polícia deveria estar nas favelas, onde há os criminosos, estupradores e tudo mais. E não existe lugar mais negro no Brasil do que a favela. Para ela, é onde a polícia deveria estar enquanto que pessoas brancas cometendo crimes não deveriam ser importunadas pela polícia. É assim que se estrutura o Brasil”, diz.
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