- Author, Felipe Souza
- Role, BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @felipe_dess
Marília de Mello Serafim, de 38 anos, ama passar o tempo livre com as filhas. Osmar Luis Maciel de Elias, de 39, é aficionado por carros e, aos fins de semana, viaja para apreciar as montanhas do Vale do Paraíba, como Campos do Jordão, no interior paulista. Já Weverton Fagner, de 25 anos, é fã de futebol e toca violão.
Eles têm algo em comum: até o fim do mês correm o risco de serem internados permanentemente em um quarto do Hospital das Clínicas e perderem a liberdade de fazerem o que gostam em casa, ao lado da família e amigos.
Eles fazem parte de um grupo de 12 pessoas que participam do Programa de Nutrição Parenteral Domiciliar, uma pesquisa do Hospital das Clínicas de São Paulo em parceria com o governo federal que proporciona que eles recebam, por motivos diferentes, uma alimentação aplicada diretamente na veia, em casa.
Essa pesquisa, que ocorre no maior hospital da América Latina, está ameaçada de encerramento por falta de um repasse feito pelo governo federal e já dá sinais de perda de arrecadação.
Os pacientes já não recebem mais a alimentação em casa nem são visitados por enfermeiros. Ao contrário, eles passam até duas horas no transporte público para buscar o medicamento no hospital.
A única saída para que esses pacientes não interrompam o tratamento e morram em casa sem alimentação é serem internados. O motivo é que, sem a pesquisa, o Sistema Único de Saúde (SUS) só fornece alimentação parenteral para pessoas que estão em unidades hospitalares.
A reportagem da BBC News Brasil ouviu alguns pacientes, de diversas partes do país, para entender o que eles pretendem fazer caso percam a liberdade de trabalhar e ter o conforto de continuar o tratamento em casa, próximos dos familiares e amigos.
Marília, que agora tem só o intestino grosso, diz que a possível internação permanente determinará o completo fim da vida social dela, que tem dois filhos. Ela compara a nova realidade a um presídio.
“Querem nos privar do direito à vida. Querem tirar o nosso direito constitucional de ir e vir. Eu só quero que garantam que a gente tenha uma vida minimamente normal. No hospital, eu não vou poder ir onde eu quero, fazer o que eu quero. Eu vou ser aprisionada”, diz Marília, que é técnica de enfermagem e socorrista do Samu.
Ela conta que precisou fazer cirurgias depois de sentir fortes dores no estômago após passar por uma cirurgia bariátrica. Em 2016, ela precisou fazer um procedimento para retirar o intestino delgado quando o órgão necrosou.
Hoje, ela tem a síndrome do intestino curto e se alimenta, durante oito horas por dia, por meio de uma sonda instalada em um aparelho que fica na casa dela no Tucuruvi, na zona norte de São Paulo.
A cada 15 dias, ela vai até o Hospital das Clínicas buscar dezenas de embalagens com a alimentação fornecida de graça pelo governo. Antes, ela e os outros pacientes do programa passaram por um treinamento, que durou meses, para aprender com médicos e enfermeiros como tornar a própria casa um ambiente seguro e estéril para aplicar a medicação. O grupo também aprendeu a lidar com imprevistos e urgências que poderiam ocorrer durante essa manipulação.
No entanto, hoje dizem viver “um pesadelo” ao pensar que podem passar o resto da vida vivendo no hospital.
Procurado, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP informou que “os 12 pacientes beneficiados pelo Programa de Nutrição Parenteral Domiciliar, custeado por meio de convênio com o Ministério da Saúde (MS), seguem em acompanhamento ambulatorial normalmente, inclusive com o recebimento da alimentação a cada 15 dias. O HCFMUSP informa ainda que está em tratativas avançadas com o MS para prorrogação do Programa por mais 6 meses, além de elaborar uma proposta para renovação do convênio ao final dela”.
Procurado, o Ministério da Saúde se resumiu a dizer que o programa “segue vigente”.
Assim como a administração do maior hospital da América Latina, a pasta não informou qual o custo do tratamento de cada um desses pacientes, nem mesmo se o programa está ameaçado e qual o impacto que a ocupação desses 12 leitos poderia causar na estrutura do hospital onde se tratam pessoas de todo o país.
Projeto de lei
Um projeto do deputado federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF) prevê a inclusão de todas as inflamações intestinais graves, como a doença de Crohn, a síndrome do intestino curto e a retocolite, no rol de doenças graves e raras do SUS.
Caso o texto seja aprovado, os pacientes que comprovarem ter essas doenças terão direito a receber a nutrição parenteral ou enteral (por meio de uma sonda) em um centro de reabilitação intestinal ou conforme recomendação médica.
Esse projeto, na teoria, beneficiaria diretamente os pacientes atendidos no Hospital das Clínicas e permitiria que eles continuassem atendidos pelo grupo de pesquisa.
O texto está sendo analisado pelas comissões permanentes da Câmara dos Deputados, antes de seguir para votação e sanção.
Os entrevistados pela reportagem pedem que o projeto seja votado com urgência.
“A gente tem pressa porque o nosso estado de saúde só vai piorar nessa situação. Estudos feitos com a gente indicam que pacientes em casa vivem mais porque não pegam infecção e têm menos complicações no fígado. Fora do hospital, a gente contribui com a sociedade, trabalha e estuda. Mas lá dentro só geramos custos”, afirma Marília.
Weverton Fagner, de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, fez uma cirurgia para remoção do apêndice, em 2015. Mas, por conta de intercorrências durante o procedimento, os médicos retiraram praticamente todo o intestino dele.
Em 2016, ele conseguiu na Justiça que o governo custeasse uma cirurgia de transplante de intestino nos Estados Unidos. Ele fez o procedimento, mas teve rejeição aguda depois que voltou ao Brasil e precisou retirar o órgão.
Ele chegou a entrar novamente na lista do transplante, mas foi retirado depois que o corpo dele começou a produzir anticorpos que inviabilizariam o procedimento. Hoje, ele vive em São Paulo e também depende do tratamento domiciliar com alimentação parenteral.
A culpa é das estrelas
Há seis anos, a reportagem da BBC News Brasil entrevistou Osmar Elias e a namorada dele, Mônica Nery, para retratar como a história deles era semelhante à do filme “A culpa é das estrelas”.
A produção conta a história de uma adolescente diagnosticada com câncer que se mantém viva graças a um remédio em fase de testes. Ela conhece um rapaz que também tem câncer em um grupo de apoio e eles se apaixonam.
Semelhanças inegáveis, já que Mônica e Osmar se conheceram no Hospital das Clínicas, uma vez que os dois precisavam de alimentação parenteral por motivos diferentes. Eles se apaixonaram durante as idas e vindas buscando a alimentação e voltando juntos para bairros do extremos leste da capital paulista: ele morava em Guaianases e ela no Itaim Paulista.
Mônica morreu meses após a publicação da reportagem por conta de um problema pulmonar. Osmar é o paciente mais antigo que faz parte do grupo de pesquisa de alimentação parenteral do Hospital das Clínicas e, seis anos depois, relata o medo que sente de ficar sem remédios.
“Todos os pacientes que serão internados não têm previsão de saída. E a gente não vai durar muito por conta desses cateteres. É muita gente entrando e saindo do quarto, mexendo, examinando. É muito difícil a gente não ser infectado por alguma bactéria”, diz Osmar.
Ele relata que o estado de saúde dele evoluiu significativamente desde o início do tratamento. Antes, ele passava 140 horas por semana se alimentando de forma parenteral. Hoje, são 72, praticamente a metade do tempo.
“Eu quero continuar o tratamento porque ele está dando certo e é muito mais barato do que ser internado. Eu não estou pedindo um remédio novo que custa milhões, não. Eu só quero ficar em casa e continuar vivendo. Eu quero poupar o dinheiro público”, afirma ele.
Osmar conta que hoje vive uma vida praticamente normal. No início da noite, ele liga o aparelho para receber a medicação, enquanto resolve as burocracias da empresa que ele tem com o irmão. Eles fornecem equipamentos para a fabricação de pães em larga escala, como formas, carrinhos e máquinas.
Há 17 anos convivendo com a rotina hospitalar, Osmar faz um apelo para não ser internado e faz um relato do impacto que a internação de longo prazo exerce sobre os pacientes.
“A sua vida social morre ali. A sua vida mental morre em poucos dias e a sua vida física também. Você vai se acabando aos poucos. Você não vê paciente de longo prazo internado corado, feliz. Você é picado toda hora, eles mantêm a luz acesa e tem gente com você o tempo todo, além do barulho 24 horas. Você não consegue dormir, não tem uma diversão, lazer, nada”.
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