- Author, Julia Braun
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @juliatbraun
Especialista em saúde pública e ciências ambientais, o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Carlos Machado dedicou seus últimos anos ao estudo da preparação e resposta a desastres no Brasil.
Ao lado de outros especialistas, Machado compilou o número de óbitos e internações causados imediatamente e ao longo dos anos por enchentes como a do Vale do Itajaí, em Santa Catarina, em 2008.
Segundo ele, as vítimas das inundações no Rio Grande do Sul nas últimas duas semanas “são apenas a ponta do iceberg” do que pode ser uma tragédia muito maior.
“Cada desastre tem características muito próprias, mas em todos eles os registros [de óbitos iniciais] constituem só a ponta do iceberg em termos de impacto na saúde”, diz Machado, que foi indicado pela Fiocruz para fazer parte do Centro de Operações de Emergências para Situação de Chuvas Intensas e Inundações na Região Sul, instalado pelo Ministério da Saúde para responder à tragédia climática.
“Toda vez que um grupo de pesquisadores faz investigações sobre algum desastre e recupera os registros anos depois, descobre um número de óbitos e internações muito maior [do que o divulgado durante a crise]”, aponta o pesquisador, professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp).
Sequência de danos
Os estudos elaborados por Machado e seus colegas levam em conta toda a cadeia de danos e sequelas provocados pelos desastres ambientais na saúde e na infraestrutura pública.
Segundo os estudos, entre as doenças e situações em que há aumento de incidência nas horas e nos anos após grandes inundações estão:
- Doenças infecciosas e parasitárias, como diarreia, cólera, hepatite A, dengue, leptospirose e giardíase;
- Desnutrição;
- Doenças do olho, como conjuntivite;
- Doenças do aparelho circulatório, como pressão alta e Acidente Vascular Cerebral (AVC);
- Doenças respiratórias
- Dermatite e erupções cutâneas;
- Distensões musculares;
- Infecções renais;
- Lesões, traumatismos, cortes;
- Hipotermia;
- Choques elétricos;
- Afogamentos;
- Transtornos mentais e de comportamento, como estresse pós-traumático, ansiedade, pânico, depressão e abuso no consumo de álcool e medicamentos;
- Violência doméstica.
Nas primeiras horas e dias após uma enchente, os óbitos e internações costumam vir das operações de resgate e socorro e consistem principalmente de traumas agudos.
Após algumas semanas e meses, durante o período chamado pelos especialistas de recuperação, doenças transmissíveis começam a ser diagnosticadas com mais frequência.
“Estamos falando das doenças mais tradicionais, como leptospirose, doenças diarreicas e hepatite, mas também daquelas relacionadas ao fato de muitas pessoas serem obrigadas a viver em abrigos após um evento como esse”, explica o pesquisador da Fiocruz.
“Há um risco potencializado de gastroenterite pela forma como os alimentos são armazenados ou manipulados e de diarreia pelo acesso à água, pois a rede de fornecimento muitas vezes é interrompida ou contaminada.”
Além disso, segundo Machado, os abrigos costumam ser ambientes com aglomeração e pouca ventilação, favorecendo a transmissão de doenças infecciosas respiratórias.
“No Rio Grande do Sul, de imediato, eu me preocuparia com as doenças respiratórias e os casos de hipotermia, porque há previsão de frio para os próximos dias e suspeito que, em algumas áreas, muitas pessoas tenham perdido seus agasalhos e cobertores.”
Ainda de acordo com a análise de dados feita pelo pesquisador, casos de leptospirose podem permanecer em alta por meses após o desastre.
Ao mesmo tempo, há tendência de elevação dos casos de doenças não transmissíveis e problemas de saúde crônicos devido à desestabilização do sistema de saúde e do dia a dia dos pacientes.
Segundo o Ministério da Saúde, até a manhã de sábado (11), ao menos 290 locais como hospitais e UPAs (Unidades de Pronto Atendimento) haviam sido atingidas de alguma forma pelo desastre no Rio Grande do Sul.
Há 18 hospitais totalmente danificados e que não terão condições de voltar a realizar atendimentos. Outros 75 estão com funcionamento parcial.
Com isso, há a interrupção de tratamentos de doentes crônicos, diz Machado.
Emergências não relacionadas ao desastre também podem deixar de ser priorizadas.
“E mesmo aqueles que não dependiam do atendimento das unidades básicas de saúde muitas vezes saíram de casa sem levar seus medicamentos para tratamento contínuo”.
Somado à toda a desestruturação da vida dos habitantes da região, esse cenário tende a levar a altas de casos de pressão alta e AVC, por exemplo.
O pesquisador da Fiocruz computou os registros de internações por AVC meses antes e após as inundações em Santa Catarina em novembro de 2008, que atingiram 1,5 milhão de pessoas e deixaram cerca de 150 mortos durante e imediatamente após a crise.
O levantamento mostrou picos nos casos de AVC nas semanas após a tragédia e em abril de 2009, cinco meses depois. Mas os níveis ficaram mais altos do que em outros momentos por ainda mais tempo.
“Em Santa Catarina, os AVCs subiram a níveis bem acima da média e só voltaram ao normal cerca de oito meses depois”, relata Carlos Machado.
Período de reconstrução
Outro fenômeno registrado pelos pesquisadores, e que pode se repetir no Rio Grande do Sul, tem relação com o período de reconstrução das casas e infraestruturas destruídas, além de fraturas decorrentes de acidentes de trabalho.
Em 2008, as internações por fraturas em Santa Catarina chegaram a um patamar acima da média por volta de cinco meses após as inundações.
“Por pior que sejam as condições, as pessoas sempre vão voltar e tentar reconstruir suas casas. Mas infelizmente, nem sempre com as ferramentas e segurança correta”, diz Machado.
Cerca de 101 mil casas já foram destruídas ou danificadas pelas fortes chuvas que há dias assolam o Rio Grande do Sul, segundo estimativa da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Até o momento, o desastre climático afetou 449 dos 497 municípios gaúchos.
Por conta de toda a destruição, Machado afirma que uma onda de migração interna também não seria surpreendente.
“Algumas áreas vão permanecer comprometidas durante bastante tempo e há um contingente significativo de pessoas em abrigos que precisará ser realocado”, diz.
“A médio e longo prazo, devemos notar uma saída da população de alguns municípios.”
O risco nesse caso, segundo ele, é sobrecarregar o sistema de saúde pública das áreas menos afetadas.
Isso aconteceu após a passagem do furacão Maria em Porto Rico em 2017, quando muitas pessoas fugiram da capital afetada e se deslocaram para municípios menores, com infraestrutura precária.
As autoridades locais contabilizaram oficialmente 64 mortes relacionadas ao furacão. Mas um estudo posterior realizado pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, em colaboração com as universidades Carlos Albizu e Ponce, em Porto Rico, mostrou que o número de mortes resultantes direta e indiretamente do desastre natural foi, na verdade, 72 vezes maior, chegando a 4.600 vítimas.
Os especialistas afirmam que o número aumentou, entre outros motivos, por conta da interrupção dos serviços de saúde, dos cortes de energia elétrica e da devastação generalizada provocada pela tempestade, que deixou US$ 90 bilhões em danos.
Doenças mentais, alcoolismo e violência
Estudos sobre desastres ambientais em diversas partes do mundo também mostram o efeito dessas tragédias na saúde mental.
Segundo Machado, há aumento de casos de estresse pós-traumático, insônia, amnésia, fobias, ansiedade, depressão e outros transtornos. Também não é incomum que famílias atingidas pelas enchentes tenham que lidar com abuso de substâncias.
Faz parte também da cadeia de consequências em relação à saúde mental a violência familiar e o abuso no consumo de álcool e medicamentos entre adultos, e distúrbios de comportamento em crianças e jovens.
“O Banco Mundial monitora os impactos econômicos no curto, médio e longo prazo após uma tragédia ambiental e percebemos que os impactos na saúde também podem seguir um ciclo semelhante”, diz o especialista.
A melhor resposta possível
Mas tudo isso pode ser minimizado se a resposta em saúde pública for adequada, afirma Machado.
As previsões sobre as possíveis ondas de doenças, contaminações e internações devem ser utilizadas para organizar o atendimento à população afetada quando a água baixar, com foco em retomar tratamentos para doenças crônicas e transtornos mentais, diz.
Segundo o especialista, a resposta dos serviços de saúde deve seguir os ciclos das doenças e dos problemas que tendem a aparecer até um ano após as enchentes.
Também é essencial a instalação de hospitais de campanha e o envio de profissionais de saúde qualificados para as áreas atingidas.
O Ministério da Saúde ordenou a montagem de cinco unidades de hospitais de campanha no Rio Grande do Sul. O órgão também afirma ter disponibilizado 50 kits de emergência com medicamentos e insumos, cada um com capacidade para atender 1.500 pessoas durante um mês.
O governador Eduardo Leite também anunciou a liberação de aproximadamente R$ 70 milhões em recursos para a saúde, destinados para rede hospitalar, de saúde mental e atenção primária, além de R$ 12 milhões para qualificar a infraestrutura dos abrigos.
“A principal dificuldade no momento está na logística do transporte, por conta dos bloqueios por terra e ar”, lamenta o especialista da Fiocruz.
Mas a principal forma de reduzir os riscos, segundo ele, está na prevenção e, em especial, na adaptação do serviço de saúde aos riscos climáticos.
“Não podemos continuar a ter serviço de saúde, hospitais ou unidades básicas em áreas vulneráveis. E se tivermos, eles têm que estar adaptados, por exemplo, a inundações frequentes”, diz.
Também é importante, segundo Machado, priorizar trabalhos de orientação e conscientização de moradores de áreas vulneráveis para que, caso não consigam deixar suas casas, pelo menos saibam como agir em caso de emergência.
O pesquisador da Fiocruz é um dos muitos especialistas envolvidos na elaboração do novo Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais, cuja previsão de entrega é junho deste ano.
O projeto está previsto na Lei de nº 12.608 de 2012, mas somente agora será implantado.
“Não dá mais para a gente continuar a trabalhar como se cada desastre fosse a primeira vez”, diz o especialista.
“Precisamos avançar no Brasil em um pensamento mais prospectivo e com a certeza de que já estamos atrasados.”
Fonte: BBC
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