• André Biernath – @andre_biernath
  • Da BBC News Brasil em Londres

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Surtos, epidemias e pandemias podem se tornar ainda mais frequentes nos próximos anos, alertam cientistas

As últimas semanas ficaram marcadas pelo surgimento de dois surtos que preocupam as autoridades de saúde. Primeiro, uma hepatite de origem misteriosa que acomete principalmente as crianças. Depois, o espalhamento da varíola dos macacos por vários países.

Enquanto os cientistas ainda tentam desvendar as origens e as causas dos quadros, vale notar que esses eventos acontecem em meio à pandemia de covid-19, doença causada por um vírus que, até o início de 2020, era absolutamente desconhecido.

E, antes mesmo de o coronavírus dominar o noticiário, na última década vimos graves problemas no Brasil e no mundo relacionados a outros vírus, como ebola, zika, dengue, chikungunya, febre amarela e sarampo.

Será que as crises de saúde em sequência são fruto do acaso? Ou o contexto em que vivemos propicia surtos, epidemias e pandemias?

Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a segunda hipótese é a mais provável: atualmente, o mundo reúne uma série de características que facilitam ainda mais o aparecimento (ou o ressurgimento) de doenças infecciosas.

E, como você vai entender ao longo da reportagem, há pelo menos sete fatores que ajudam a explicar todo esse cenário: o trânsito de pessoas entre os países, a urbanização desenfreada, as mudanças climáticas, a demanda por proteína animal, o maior contato com zonas silvestres, a recusa às vacinas e a falta de profissionais de saúde e vigilância.

Viagens internacionais

Hoje em dia, é muito fácil (e relativamente barato) cruzar continentes e oceanos em poucas horas.

Vamos supor que você queira ir amanhã para o município de Urasoe, no Sul da ilha de Okinawa, no Japão, a 19.382 quilômetros de São Paulo — trata-se da cidade mais afastada do mapa em relação à capital paulista.

É possível chegar lá em 33 horas e 10 minutos de viagem, com paradas em Dallas e Chicago, nos Estados Unidos, e em Tóquio e Okinawa, no Japão.

Em termos práticos, isso significa que você pode se infectar com um vírus no Brasil e, antes mesmo de apresentar qualquer sintoma, estar literalmente do outro lado do mundo.

Dados do Banco Mundial estimam que, no ano de 1990, 1 bilhão de pessoas fizeram viagens de avião. Em 2019, esse número saltou para 4,5 bilhões de passageiros, o que representa mais da metade da população global.

Por um lado, o aumento da mobilidade entre as fronteiras representa a oportunidade de negócios, conexões e contatos com outras culturas. Por outro, ela facilita a transmissão de agentes infecciosos — e pode acelerar ainda mais a eclosão de epidemias ou até pandemias.

Um dos exemplos disso é o zika, vírus que circulava em algumas ilhas do Pacífico e foi trazido ao Brasil a partir de 2014 e 2015, onde causou um sério problema de saúde pública, incluindo o nascimento de bebês com microcefalia.

Nas últimas semanas, aliás, a varíola dos macacos, antes restrita a algumas regiões da África, foi registrada quase que simultaneamente em outros dois continentes, um de cada lado do Atlântico, quando autoridades dos Estados Unidos, de Portugal e da Bélgica anunciaram a detecção dos primeiros casos em seus territórios. Mais uma vez, isso está conectado com a mobilidade global.

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Viagens internacionais ficam cada vez mais rápidas e acessíveis, mas facilitam o trânsito de vírus por diferentes partes do mundo

Urbanização

A Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que, em 1950, dois terços da população mundial viviam em áreas rurais.

A agência estima que, até 2050, essa proporção vai se inverter: em pouco mais de duas décadas, 66% das pessoas viverão nas cidades. E a mudança mais drástica ainda está para acontecer na Ásia e na África.

A grande questão, apontam os especialistas, é que muitos desses novos espaços urbanos já nascem deficientes em infraestrutura, transporte público, habitação, saneamento básico e assistência em saúde.

E isso, por sua vez, cria as condições ideais para que vírus e bactérias prosperem e circulem livremente.

Jogar esgoto não tratado em córregos e nascentes, por exemplo, pode ser fonte de graves infecções gastrointestinais.

Já o acúmulo de lixo em terrenos baldios é o ambiente perfeito para a proliferação de vetores, como o mosquito Aedes aegypti, o transmissor de dengue, zika e chikungunya.

“Não podemos nos esquecer também que os ambientes urbanos são propícios às aglomerações, e sabemos como o contato próximo, especialmente em locais pequenos e mal ventilados, facilita o espalhamento de patógenos”, acrescenta o virologista Flavio da Fonseca, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

Mudanças climáticas

O aumento da temperatura média do planeta traz as mais diversas consequências à saúde.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas estarão diretamente relacionadas com 250 mil mortes adicionais a cada ano.

Entre as causas desses óbitos, a entidade destaca o aumento de doenças infecciosas, como malária e dengue.

E isso acontece porque os mosquitos transmissores desses quadros se reproduzem justamente no calor e se aproveitam de reservatórios de água que aparecem durante as temporadas de chuva.

Ora, se a tendência é que as temperaturas fiquem cada vez mais altas daqui em diante, isso representa uma grande oportunidade para que muitos vetores ganhem terreno e ajudem a espalhar ainda mais os agentes infecciosos.

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Mosquitos como o Aedes se reproduzem com mais facilidade em temporadas de calor intenso e muita chuva

“Hoje em dia, observamos a ocorrência de doenças típicas das regiões tropicais em áreas subtropicais. Já temos casos de chikungunya e febre do Oeste do Nilo no Sul da Europa e de dengue na Flórida, nos Estados Unidos”, conta o virologista Anderson F. Brito, pesquisador científico do Instituto Todos pela Saúde (ITpS).

Ainda neste tópico, não dá para ignorar o papel que a destruição de reservas naturais pode ter no surgimento de novas enfermidades causadas por vírus, bactérias e outros patógenos.

Dados do Banco Mundial indicam que, em 1990, o mundo possuía 41,2 milhões de quilômetros quadrados de área florestal. Esse número caiu para 39,9 milhões em 2016.

Parece uma redução pequena? A área devastada de mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados em apenas 26 anos é quase equivalente ao Amazonas inteiro (o maior Estado do Brasil) e supera a área de países como Peru, Colômbia e África do Sul.

Do ponto de vista da saúde, isso também representa uma ameaça das grandes para os seres humanos. Isso porque os vírus estão quietinhos lá na natureza, cumprindo seus infindáveis ciclos de replicação dentro de um outro ser vivo.

O avanço das cidades e do agronegócio acaba destruindo muitas dessas reservas naturais, o que desloca os animais e viabiliza o contato deles com os seres humanos. Os vírus, que antes só atingiam uma espécie, podem então “pular” para nós, num processo conhecido como spillover.

“E nós temos uma visão muito antropocêntrica das coisas. Acreditamos que a maior parte dos patógenos afeta a população humana, quando na verdade a maioria desses agentes está na natureza e convive em equilíbrio com seus hospedeiros”, complementa Fonseca, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.

“Quando eliminamos esses habitats, o vírus tende a buscar uma alternativa. E quem são geralmente os hospedeiros mais próximos? Nós mesmos”, continua.

“Na maioria das vezes, essa interação não dá em nada. Mas há alguns casos em que o patógeno consegue se adaptar bem e começa a evoluir especificamente para a espécie humana, causando novas doenças”, completa o especialista.

Um dos mais recentes surtos de ebola, por exemplo, se iniciou na África Ocidental em 2014 e apareceu justamente em regiões com extração de madeira e minérios. Por causa dessas atividades, os seres humanos passaram a ter mais contato com os animais da região — entre eles, morcegos que carregavam esse vírus.

Numa reportagem da BBC News Brasil publicada em outubro de 2021, a virologista e patologista Paula Rodrigues de Almeida, professora do curso de veterinária da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, explicou que os novos contágios costumam acontecer nas chamadas “zonas de interface”.

“São ambientes naturais que foram degradados, em que acontece com mais frequência essa exposição da espécie humana aos novos vírus”, ensina.

Mais carne no prato

Ainda nessa seara, não dá para ignorar a crescente demanda por proteína animal: a Organização de Comida e Agricultura (FAO) da ONU calcula que a procura global por cortes bovinos vai crescer 81% entre 2000 e 2030. O mesmo aumento poderá ser visto em outros produtos da pecuária, como leite (97% a mais), carne de carneiro (88%), de porco (66%), de aves (170%) e ovos (70%).

A grande questão é que essas criações nem sempre ficam confinadas nas condições sanitárias mais adequadas. A falta de regras e fiscalização faz com que, em muitos países, esses animais sejam mantidos em locais apertados, sem higiene ou até misturados com outras espécies.

É tudo o que um agente infeccioso precisa para sofrer mutações, se combinar e “pular” para as pessoas.

Na pandemia de H1N1 de 2009, que se originou no México, os estudos mostraram que o vírus influenza que causou todo aquele problema era uma mistura de quatro cepas diferentes — duas de origem suína, uma das aves e a outra dos seres humanos.

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Criadouros de aves e suínos sem vigilância são ambientes ideais para que vírus sofram mutações perigosas

E esse não é um exemplo isolado: ao longo do século 20, a humanidade enfrentou diversas pandemias de influenza, como a gripe espanhola (1918), a gripe asiática (1957), e a gripe de Hong Kong (1968). Elas se originaram a partir da mutação de vírus que circulavam entre as aves.

“Tudo isso só reforça a noção de que a saúde humana não está isolada e precisamos pensar cada vez mais na conexão que temos com a saúde dos animais e do meio ambiente”, interpreta Brito.

Recusa às vacinas

O sexto fator da lista tem a ver com a dificuldade cada vez maior de convencer a população sobre a importância de vacinar-se.

Seja por dificuldades na produção e na distribuição das doses, ou pela influência de notícias falsas a respeito do assunto, o fato é que a cobertura vacinal contra muitas doenças está aquém do desejado.

Mesmo no Brasil, que sempre foi visto como exemplo nas campanhas de imunização, a taxa de proteção contra doenças preveníveis cai ano após ano.

A vacina contra a poliomielite, por exemplo, foi aplicada em 100% dos brasileiros que faziam parte do público-alvo da campanha em 2005.

Passados 15 anos, essa taxa caiu para 76%, o que significa que uma em cada quatro crianças não foi devidamente imunizada contra a doença, que pode levar até à paralisia e à morte.

E isso abre alas para que algumas enfermidades voltem a atormentar: o sarampo, que chegou a ser eliminado do Brasil em 2016, voltou com tudo a partir de 2018 e provocou surtos importantes desde então.

Com uma cobertura vacinal abaixo da meta, nada garante que outras doenças infecciosas, como a própria poliomielite, causem sérios problemas depois de décadas sob controle.

“As vacinas são vítimas de seu próprio sucesso”, interpreta Fonseca.

“As pessoas deixaram de ver no dia a dia os graves efeitos de muitas doenças infecciosas, como a poliomielite ou o sarampo. Com isso, muitos passaram a não dar a devida importância à imunização”, complementa.

Crédito, Erasmo Salomao/Ministério da Saúde

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Cobertura vacinal contra diversas doenças despencou no Brasil durante os últimos anos

Falta de estrutura

Por fim, não dá pra ignorar como a ausência de uma estrutura básica de saúde e de vigilância em muitos lugares faz com que um problema pequeno vire um surto, uma epidemia ou até uma pandemia.

Os profissionais que fazem a vigilância são responsáveis por analisar os registros de saúde e notar se há alguma mudança de padrão — como um aumento anormal de casos, hospitalizações e mortes relacionadas a uma doença específica em determinada região do país.

A partir desses dados, é possível lançar mão de políticas públicas que ajudam a conter o problema. Pode ser necessário reforçar a vacinação naquele local, ou controlar a entrada e a saída de pessoas dali por um tempo.

Nesse cenário, é essencial também contar com um serviço de saúde capaz de atender, diagnosticar e tratar os pacientes da melhor forma possível.

A grande questão é que boa parte do mundo ainda não possui essa estrutura toda. Com isso, muitas doenças podem surgir e se espalhar facilmente antes de serem sequer notadas por autoridades nacionais ou internacionais.

Foi o que aconteceu com a zika no nosso país a partir de 2015. “Hoje, sabemos que o Brasil levou mais de um ano desde a entrada do vírus para identificar que aqueles casos iniciais não eram de dengue, mas, sim, de uma nova doença”, lembra Brito.

O virologista destaca que a vigilância moderna não envolve apenas observar o aumento de casos, mas toda uma estrutura tecnológica que consiga sequenciar geneticamente as amostras e identificar o agente causador daquele quadro.

“Ao longo da pandemia de covid-19, a estrutura de vigilância melhorou nos países de renda alta e média, mas não avançou suficientemente nas nações de renda baixa”, compara.

“E precisamos entender que enquanto tivermos pontos cegos nos sistemas globais de vigilância, o mundo inteiro continuará em perigo”, conclui.

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