Dezenas de milhares de argentinos disseram na terça-feira (23/4) ao presidente Javier Milei que não querem que a “motosserra” de cortes do presidente chegue às universidades públicas.
As enormes manifestações que percorreram as ruas do país contra os cortes que o novo governo pretende fazer no ensino superior mostraram a crescente inquietação diante da política econômica, bem como o poder mobilizador do movimento estudantil no país.
Mas, talvez, os protestos também tenham destacado algo mais profundo: o lugar privilegiado que a universidade pública ocupa no coração e no orgulho dos argentinos.
E, no ensino superior argentino, destaca-se a Universidade de Buenos Aires (UBA), a maior do país e uma das mais prestigiadas da América Latina.
Fundada em 1821, a UBA oferece mais de 80 cursos e já formou 16 presidentes argentinos e cinco ganhadores do Prêmio Nobel. O prestígio da instituição atrai estudantes estrangeiros pelos cursos gratuitos e pela qualidade do ensino.
No entanto, os diretores da universidade apontam que a sustentabilidade da instituição está sob risco diante dos cortes orçamentais propostos pelo governo Milei, que afetam o funcionamento das diferentes faculdades e deixaram salas de aula no escuro pela dificuldade no pagamento das contas de energia.
Milei realiza um ajuste sem precedentes nas contas públicas do país — e concedeu às universidades estatais o mesmo orçamento previsto para 2023.
Porém, o país tem a inflação mais alta do mundo, que atualmente está perto de 290% ao ano. Com isso, mesmo com um aumento de 140% nas despesas operacionais em duas ondas, em março e maio, as autoridades universitárias alertaram que o dinheiro é insuficiente.
A UBA declarou emergência orçamentária e avisou que, se esse cenário continuar, corre o risco de não funcionar no segundo semestre.
Já o governo exige auditar as contas das instituições de ensino e, por meio das redes sociais, Milei assegurou que vai “garantir fundos para as universidades”.
“Em nenhum momento o governo deu a entender que tem a intenção de fechar as universidades nacionais. Longe disso, na véspera da manifestação já tinha sido feito o repasse de recursos para as despesas de funcionamento de todas as universidades”, escreveu Milei no X (o antigo Twitter).
Confira a seguir quatro características que distinguem a UBA de outras universidades da América Latina.
1. Gratuidade
A UBA, assim como todas as universidades públicas da Argentina, é gratuita desde 1949, quando o então presidente Juan Domingo Perón assinou um decreto em que dizia que o Estado seria responsável pelo financiamento do ensino superior.
Até então, apenas as classes mais abastadas tinham acesso ao ensino superior, devido ao alto custo das mensalidades, que era proibitivo para famílias com menos recursos.
O fim das mensalidades universitárias impulsionou as matrículas. Em 1949, essas instituições tinham 66.212 alunos. Em 1954, esse número saltou para 135.891, segundo dados do governo argentino.
A gratuidade, porém, foi interrompida durante a ditadura militar (1976-1983) e recuperada com o retorno da democracia. Em 1994, ela foi instituída como direito constitucional.
Desta forma, o financiamento da universidade provém do Estado, que destina 90% dos recursos para pagar os salários de professores e funcionários, e os 10% restantes para as despesas de funcionamento.
Muitos dos que participaram dos protestos recentes na Argentina destacaram que o fato de não terem que pagar pela educação permitiu-lhes o acesso a uma vida melhor.
É o caso de Angélica, uma dentista aposentada de 97 anos. “Ter estudado na UBA me permitiu uma vida que não poderia ter sonhado de outra forma. Me profissionalizar é o exemplo que mais agradeço por ter dado às minhas filhas”, disse ela ao veículo argentino Infobae.
2. Prestígio da educação
Com cinco vencedores, a Argentina tem o maior número de prêmios Nobel da América Latina. Todos eles passaram pelas salas de aula da UBA como estudantes ou professores.
Dois ganhadores do Prêmio Nobel da Paz — Carlos Saavedra Lamas (1936) e Adolfo Pérez Esquivel (1980) —, dois de Medicina — Bernardo Alberto Houssay (1947) e César Milstein (1984) — e um de Química — Luis Federico Leloir (1970) — são bons exemplos da qualidade do ensino desta universidade.
Entre os professores da instituição, estão gigantes da Literatura como Jorge Luis Borges, que foi nomeado em 1956 professor titular da cátedra de Literatura Inglesa e Norte-Americana da Faculdade de Filosofia e Letras da UBA.
A Universidade de Buenos Aires também ajudou a formar 16 presidentes do país.
Ela aparece a cada ano entre as 100 melhores do mundo e uma das primeiras da América Latina, graças à “sua reputação excepcional entre acadêmicos e empregadores, bem como por causa da agenda de pesquisa intensamente colaborativa”, segundo a consultoria Quacquarelli Symonds ( QS), que produz uma das classificações mais prestigiadas do ramo.
A UBA possui 13 faculdades, onde são ministrados mais de 80 cursos de graduação.
Seis deles — Línguas Modernas, Antropologia, Direito, Engenharia de Petróleo, Sociologia e Arte e Design — estão entre os 50 melhores do mundo segundo a lista da QS.
Um dos mobilizados nestes dias de protesto foi precisamente Pérez Esquivel, um dos prêmios Nobel da argentina, que recordou no X as palavras do seu colega Nobel Bernardo Houssay: “A ciência não é cara, cara é a ignorância.”
3. Grande número de estudantes estrangeiros
Um dos debates que tem ocorrido em torno da crise nas universidades públicas é o número de estudantes estrangeiros.
A Argentina é o país da região com maior número de estudantes de outros países, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
E, devido ao prestígio e à gratuidade universal, a UBA tornou-se um foco de atração para estes estudantes internacionais.
Dos mais de 385 mil alunos matriculados na UBA, o percentual de estudantes internacionais em cursos de graduação é de 9,5% — o dobro da média nacional.
Nos cursos de pós-graduação, que são pagos, o número é de 16,5%, segundo dados da universidade e do Ministério da Educação argentino.
A maior parte dos estudantes estrangeiros vem de países da região, como Peru, Brasil, Paraguai, Venezuela, Colômbia, Chile e Equador.
Segundo muitos estudantes, essa mistura cultural enriquece a vida universitária.
O fato de não existirem exames de admissão e de não haver discriminação com base na nacionalidade — além de o país dar a oportunidade de trabalhar durante os estudos — são alguns dos argumentos citados pelos estudantes estrangeiros que optam pela Argentina e pela UBA em particular.
A Medicina é a carreira mais popular entre os estudantes estrangeiros e locais devido à qualidade do ensino, entre outras coisas.
A UBA administra seis hospitais universitários onde a população é atendida e pesquisada. Mais de meio milhão de pessoas passaram por consultas nesses locais no ano passado. A maioria dos graduados também faz a residência nessas instituições.
Os cortes anunciados pelo governo Milei também afetam esses centros médicos, que estão no limite, segundo os gestores.
4. Sistema de ingresso
Mas a UBA não se destaca apenas por ser gratuita. Ela também oferece um acesso irrestrito. Ou seja, ela não tem um vestibular: a universidade possui o chamado Ciclo Básico Comum (CBC) desde 1985.
O CBC, com duração de um ano, é o primeiro ciclo de todas as carreiras da Universidade de Buenos Aires, que consiste em seis disciplinas: duas matérias globais, comuns a todos os alunos, independentemente da carreira, duas específicas para a orientação dos cursos e outras duas do ramo do conhecimento escolhido pelo aluno.
Para poder ingressar em qualquer faculdade da UBA, é imprescindível uma aprovação no CBC. O objetivo desse ciclo básico é que todos os alunos iniciem seus respectivos estudos universitários com um nível parecido.
Além disso, ao incluir disciplinas compartilhadas por diferentes formações, o CBC também serve para orientar os alunos e oferece uma educação mais global.
Fonte: BBC
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