- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
Com sete estatuetas, o filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo foi o grande destaque do Oscar em 2023. A história se baseia na premissa do multiverso e da possibilidade de saltar entre uma realidade paralela e outra.
Mas essa está longe de ser a única obra da cultura pop a abordar esse tema: nos últimos anos, o multiverso virou pano de fundo de muitas outras histórias retratadas no cinema e na televisão.
O principal exemplo são os filmes de super heróis mais recentes do Universo Cinemático da Marvel, que se baseiam na ideia de viagens entre mundos possíveis — um dos últimos lançamentos da franquia foi justamente Doutor Estranho no Multiverso da Loucura.
Já nos serviços de streaming, séries como Dark e Ricky e Morty mostram conceitos parecidos de formas completamente distintas. Enquanto a primeira acompanha desaparecimentos misteriosos numa pequena cidade alemã, a segunda conta as aventuras de um avô cientista e seu neto por infinitas realidades e possibilidades.
Mas por que esse assunto ganhou um destaque repentino nos últimos anos? E como ele ajuda a entender e popularizar conceitos altamente complexos da física e da filosofia?
A BBC News Brasil conversou com o filósofo da ciência Osvaldo Pessoa Jr., professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). O especialista também é formado em física e tem um mestrado na área da física experimental.
Ao longo da entrevista, Pessoa Jr. avaliou como as teorias sobre o multiverso se desenvolveram em diferentes campos do conhecimento, e como a popularização desses conceitos influencia a sociedade — de forma positiva e negativa.
Confira os principais trechos a seguir.
BBC News Brasil – Do ponto de vista da física, o que são os multiversos?
Osvaldo Pessoa Jr. – Eu diria que o multiverso é uma hipótese. Não há nenhuma evidência científica que indique diretamente a existência de universos paralelos. Temos os conceitos de multiversos da física e da filosofia.
No caso da física moderna, existe um problema teórico na área de partículas, que é o fato de que, se as constantes do universo fossem levemente modificadas — por exemplo, se a carga do elétron sofresse uma alteração mínima, de 1% ou até menos — a vida já não seria mais viável.
Claro que tudo isso é discutível, e esse universo poderia ter vida de alguma outra maneira não conhecida. Mas, a princípio, parece que as constantes do universo estão ajustadas de uma maneira muito fina.
Como você explica o fato de que essas constantes são ajustadas de tal maneira a ser possível ter vida inteligente no universo? Existem três explicações básicas. A primeira fala em Deus, que criou o universo com as constantes ajustadas para existir vida inteligente. A segunda hipótese é a de que não tem explicação mesmo. Esse é um dado bruto, as coisas são assim e não há muito o que especular sobre.
A terceira tentativa de explicar isso seria o seguinte: ora, e se houvesse um grande número de universos paralelos, e eles brotassem como os galhos de uma árvore? A partir daí, poderíamos reconhecer que na maioria deles não haveria viabilidade para a vida, porque as constantes do universo variam aleatoriamente. Ou seja, em 99% desses universos não haveria vida. Mesmo assim, em 1% deles poderia existir vida.
É claro que a gente só vai poder fazer ciência num universo com condições de ter vida. Esse ponto do argumento é conhecido como princípio antrópico. Ele é meio óbvio, mas importante para a explicação funcionar. A gente sabe que faz ciência e tem vida inteligente no nosso universo. E o princípio antrópico diz que só num universo que permite a existência de vida inteligente é que alguém como nós pode fazer ciência.
Então, a hipótese do multiverso, que é a terceira explicação para o ajuste fino das constantes, diria que existem muitos universos paralelos — e aqueles poucos que reúnem algumas condições têm vida inteligente, como é o caso do nosso.
Agora, tudo isso é hipótese e não tem nenhuma comprovação científica. Não se sabe nem se é possível fazer algum experimento para testar essas ideias. Ou seja, são discussões teóricas.
Temos também a teoria das cordas, que unifica vários ramos da física, mas ainda carece de evidências independentes. Essa teoria tende a favorecer um cenário de multiversos — inclusive, o Big-Bang nesse cenário não seria o começo dos tempos, mas configuraria uma continuidade.
BBC News Brasil – E como esses conceitos aparecem em filmes, séries e na cultura pop de modo geral?
Pessoa Jr. – Da maneira como esses conceitos são propostos, eles não são muito interessantes para a ficção científica. Porque mesmo nos universos paralelos em que existe vida inteligente, ela vai ser algo totalmente diferente do que conhecemos. Se a gente quiser trabalhar com essa hipótese em termos literários, é mais fácil imaginar que temos nos confins da galáxia uma outra civilização parecida com a nossa.
A hipótese do multiverso da física não traz nenhum contexto novo para a ficção científica. Então, em si, ela não desempenha uma função para a literatura fantástica — a não ser o fato de que é a física falando sobre esse tema, o que dá uma certa sustentação teórica.
Aliás, é curioso pensar que o misticismo quântico sempre apela para a ciência. Os adeptos dele dizem que “a física quântica diz isso ou aquilo”. Ou seja, a justificativa científica desempenha um papel no misticismo, que é tão fantasioso quanto a ficção científica, mas tem outras intenções.
A diferença é que o misticismo se vende como verdadeiro e a literatura fantástica se entende como ficção.
BBC News Brasil – Ou seja, do ponto de vista da física, aqueles universos paralelos em que o mundo é praticamente igual e as pessoas são as mesmas, com algumas diferenças pontuais, não é possível?
Pessoa Jr. – Partindo das hipóteses conhecidas, certamente isso não faz sentido algum.
BBC News Brasil – E na filosofia da ciência? Como os conceitos de multiverso são abordados?
Pessoa Jr. – No filme Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, vemos uma equipe de análise de computador que faz o mapeamento dos vários universos. Eles falam em proximidade de universos. Essa ideia vem do David Lewis, um filósofo americano muito genial e um tanto “viajante” que trabalhava na Universidade de Princeton, nos EUA.
Em filosofia, sempre se falou em mundos possíveis. Um autor que abordou isso foi Gottfried Wilhelm Leibniz, um cristão fervoroso que defendia a ideia de que, de todos os mundos possíveis, nós vivemos no melhor deles — apesar de não parecer.
A ideia de que as coisas poderiam ter sido diferentes é razoável, faz parte do senso comum. Nosso cérebro é muito bom em prever o futuro. A habilidade de conseguirmos antever o comportamento dos outros animais e das pessoas é um fator de seleção natural. Em grande medida, evoluímos para prever o futuro. E essa capacidade também permite que a gente olhe para trás e pense: e se naquele dia eu não tivesse tratado mal aquela pessoa? Como estaria hoje?
Esse sentimento utiliza essa capacidade mental e cerebral de prever cenários futuros, mesmo em relação ao que aconteceu no passado. Esse é o chamado pensamento contrafactual, em que você imagina um cenário coerente que não aconteceu (por isso é contra os fatos), mas ele é plausível e há boas razões para acreditar nele. Ou seja, se eu tivesse tomado uma decisão diferente, as coisas teriam se desenrolado de outra forma. Nós conseguimos imaginar essas possibilidades.
E para nós, é natural pensar em possibilidades diferentes, mundos possíveis e situações contrafactuais.
Bem, voltemos ao David Lewis e à década de 1960. Ele tem razões filosóficas e técnicas que o levaram a defender que esses mundos possíveis que a gente imagina de fato existem. Ele achava que qualquer mundo logicamente possível existe de fato, de forma concreta. Um exemplo que ele dá: o mundo onde os asnos falam. Existe uma possibilidade de isso ser verdade? Sim. Então esse mundo existe.
É claro que essa teoria é muito difícil de engolir e pouca gente acredita nela. Mas ele defendia isso e influenciou a filosofia. Nessa análise, Lewis introduziu a ideia de mapeamento da distância entre os mundos. No filme, por exemplo, temos aqueles gráficos com bolinhas, que mostram quais são os universos mais próximos.
O que são esses mundos próximos? São aqueles em que há apenas uma diferença em relação ao nosso. Então, naquele mundo específico está tudo igual. Porém, na hora em que eu encontrei aquela pessoa e a tratei bem, em vez de tratá-la mal, abre-se uma nova possibilidade. Você tem uma pequena diferença, mas há consequências desse ato. Ou seja, é um mundo diferente, apenas a um passo de distância do nosso.
Agora, posso imaginar um mundo em que eu tratei bem a pessoa, porém escrevi um artigo de jornal falando mal dela. Daí eu tenho duas diferenças em relação ao primeiro universo. Então ele está um pouco mais distante. E por aí vai…
Outro elemento do filme que tem relação com a filosofia é a ramificação dos mundos a cada decisão que o ser humano toma. Ou seja, no momento em que decidi tratar bem ou tratar mal uma pessoa, segundo essa ficção científica, esses dois mundos passam a existir de maneira paralela.
Essa ideia de que, no momento de uma escolha, o mundo em que estamos se divide em dois vem de um contexto da filosofia da física quântica. Ou melhor, de uma interpretação da física quântica que se originou na década de 1950 com o trabalho de Hugh Everett.
Everett foi orientando de um físico bastante criativo chamado John Archibald Wheeler, que o incentivou a desenvolver algumas ideias. Elas estão baseadas no fato de que, na física quântica, todas as vezes que você faz uma medição com um aparelho, há o chamado “problema da medição ou do colapso”.
Esse problema está relacionado ao fato de que o átomo que você está medindo se comporta como uma onda que se espalha no espaço. Na hora em que se mede a posição desse átomo, você o obriga a aparecer num ponto bem específico. Então, aquela onda espalhada colapsa para um ponto, onde ocorre a medição.
Não há teoria que explique por que o átomo colapsa em direção a um ponto, e não para outro. Por que isso acontece? Existem várias hipóteses, mas nada comprovado. Esse é considerado um problema em aberto. As soluções que são dadas são interpretações, ou a filosofia da física quântica. São todas as hipóteses para as quais você não tem comprovação ainda.
Uma dessas interpretações, que é a do Everett, diz que o problema da medição pode ser resolvido porque, na hora em que se faz a medição, você não precisa supor as razões para o colapso ter acontecido para um lado e não para o outro. Segundo ele, por que não pensar que as duas coisas acontecem ao mesmo tempo? Que dois aparelhos de medição entram em superposição quântica?
E ele entende que, nesse caso, as pessoas que estão observando os aparelhos também entram numa superposição quântica, se transformariam numa espécie de onda e estariam em dois estados ao mesmo tempo. Uma delas estaria vendo a partícula no detector um e outra observaria no detector dois.
O que ele notou é que esses dois ramos permaneceriam em paralelo para sempre, sem a possibilidade de juntá-los novamente.
Ele não usou a terminologia dos universos paralelos e se ateve à ideia de que os mundos estariam em superposição quântica.
Para Everett, a ramificação quântica só acontece quando você faz a medição. Mas existem outras análises filosóficas que consideram que as ramificações desse tipo acontecem a cada segundo.
De novo, falamos apenas de situações hipotéticas e é divertido ficar pensando nas consequências lógicas de tudo isso. Mas não há nenhuma evidência científica a favor delas. A interpretação do Everett é uma entre várias, mas é legal que a literatura, o cinema e a ficção se inspirem nessas ideias e se preocupem em montar histórias lógicas e coerentes.
BBC News Brasil – Essa temática do multiverso tem aparecido em várias obras da cultura pop. Além de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, todos os filmes recentes da Marvel tratam sobre o tema, bem como as séries Dark e Rick e Morty. Na visão do senhor, por que esse assunto ganhou mais popularidade nos últimos tempos?
Pessoa Jr. – Acho que a popularização de ideias filosóficas contribui para isso. A internet ajudou muito, inclusive na disseminação dos misticismos.
Você acessa a internet e vê vídeos de pessoas dizendo que a matéria é vazia e portanto o materialismo é falso e precisamos postular um espírito para animar as coisas. Esse tipo de discurso, que vai da religião e da ideologia à filosofia, aparece muito na internet. E os alunos que vêm estudar física e filosofia já tem algum conhecimento prévio sobre todos esses tópicos.
O que a internet fornece é esse tipo de especulação que, como não se trata de algo científico, que se baseia em evidência concreta, não há problema se a pessoa tem alguma ideia estapafúrdia e exagerada. Porque estamos num terreno de opinião sobre filosofia e metafísica.
Dentro desses tópicos, a divisão entre especialistas e não especialistas fica mais difusa do que em outros campos da ciência. Claro que a gente separa entre indivíduos que têm mais ou menos base para falar daquilo. Mas todos podem especular e sugerir hipóteses.
Para resumir, as pessoas recentemente têm mais contato com as ideias de mundos paralelos e acham bacana. E não dá pra dizer que é tudo besteira, pois são hipóteses discutidas no terreno da filosofia.
O segundo aspecto é que os cineastas estão cada vez mais valorizando uma consultoria por parte de cientistas e filósofos. O filme Interstellar, por exemplo, apesar de alguns exageros, dá pra perceber que passou por uma consultoria séria e traz coisas de ciência que estão representadas da melhor maneira possível.
Gostaria de acrescentar que, ao longo da minha carreira, estudei o chamado misticismo quântico. Ele começa a ser disseminado em meados de 1975 nos circuitos esotéricos a partir da Califórnia, nos EUA. E, ao longo de 15 anos, vai lentamente permeando diferentes instâncias da sociedade até que, nos anos 1990, se torna uma moda.
O que a gente observa é que o misticismo quântico tem altos e baixos. Ele estava em alta nos anos 1990. Porém, veio a crise econômica de 2008. E um dos combustíveis dessa situação foi justamente o misticismo quântico, que postulava ideias como “o pensamento positivo é capaz de alterar a realidade”.
Isso incentivava as pessoas que trabalhavam em empresas bancárias a emprestar muito dinheiro, sob a ideia de que o pensamento positivo faria tudo dar certo. No final, não deu e todo o sistema bancário ruiu.
Isso provocou um refluxo nesse campo e o misticismo quântico diminuiu sua intensidade. Agora, o interesse pelo tema começou a subir de novo.
Talvez, essa moda de gostar de universos paralelos que a gente encontra na cultura também esteja relacionada a esses altos e baixos.
BBC News Brasil – Uma das teorias que circulam na internet sobre o maior interesse no multiverso aponta que esse fenômeno tem a ver com a própria realidade das pessoas. Isso porque nós assumimos diferentes “personas” nos diversos ambientes que vivemos — temos um determinado modo de comportamento nas redes sociais, outro no trabalho, um terceiro com amigos e familiares… Assim, viveríamos dentro de multiversos distintos dentro de nossa própria realidade. Esse tipo de análise faz sentido?
Pessoa Jr. – Eu acho que faz sentido. Esse fenômeno sempre aconteceu. Na minha infância, lembro de perceber que em alguns contextos eu era mais ou menos extrovertido. Mas acho que você tem razão ao apontar que, com a internet, isso se amplifica. Essa é uma hipótese interessante.
Outra ideia que se lança nesse momento em que a filosofia permeia nossa cultura de maneira mais intensa é a de um mundo virtual. Por exemplo, o conceito de que talvez um ser humano possa pegar todas as informações que ele carrega no cérebro e recriar uma identidade no mundo virtual.
O que não é tão plausível assim é a tese de que, se eu for recriado no mundo virtual, eu voltaria a existir e ter consciência. Seria possível ter uma consciência independente do corpo, usando como base um computador?
BBC News Brasil – Assim como a física e a filosofia parecem influenciar a cultura pop, o caminho contrário também pode acontecer? Ou seja, a ficção científica tem o poder de modificar teorias, hipóteses e pesquisas feitas por acadêmicos?
Pessoa Jr. – A princípio, sim. Temos por exemplo os escritos de Jules Verne no século 19, que tiveram alguma repercussão na ciência e na tecnologia. Essa conexão acontece particularmente na tecnologia, ou nas escolhas que os seres humanos fazem na hora de decidir estudar um assunto ou outro.
Com certeza, a ficção científica influencia as escolhas técnicas do ser humano. Se eu decido congelar meu corpo quando estiver prestes a morrer para ressuscitar daqui a 300 anos, por exemplo. Nós decidimos investir dinheiro nesse tipo de coisa. E geralmente essas ideias vêm da literatura fantástica.
Agora, não me parece que a ficção chegue a influenciar as hipóteses científicas em si. Claro, devem existir casos em que isso aconteceu, quando algum cientista se inspirou em alguma história. Mas isso é algo mais limitado.
Já no caso da filosofia, há uma influência clara. Um filme como Matrix, por exemplo, desperta nos alunos um interesse maior pela filosofia. E os professores respondem discutindo mais sobre essas questões. Há um diálogo claro entre a cultura e a filosofia.
BBC News Brasil – Dentro dessas discussões sobre hipóteses filosóficas, evidências científicas e misticismos, o senhor acredita que a popularização de alguns conceitos científicos — como o multiverso — tem potencial de trazer benefícios ou prejuízos à sociedade?
Pessoa Jr. – A sua pergunta é sobre a exploração das ideias de ficção científica, e se isso é benéfico ou não. A princípio, eu diria que é benéfico. Principalmente quando a história é bem feita e tenta seguir uma lógica, com regras internas bem estabelecidas.
Isso desperta a nossa imaginação, o nosso pensamento lógico, e passamos a imaginar os mundos possíveis.
Por outro lado, uma coisa a ser examinada, e para a qual não tenho a resposta, é a conexão disso com ideologias fascistas e pseudociências. A ideia de Terra plana, por exemplo. Os terraplanistas passaram a levar isso a sério. Talvez a conexão com a ideologia aconteça aí: quando você pega cenários ficcionais e passa a defender que eles são reais. Aí você já está dando um passo para direcionar as ações das pessoas.
Se você diz que universos paralelos são reais e todas as vezes que você toma uma decisão o mundo se bifurca, isso pode mudar a vida de algumas pessoas, com efeitos positivos ou negativos.
Talvez a questão esteja ligada à hipótese de que isso não passa de uma ficção científica. Ou seja, no momento em que a pessoa passa a acreditar que aquilo é real, isso pode representar uma influência negativa da ficção na nossa cultura.
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