- Author, Mariana Alvim
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Atletas de alto desempenho como o jogador de futebol Vinícius Junior têm um papel de prestígio na nossa sociedade contemporânea, mas o fato de o brasileiro ser um negro gera uma quebra de expectativas na hierarquia social dominada pelos brancos, segundo analisa o jurista Adilson Moreira.
Na semana passada, no dia 21/5, o atacante do Real Madrid foi alvo de gritos racistas em um jogo da La Liga, o campeonato espanhol, contra o time do Valencia. Isso já ocorreu pelo menos dez vezes com o atleta brasileiro na Espanha.
“A sociedade precisa ser permanentemente convencida de que pessoas não brancas não são atores sociais competentes. Então, a degradação moral de pessoas não brancas é um elemento central de todas ou quase todas as formas de racismo”, diz Moreira, doutor em direito pela Universidade de Harvard e professor visitante da Universidade de Stanford, ambas nos Estados Unidos.
“O caso do Vinícius Junior atesta isso de forma ainda mais clara, porque ele é um homem negro retinto e um profissional de altíssima competência. Isso leva muitas pessoas brancas a uma situação de pânico racial.”
Moreira, que é também professor assistente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, é autor do livro Racismo Recreativo (Editora Jandaíra). O conceito que ele propõe, e que dá título à obra, refere-se a mensagens que demonstram desprezo por minorias raciais através do humor e de atividades como os esportes.
O livro analisa programas humorísticos que retrataram personagens negros de forma depreciativa e também 88 decisões judiciais no Brasil em que o humor racista foi utilizado para se referir a minorias raciais.
Segundo o pesquisador, tanto os programas quanto as decisões judiciais recorrem aos mesmos estereótipos.
Recentemente, outra acusação de racismo que ganhou repercussão chegou à Justiça brasileira: em meados de maio, o Tribunal de Justiça de São Paulo exigiu que o humorista Leo Lins retirasse um vídeo do ar.
A decisão afirma que o vídeo propagava “comentários odiosos, preconceituosos e discriminatórios contra minorias e grupos vulneráveis”.
Lins foi também proibido de realizar nas suas apresentações novos comentários contra minorias. A BBC News Brasil procurou o humorista através do seu contato para publicidade, mas não teve retorno.
Falas de Lins sobre negros em 2017 são, inclusive, mencionadas por Adilson Moreira em seu livro.
Além de Racismo Recreativo, Moreira é autor de outras publicações, como o livro Pensando Como Um Negro: Ensaio de Hermenêutica Jurídica (Editora Contracorrente), que foi finalista do Prêmio Jabuti em 2020, na categoria Ciências Sociais.
O jurista, que está morando na Califórnia, conversou com a BBC News Brasil por chamada de vídeo. Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Nos últimos dias, dois casos relacionados ao racismo tiveram repercussão no Brasil: primeiro, a decisão da Justiça contra o humorista Leo Lins e depois manifestações racistas contra Vini Jr. durante um jogo de futebol na Espanha. Ambos são casos de racismo recreativo?
Adilson Moreira – Não tenho dúvida alguma. Os dois casos envolvem manifestações racistas, e o racismo é um sistema de dominação social que tem dois propósitos fundamentais. Primeiro, garantir vantagens competitivas para pessoas brancas. Segundo, garantir que a respeitabilidade social seja um patrimônio exclusivo de pessoas brancas, para que pessoas brancas continuem tendo acesso privilegiado ou exclusivo a oportunidades sociais, pelo simples fato de serem brancas.
Isso ocorre tanto no Brasil quanto na Espanha e em várias outras sociedades ocidentais. A sociedade precisa ser permanentemente convencida de que pessoas não brancas não são atores sociais competentes. Então, a degradação moral de pessoas não brancas é um elemento central de todas ou quase todas as formas de racismo. Ela é certamente o elemento central do que eu chamo no meu livro de racismo recreativo.
O caso do Vinícius Junior atesta isso de forma ainda mais clara, porque ele é um homem negro retinto e um profissional de altíssima competência. Isso leva muitas pessoas brancas a uma situação de pânico racial.
Porque se há pessoas negras tão competentes, se a sociedade for convencida de que pessoas negras, asiáticas ou indígenas podem desempenhar funções sociais com a mesma competência — e, no caso dele, com uma competência muito maior do que a maioria de pessoas brancas —, o status social privilegiado [dos brancos] está ameaçado. Então, eu preciso degradar aquela pessoa.
E, nesse caso, há ainda outro ponto. A advogada Ângela Leite demonstra [no capítulo “Ofender para ganhar”, do livro Direito Antidiscriminatório e Relações Raciais] o seguinte: jogadores de futebol são atletas. Atletas são pessoas que ocupam um papel muito importante no nosso imaginário social. Eles não tinham nenhuma relevância no século 19, mas desde a segunda metade do século 20, eles se tornaram modelos de masculinidade.
Então você tem aí uma relação de ambivalência, porque o Vini Jr. é um atleta, um profissional de alto desempenho, mas ele é negro. Isso significa que ele não representa a masculinidade ideal.
BBC News Brasil – Você poderia exemplificar que oportunidades sociais seriam essas que seriam restringidas pelo status social dos brancos?
Moreira – Há centenas de milhares de exemplos de como o humor e os estereótipos afetam pessoas negras. Isso ocorre no acesso à Justiça, no acesso ao trabalho, no acesso à saúde… No SUS [Sistema Único de Saúde], mulheres brancas são atendidas em média por 15 minutos, homens brancos por 12 minutos, mulheres negras por 8 minutos e homens negros por 5 minutos.
Veja só a discussão sobre o episódio do Leo Lins. Há uma série de atores sociais argumentando que aquilo é censura, que aquilo é o politicamente correto tomando conta do sistema judiciário brasileiro, que teríamos uma legislação antipiada. Mas o humor é uma mensagem, que produz sentido para a outra pessoa na medida em que ela compartilha as opiniões do indivíduo que contou a piada.
Então, para que o humor racista, sexista, homofóbico possa produzir o efeito cômico, grande parte ou a sociedade como um todo precisa acreditar que mulheres, negros e homossexuais são pessoas inferiores, diferentes, incompetentes, moralmente degradadas.
O que está por trás da ideia de que “quem não quer consumir, não vá” é a noção de que o elemento cognitivo que faz alguém rir da piada está circunscrito àquele momento.
Então, depois que eu saio do show e me encontro com pessoas negras, asiáticas ou indígenas, em outras situações, eu agiria de maneira civilizada. Não. O elemento cognitivo que me faz rir de uma piada racista também molda a minha percepção daqueles indivíduos em todas as outras circunstâncias. Então, se eu sou um profissional de recursos humanos e tenho que decidir entre um homem negro e um homem branco, eu vou decidir em favor do homem branco, porque eu sou culturalmente treinado a acreditar que só pessoas brancas são competentes.
BBC News Brasil – Então, uma piada não fica restrita ao teatro em que ela foi proferida?
Moreira – É inteiramente impossível. E o livro [Racismo Recreativo] mostra isso. Eu fiz questão de primeiro analisar uma série de personagens negros em programas humorísticos e depois, de uma série de processos judiciais, que mostram que os estereótipos são exatamente os mesmos observados nos programas.
BBC News Brasil – Quando há leis e decisões judiciais influenciando no conteúdo do humor, isso não traz risco nenhum à liberdade de expressão?
Moreira – A liberdade de expressão é um princípio constitucional que surgiu dentro de um contexto muito específico, nos Estados Unidos do início do século 19, em função de leis chamadas de atos de sedição, que proibiam críticas ao governo federal — em um momento que o governo estava fazendo uma série de coisas contrárias ao interesse coletivo. Isso foi considerado um ato de censura, porque ele impedia críticas da população a atos governamentais que efetivamente estavam prejudicando a população.
Isso é censura, quando um indivíduo exerce seu cargo de forma inapropriada e diz: você não vai me denunciar. Estamos em uma democracia onde a informação precisa circular, onde eu, você e o Leo Lins precisamos tomar conhecimento [da informação], expressar opiniões, para decidir pelo bem comum.
É algo muito diferente de discurso de ódio.
BBC News Brasil – Então a censura é algo circunscrito à política institucional?
Moreira – Essa é a origem tanto da discussão sobre censura quanto de liberdade de expressão. Mas certamente a censura pode ser exercida contra qualquer indivíduo, contra qualquer grupo cujas manifestações, discursos, são contrários aos interesses dos grupos dominantes. Porque censura implica uma relação de poder.
Pessoas brancas tentam nos convencer que a luta contra o racismo é uma questão de censura. Não. A luta contra o racismo é uma luta pelos valores civilizatórios.
Não creio que há problema de pessoas de humoristas brancos fazerem piadas em relação a pessoas negras. Essas piadas podem assumir uma variedade de formas, sem que isso signifique a degradação moral de pessoas negras.
Eu posso fazer piadas sobre mulheres ou sobre mulheres específicas sem que isso expresse a degradação moral. Eu posso construir um programa de televisão em torno de uma mulher que é uma alpinista social, sem que isso seja uma uma degradação das mulheres, como no programa de televisão mais popular da BBC, Keeping Up Appearances.
BBC News Brasil – E o que você pensa no humor que faz graça com os brancos pobres nos EUA?
Moreira – Eu não vejo propósito em fazer piadas racistas com pessoas brancas, pobres e norte-americanas, que eles chamam de red necks (em tradução literal, “pescoços vermelhos”). Especialmente quando nós consideramos o fato de que pessoas brancas sofrem com a homofobia, sofrem com a pobreza. E aqui nos Estados Unidos, sofrem tremendamente com a pobreza.
E vamos lembrar que representantes de grupos minoritários e de grupos subalternizados também produzem humor sobre si mesmos.
Há toda uma tradição riquíssima de humor de judeus e em relação a costumes existentes dentro da comunidade judaica, sobre a mãe judaica, sobre tradições judaicas… A mesma coisa em relação a negros e a comunidade negra.
BBC News Brasil – Então a questão do identitarismo se torna mais prominente aí? Ou seja, é mais aceitável que uma pessoa negra faça piada sobre sua comunidade?
Moreira – Eu acho que nesses casos é diferente porque o humor não está partindo de uma pessoa com o objetivo de legitimar a dominação social.
O humor tem uma pluralidade de objetivos, então um deles é produzir prazer e graça através de situações irônicas, jocosas, sobre membros do próprio grupo. Tem o objetivo de alívio e relaxamento.
A teoria do racismo recreativo não está baseada em um senso de hipersensibilidade, como as pessoas, especialmente homens brancos heterossexuais, dizem: “Ah, agora a gente não pode falar mais nada que eles ficam ofendidos”. Não é sobre ofensas no sentido superficial da palavra. Não.
As pessoas negras ouvem comentários racistas todos os dias. Elas confrontam atitudes e atos racistas todos os dias. E esse essas atitudes, essas falas, comprometem o status coletivo [dos negros]. As piadas sexistas comprometem o status coletivo de mulheres.
Como o humor atua para reproduzir essa ideia? Por meio de piadas que falam que mulheres são emocionalmente descontroladas, que elas são muito sensíveis. O que elas realmente estão dizendo é: “Mulheres são muito emotivas. Nós homens, pelo contrário, somos seres racionais. Portanto, nós é que devemos ter acesso a cargos de comando e as mulheres devem estar numa posição subordinada.”
O humor racista, sexista, homofóbico é, antes de tudo, comportamento estratégico.
BBC News Brasil – Depois das últimas manifestações racistas contra o Vini Jr., algumas pessoas levantaram a questão sobre se o Brasil estaria mais avançado no combate ao racismo no futebol. O que você acha?
Moreira – Eu detesto futebol e não acompanho futebol [risos]. Mas, no livro, eu menciono decisões de tribunais esportivos que condenaram clubes pela prática de racismo, como foi o caso do Grêmio [em 2022, o clube foi condenado pela Justiça a pagar multa por um grito racista da torcida]. Eu não creio que isso tenha ocorrido na Espanha.
BBC News Brasil – Quem deve regular e decidir os limites da liberdade de expressão? O Legislativo, o Judiciário, a própria reação espontânea da população…?
Moreira – Cada um destes atores sociais tem uma função importante nesta regulação. Primeira, nós temos uma Constituição. Nós temos também uma lei que regula crimes de racismo [a lei 7.716]. A Constituição garante a liberdade o direito à liberdade de expressão, mas nunca foi sobre a possibilidade de você dizer o que você quiser. Nunca.
[O princípio da] A liberdade de expressão tem uma origem em um objetivo muito específico, que é permitir a circulação de discursos de informação que podem contribuir para o bem comum. Racismo, sexismo, homofobia, nada disso, são coisas que promovem o bem comum.
BBC News Brasil – Referindo-se ao caso Leo Lins, o humorista Fabio Porchat escreveu no Twitter que “dentro da lei pode-se fazer piada com tudo”. Tecnicamente, isso é verdade?
Moreira – Não, não é. Por causa da lei 7.716. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei no início deste ano que traz modificações na lei 7.716, e uma delas caracteriza o crime de injúria racial quando há o objetivo de promover riso e entretenimento jocoso. Além da Constituição, que traz os princípios da igualdade e da dignidade humana.
BBC News Brasil – No caso do humorista Léo Lins, a Justiça o proibiu de fazer quaisquer comentários daqui para frente em suas apresentações contra minorias e categorias vulneráveis. Isso não extrapola os limites de como a Justiça pode interferir na expressão de uma pessoa?
Moreira – O Tribunal de Justiça agiu corretamente, de acordo com a lei, a lei 7.716. Isso não foi censura prévia ou qualquer coisa dessa natureza. O tribunal apenas acenou para ele: olha, tome cuidado para não fazer esse tipo de comentário racista, porque isso configura crime.
BBC News Brasil – Você é a favor de cotas no magistério?
Moreira – Eu sou integralmente a favor de cotas. Isso é absolutamente essencial para que o sistema de justiça brasileiro possa operar de forma adequada. A maioria dos membros do sistema judiciário brasileiro são pessoas brancas, heterossexuais e de classe alta.
[Nota da redação: Segundo um relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2021, 68,3% dos servidores do Poder Judiciário são brancos e 30% negros. Entre os magistrados, 85,9% são brancos e 12,8% são negros. Os dados consideram apenas pessoas cuja raça foi declarada.
Outro relatório do CNJ, de 2019, com dados relativos à atividade nos 10 anos anteriores, mostrou que 56,6% dos servidores do Judiciário eram mulheres, enquanto na magistratura o percentual de mulheres cai de 37,6% no período.]
As pessoas brancas de classe média-alta no Brasil têm pouco ou absolutamente nenhum contato com negros. Além disso, são socializadas a partir da ideia de que o racismo não tem relevância no Brasil.
Como você não tem contato com negros, a representação que você tem, especialmente de homens negros, é que eles são sujeitos perigosos. Isso vai, conscientemente ou inconscientemente, modificar a sua decisão. Isso é tão notório que é escrito em decisões judiciais: “O acusado não parece ter uma aparência de bandido porque ele tem cabelos loiros e olhos azuis.”
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