- Thais Carrança – @tcarran
- Da BBC News Brasil em São Paulo
“Sou uma trabalhadora doméstica explorando outra doméstica.”
Assim Valdirene Boaventura Santos, de 39 anos e moradora de Salvador, resume uma situação que para ela é desconfortável.
Cuidadora de idosos há oito anos e antes disso babá, arrumadeira e cozinheira, Valdirene passou a vida toda cuidando das casas e das famílias de outras pessoas.
Ela cria sozinha três filhos, de 16, 5 e 4 anos, e não consegue vaga em creche e pré-escola públicas para os mais novos no seu bairro.
As dificuldades são compartilhadas por mais de 3 milhões de crianças brasileiras que não têm vaga na educação infantil, ciclo que vai de 0 a 6 anos e é garantido como um direito pela Constituição nacional. Sem vagas, muitos pais recorrem à Justiça (veja como mais adiante neste texto).
“Na minha comunidade, tem um centro de educação infantil, chamado Olga Benário. Eu inscrevi meus filhos desde cedo, mas toda vez somos sorteados para outros bairros”, conta Valdirene, que entra no serviço às 8h e sai às 17h, o que inviabiliza para ela o deslocamento para bairros vizinhos. A família vive em Doron, a cerca de 10 km do centro histórico da capital baiana.
A trabalhadora doméstica chegou a matricular os filhos numa creche comunitária, pelo projeto Mais Infância do governo estadual. Pagava R$ 200 por criança, mas enfrentava problemas frequentes, como falta de professores, de água e de luz, que interrompiam as aulas.
“A gente que é trabalhadora doméstica não tem como justificar para o patrão que não vai trabalhar porque não tem ninguém para ficar com nosso filho”, diz Valdirene.
Durante a pandemia, pagando sem as crianças poderem frequentar, optou por tirá-las da creche comunitária. Agora, enquanto segue aguardando vaga na rede pública, Valdirene deixa os filhos com uma vizinha, que cuida na própria casa de seis crianças.
“É uma situação desconfortável, sou uma trabalhadora doméstica, conheço meus direitos como trabalhadora, luto em prol desses direitos, mas ‘casa de ferreiro, espeto de pau'”, diz Valdirene, que é secretária de assuntos jurídicos do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico).
Com seu salário de cuidadora de idosos de pouco mais de R$ 1.200 e R$ 120 de auxílio do Programa Primeiro Passo, da prefeitura de Salvador para ajuda às mães que não conseguem vaga na educação infantil, ela diz que não teria condições para assinar a carteira e pagar um salário mínimo pelo cuidado dos filhos. Também não poderia pagar por uma pré-escola privada.
Um problema que afeta a renda das mulheres
O Instituto Rui Barbosa, organização ligada aos Tribunais de Contas dos Estados, estima que o Brasil precisaria criar pelo menos 3,4 milhões de vagas na educação infantil para cumprir as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE).
Por essas metas, todas as crianças de 4 e 5 anos deveriam estar na pré-escola até 2016 e 50% dos pequenos de 0 a 3 anos deveriam ter acesso à creche até 2024.
A pandemia deixou o Brasil ainda mais distante desses objetivos, com mais de 650 mil crianças de até 5 anos tendo deixado a escola entre 2019 e 2021, segundo o Censo Escolar 2021, divulgado pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).
Embora agravado pela pandemia, o problema do baixo acesso das crianças mais novas à educação não é novo. Ele dificulta que milhares de mulheres possam trabalhar em tempo integral, garantindo uma renda maior para suas famílias.
Tays Aparecida Alves Fazzio, de 30 anos e moradora de Araquari, em Santa Catarina, enfrentou dificuldades para conseguir vaga em creche para seus dois filhos.
Para a mais velha, hoje com 8 anos, só conseguiu vaga após acionar o conselho tutelar de sua cidade — ela morava então em Bauru, no interior de São Paulo.
A educação infantil é um direito da criança garantindo pela Constituição. Dos 0 aos 3 anos, a matrícula em creche é opcional, já a inscrição na pré-escola para crianças de 4 e 5 é obrigatória. Em caso de falta de vagas tanto na creche, como na pré-escola, os pais podem acionar o Conselho Tutelar ou a Defensoria Pública, como fez Tays com sua filha mais velha.
Para o mais novo, atualmente com 5 meses, o problema é o horário das creches em Araquari: das 7h às 13h para o turno da manhã ou 12h às 18h para o período da tarde.
“Para mim não compensava, eu tive que pedir a conta do serviço e agora estou cuidando de uma criança além dele, trabalhando em casa, de babá”, conta Tays.
Formada em pedagogia e antes trabalhando com telemarketing, ela viu sua renda reduzida aos R$ 400 que ganha atualmente pelo trabalho de babá, mais uma pensão de R$ 600 que a filha mais velha recebe pelo fato de seu pai ser falecido. Tays conta da dificuldade que foi para ela deixar o emprego para ficar em casa.
“Para mim foi difícil, eu tinha planos de tentar concurso e sempre trabalhei fora, eu trabalho desde os meus 12 anos. Foi bem complicado, de repente ter que abrir mão e ficar em casa, mesmo gostando de cuidar de criança por ser pedagoga formada. Mas se eu tivesse que pagar alguém para ficar com eles, seria pagar para trabalhar, não ia sobrar quase nada.”
Uma rede de cuidado informal
Diante da falta de vagas para todos, mulheres como Tays e a vizinha de Valdirene suprem a necessidade de cuidados para milhares de crianças, principalmente nas periferias.
Isso porque, além de insuficiente, a oferta de creches e pré-escolas é muito desigual.
Conforme o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, do Todos pela Educação, 54% das crianças de 0 a 3 anos dos domicílios mais ricos do país estavam matriculadas em creches em 2019, contra apenas 28% das mais pobres. Entre as crianças de 4 e 5 anos, os percentuais eram de 98% e 93% para ricos e pobres na pré-escola, respectivamente, segundo esse cálculo.
Por regiões, enquanto os números de matrículas em creches chegavam a 44% no Sul e Sudeste, eram de apenas 33% no Nordeste, 30% no Centro-Oeste e 19% na região Norte do país.
Vitória de Andrade Lourenço, de 18 anos, cuida de crianças desde que ela mesma era pouco mais do que uma, aos 14 anos.
Ela seguiu os passos da mãe, Sueli, que cuidou de crianças em Heliópolis, bairro de baixa renda da zona sul de São Paulo, durante anos, até deixar a atividade devido a uma dor no braço que a impede de cuidar de crianças menores.
Atualmente, Vitória toma conta de apenas um menino de 3 anos, mas já chegou a cuidar de quatro crianças ao mesmo tempo. Em alguns casos, ela busca os pequenos na creche e fica com eles até os pais voltarem do trabalho.
“Também tem criança que não vai para a creche e aí fica comigo o dia todo”, diz Vitória.
Com seu trabalho de cuidadora, Vitória possibilita a outras mulheres trabalharem. Mas ela mesma sonha com um trabalho mais bem remunerado.
“Eu gostaria muito de encontrar um serviço fixo. Eu gosto de cuidar de criança, mas não é um trabalho com estabilidade e um salário mínimo às vezes te deixa na mão”, conta.
Quando cuidava de quatro crianças, Vitória chegou a fazer R$ 800 por mês. Agora, com uma só, recebe R$ 250, que complementam a pensão recebida pela mãe, após o falecimento do pai. Com a irmã desempregada, essas são as únicas fontes de renda da família.
Vitória gostaria de trabalhar na área da beleza, com design de sobrancelhas, o que daria a ela a possibilidade de ter um negócio próprio. Ela diz que também pensa em voltar a estudar.
“Eu penso bastante nisso, queria fazer pedagogia para trabalhar em creche, mas por enquanto está um pouco apertado. Tenho que ajudar em casa e nem todo curso é de graça, alguma coisa eu teria de pagar… Mas eu quero muito”, afirma.
‘Educação infantil beneficia a sociedade como um todo’
Segundo especialistas em educação, apesar do carinho e dedicação das mulheres que cuidam de crianças informalmente, esse cuidado não substitui a educação em instituições de ensino.
Mais do que um lugar para deixar as crianças pequenas, as creches e pré-escolas têm papel fundamental na formação infantil, na igualdade de oportunidades entre homens e mulheres e no combate à pobreza, já que a possibilidade de as mulheres trabalharem aumenta a renda das famílias.
“90% do desenvolvimento da criança acontece na primeira infância. Ela desenvolve as habilidades físicas e motoras — engatinhar, caminhar, dar tchau na fase certa —, mas há também o desenvolvimento cognitivo e sócio-emocional”, explica Mariana Luz, diretora da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, organização com foco na primeira infância.
“O primeiro diz respeito à capacidade de aprendizagem, de absorção de conhecimento e criativa. O segundo, a habilidades que serão úteis para toda a vida, como trabalhar em equipe, lidar bem com o estresse, ter habilidades de comunicação. Tudo isso, que são capacidades muito demandadas hoje no mercado de trabalho, se forma na primeira infância”, acrescenta.
Segundo Mariana, uma boa educação infantil aumenta a capacidade da criança de aprender ao longo de toda sua jornada educacional.
A educação infantil de qualidade também tem reflexos positivos na saúde pública, com melhora na nutrição das crianças, e na segurança pública, pois crianças mais bem desenvolvidas teriam menor probabilidade de sofrer aliciamento pelo crime.
“No longo prazo, uma boa formação inicial pode resultar em maior renda para a criança ao longo de toda sua vida, com benefícios para a geração futura e a quebra dos ciclos intergeracionais de pobreza”, diz a especialista.
Procurado, o Ministério da Educação não respondeu a pedido de posicionamento da BBC News Brasil.
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