- Bruna Alves
- De São Paulo para a BBC News Brasil
A fisioterapeuta Jéssica Araújo Reolon viu sua vida mudar após uma viagem em família, que culminou em um grave acidente de carro, no interior do Mato Grosso. Na época, ela tinha 12 anos.
Desgovernado, o carro caiu em um buraco e se chocou contra um poste, que caiu e derrubou o fio de alta tensão. “Eu estava sentada no banco do lado esquerdo, e quando desci do carro pisei com o pé esquerdo. E foi justamente a perna que perdi”, relembra.
O choque durou poucos segundos, mas Jéssica ficou consciente e sentiu o corpo queimando. Quando a sensação amenizou, tudo já tinha acontecido. “Eu abri o olho e meu pai e o amigo dele já tinham falecido, a minha madrasta estava desmaiada e a minha irmã desesperada para buscar ajuda”, relata.
Ela teve queimaduras de até 4º grau no corpo e não pôde ir ao velório do pai. “No hospital já não tinha mais sensibilidade alguma no pé e de alguma maneira eu já sabia que não voltaria a senti-lo”, diz.
Depois foi transferida de hospital e o médico disse que precisava amputar. “Foram três meses lutando, porque eu quase morri, fiquei em coma induzido, passei por duas cirurgias de amputação, cheguei a pegar uma bactéria hospitalar”, descreve.
Além disso, a falta do pai dificultou todo o processo. “Foi a fase mais difícil, porque eu queria de volta uma das pessoas que eu mais amava e ainda amo”, lamenta a fisioterapeuta.
“Eu tinha muito medo, achava que a minha vida tinha acabado, que não ia mais estudar, fazer amizades, sair e ter a vida de uma adolescente normal”, diz Jéssica.
Para Nara Siqueira Damaceno, psicóloga do Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins, vinculado à Rede Ebserh (HDT-UFT/Ebserh) é fundamental respeitar e viver os próprios sentimentos.
Segundo ela, o sentimento vivido por Jéssica é esperado nesses casos. “Porque a nossa autoestima é muito ligada a validação, a aceitação social”, explica a especialista.
E nesse contexto uma série de fatores precisam ser levados em conta, como a personalidade, a história de vida, condição social, se a pessoa vai conseguir levar uma vida semelhante a que tinha antes.
No caso da fisioterapeuta, a amputação ajudou na escolha da profissão. “Eu fiz faculdade, me formei e me especializei”, conta à BBC News Brasil emocionada. (https://www.instagram.com/jessicaareolon/?hl=pt-br).
Jéssica explica que, apesar das dificuldades de lidar com as pessoas, é compreensivo que elas perguntem o motivo da sua amputação. “Eu já recebi comentários maldosos ou ouvi pessoas fazendo perguntas mal-intencionadas, mas entendi que não é sobre o que o outro pensa ou fala, é sobre o que eu penso de mim mesma”, avalia.
Hoje, aos 26 anos, ela é fisioterapeuta especializada em amputados, trabalha, mora sozinha, faz academia, corre, dirige, sai com os amigos. “É esse nível de independência e autonomia que eu busco para os meus pacientes, porque eu sei que é possível, independente da condição”, destaca.
Para ela, talvez a pessoa não viva como antes, mas pode viver até melhor. “Porque quando você passa por coisas desse tipo, você aprende a valorizar coisas que antes não valorizava”, afirma a jovem fisioterapeuta.
“Não é porque eu sou amputada que sou menos capaz”
Natural de Araraquara (SP) Amanda Rebouças dos Santos, tem 29 anos, é enfermeira e faz residência na área de oncologia.
“Eu sempre gostei de sair e de dançar bastante. Sempre fui extrovertida, independente e fazia as minhas coisas sem precisar da ajuda de ninguém”, diz.
Aos 21 anos, Amanda havia saído para trabalhar de moto quando foi atingida por um carro. Ao chegar ao hospital, ela ainda não sabia da gravidade da situação. “Quando a minha mãe chegou, ela começou a chorar desesperadamente, e aí comecei a chorar junto”, conta.
Amanda teve uma sepse (infecção generalizada) que começou a necrosar no pé e foi subindo. Ela conta que o médico que lhe atendeu na emergência foi direto ao dizer que se ela não amputasse iria morrer. “E eu disse para: tá bom, só não deixa muito curtinho”, diz.
Apesar do susto, a jovem enfermeira conta que não hesitou. “A minha situação era vida ou morte. Então para mim perder um membro era menos importante do que perder a vida”, garante.
E por causa da sepse, a área ficou aberta (sem qualquer tipo de ponto) e ela precisava fazer curativos na “carne viva”, sem a pele, com os nervos aparentes, para não piorar a infecção.
“Na época, os médicos não sabiam o nível da infecção, então, eu tive que voltar várias vezes para o centro cirúrgico para ir tirando o tecido que não era saudável, por isso não podia fechar”, conta.
Após ter enfrentado o processo de aceitação, um novo desafio: fazer a prótese. “No hospital eu conheci pessoas maravilhosas que fizeram com que eu me apaixonasse pela enfermagem. Com a amputação eu escolhi a minha profissão para retribuir o que elas fizeram por mim e poder transmitir isso para outras pessoas”, conta. “E depois que me formei eu consegui trabalhar nesse mesmo hospital e falar com essas pessoas”, diz emocionada.
Com o tempo, Amanda decidiu que só aceitaria a opinião de pessoas que se importavam com ela. “Isso facilitou muito o meu processo de aceitação, porque depois que você é amputada não tem como as pessoas não olharem, isso é um fato. E as pessoas que ligam para a opinião de outras pessoas sofrem muito mais, porque os olhares são terríveis”, afirma.
Logo no início, Amanda teve a recomendação de fazer natação para ajudar na fisioterapia. Mas ela foi além e chegou a participar de competições. “Eu comecei a competir pela cidade de Araraquara e era a única menina. Isso era uma coisa que nunca imaginei que faria depois da amputação. E eu nado até hoje”, relata.
Hoje, faz vídeos no Instagram mostrando sua rotina de treinos. “Não são todos os exercícios que você vai conseguir fazer, mas você consegue adaptá-los, e nos vídeos eu tento mostrar que é possível ter uma vida normal”, enfatiza, dizendo que adora acampar, ir à cachoeiras, praia. (https://www.instagram.com/amandarebsantos/?hl=pt-br)
Ela comenta também que conheceu o atual namorado antes da amputação, mas quando foi colocar a prótese o levou, ainda como amigo, para ver sua reação.
“Quando é amputada você precisa saber se a pessoa vai se adaptar e saber lidar com as situações. Eu fazia o teste, colocava e tirava a prótese, mostrava o coto, para ver se ele reagia de uma forma diferente. É muito importante saber se o seu parceiro vai estar sincronizado e te aceitar da forma como você é”, afirma.
Pesquisa inédita realizada pela Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) mostrou que mais de 245 mil brasileiros sofreram amputação de membros inferiores (pernas ou pés) entre janeiro de 2012 e março de 2022.
De acordo com os especialistas, mais da metade desses casos envolvem pessoas com diabetes.
Adriana de Souza Carvalho, de 57 anos, começou a fazer atividades extracurriculares muito cedo. Entre elas estava o ballet, que não demorou muito até se tornar sua grande paixão. Isso por volta de 1977, em São Lourenço, cidade do interior de Minas Gerais. E o seu sucesso na dança a levou à famosa peça “Lago dos Cisnes” como a principal bailarina.
Mas um dia após completar 17 anos foi vítima de um grave acidente de moto, que resultou na morte do seu então namorado e do condutor da outra moto. Já Adriana, devido aos ferimentos, ficou 40 dias internada e teve que amputar a perna esquerda.
“Quando recobrei um pouco a consciência, três dias depois, eu nem sabia que tinha amputado. Mas depois, na mesma hora que o médico contou, eu pensei: ‘meu ballet, acabou a minha vida”, recorda-se.
Para a psicóloga Damaceno, os medos e incertezas fazem parte do processo de aceitação e precisam ser respeitados.
“A perspectiva que essa pessoa tinha sobre ela, agora não tem mais, e a gente olhando de fora pode parecer uma perda pequena se comparado à vida, mas para aquela pessoa, aquilo pode ter um impacto muito maior do que se imagina”, explica a especialista.
O choque inicial para Adriana foi a parte mais difícil, pois a dança era algo que havia escolhido para a sua vida. Mas ela não estava sozinha, além o apoio incondicional dos pais, a jovem contou com o carinho do seu médico ortopedista. “Ele sempre ia na minha casa e se despedia falando assim: ‘não deixa a peteca cair’, e aquilo me fortalecia”, relembra emocionada.
Adriana conta que no começo caiu várias vezes, porque “esquecia” que não tinha mais uma perna. “Então é um processo de reabilitação muito difícil. Eu vivi um momento bem forte”, relata.
Na época, ela fez uma prótese particular, que durou cerca de 10 anos. Depois, começou a usar as que são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Como moro em uma cidade pequena, as pessoas aumentam muito as coisas e começaram a dizer que eu tinha perdido até o útero, mas fora isso nunca sofri preconceito”, relata aos risos.
Aos 20 anos Adriana se casou e teve um filho que nasceu com paralisia cerebral. Depois teve outro, que veio ao mundo saudável. Hoje, ambos são formados em universidades.
Atualmente mora com os pais, dedica-se ao trabalho manual pintando telas com aquarela, e a alguns projetos sociais. “Eu andei de bicicleta pela cidade toda por muito tempo. Hoje eu nado e consigo dirigir carro normal, sem ser adaptado”, conta.
Contudo, as próteses começaram a machucá-la, o que a fez aderir ao uso de muletas. Recentemente, porém, ela concorreu em um concurso da Össur, empresa de próteses e órteses, para ganhar uma nova. E venceu. Agora, ela pôde dar adeus as muletas que a acompanharam pelos últimos sete anos.
“Antes de ganhar essa prótese, eu não tinha mais esperança de largar as muletas, mas graças a Össur recuperei muito a minha autoestima. Eu ganhei uma prótese que não machuca nada, o encaixe é maravilhoso, super confortável, e agora eu tenho mais segurança para andar”, finaliza. (https://www.instagram.com/drinhana1/?hl=pt-br)
“Eu fiquei entre a vida e a morte muito rápido”
Recém-formada em nutrição, Milena Nenemann, tem 22 anos, mora em Rio Negro (PR) e, apesar da timidez, conta que passou pela adolescência como qualquer outra jovem: estudava, saía com os amigos, viajava.
Entretanto, faltando apenas duas semanas para entrar na faculdade, aos 17 anos, teve uma pneumonia bacteriana. “Foi tudo muito rápido. comecei sentindo uma falta de ar, febre, dor de garganta e pensei que era uma gripe. Depois de uma semana, fui ao médico e ele disse que não era nada”, conta.
Mas os sintomas pioraram rapidamente e pouco depois ela foi internada direto na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), onde entrou em coma por 15 dias. Durante esse tempo, os médicos demoraram um pouco para diagnosticá-la.
“E nisso a doença foi evoluindo, meus órgãos foram parando, eu tive um choque séptico e não circulou oxigênio nos membros, que acabaram necrosando”, relata a jovem nutricionista.
Mesmo assim, os médicos aguardaram uma leve estabilidade e conversaram com ela, antes de fazer as cirurgias. “Tiveram que amputar para salvar a minha vida”, diz.
Milena teve as duas pernas abaixo do joelho amputadas, o braço direito e os dedos da mão esquerda. “As pessoas nem acreditam quando conto, mas eu recebi essa notícia de uma forma muito boa, porque vi que estava entre a vida e a morte”, enfatiza.
Depois, ela saiu do hospital e se deparou com uma realidade completamente diferente. “Eu cheguei em casa sem perna, sem mão e eu não conseguia fazer nada. Precisava dos meus pais para ir ao banheiro, andar, tudo”, relembra.
Esses, sem dúvida — foram os momentos mais difíceis, viver a sensação de dependência, período que durou cerca de cinco meses, até fazer as próteses.
“O luto não diz respeito apenas a morte física de uma pessoa, é muito mais do que isso, ele é a perda de algo que era significativo que precisa ser respeitado e vivido. Só assim esse processo realmente passa”, salienta a psicóloga do Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins, lembrando que quando isso não acontece há um risco de o luto se instalar e passar a ser crônico, podendo levar, inclusive, a quadros de depressão.
“No começo doía muito e cheguei a pensar que não iria conseguir, mas uma semana depois eu já estava andando, porque a amputação abaixo do joelho é bem mais fácil,” salienta.
Cerca de um mês depois, ela colocou as próteses da mão e começou treinar para escrever e se maquiar. “Recentemente eu coloquei meu pé de salto, parece algo fútil, mas eleva muito a autoestima”, comenta, além de confessar que não é fã de exercícios físicos, mas costuma fazer bicicleta para fortalecer os músculos da perna.
Ela atribui a forma como lidou com a situação a fé e a sua família. “Eu acredito muito em Deus e creio que ele me deu muita força, assim como a minha família e meus amigos. Sem eles, eu não estaria onde estou hoje”, afirma.
Mesmo assim, esse processo não foi fácil. “No início eu não gostava quando saía nas ruas e as pessoas ficavam me olhando, eu me sentia um ET. Agora já acostumei”, garante.
Milena chegou a morar sozinha por um tempo. “A única coisa que fazia antes que não faço mais é tocar violão, de resto a minha vida vai super bem, eu viajo bastante, vou para a balada, praia, faço tudo, graças a Deus”, comemora. “Eu quero aproveitar ao máximo a minha vida, essa segunda chance”, diz. (https://www.instagram.com/milena_nenemann/)
Atualmente, ela mora com os pais e aguarda o registro no conselho de nutricionistas para atuar na profissão. “Esse é o meu sonho e eu já tive vários relacionamentos, mas eu quero um que dê certo agora”, conclui, aos risos.
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