- Author, Vinícius Lemos
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @oviniciuslemos
Um movimento incomum tem sido notado nos cinemas brasileiros desde a estreia do filme Som da Liberdade: milhares de ingressos para o longa-metragem foram distribuídos gratuitamente por diferentes meios.
Entidades ligadas a igrejas evangélicas e policiais, a produtora Brasil Paralelo e a produtora americana responsável pelo filme, a Angel Studios, têm dado entradas para assistir ao longa.
Grupos que se autodefinem como conservadores, como os ligados a bolsonaristas, têm incentivado o público a ir às salas de cinema para assistir à produção, que estreou em 21 de setembro.
A divulgação massiva por esses grupos e a distribuição gratuita de bilhetes contribuíram para que o filme fosse o mais assistido em sua primeira semana de exibição no Brasil, com mais de 240 mil espectadores, segundo dados da Comscore.
O segundo filme mais visto na mesma semana, A Freira 2, teve 214 mil espectadores, em sua terceira semana de exibição. Lançado na mesma semana que Som da Liberdade, Mercenários 4 ficou em terceiro com 138 mil ingressos vendidos.
Som da Liberdade é baseado em relatos reais de Tim Ballard, ex-agente especial de Segurança Nacional nos Estados Unidos, que liderou o grupo “Operation Underground Railroad”, cuja missão era resgatar crianças de uma rede de exploração sexual.
Nos Estados Unidos, o filme recebeu apoio de divulgação do ex-presidente Donald Trump e do bilionário Elon Musk, dono da Tesla.
O filme é cercado por polêmicas, como críticas de que abre brechas para teorias conspiratórias, o que tanto sua produtora quanto Ballard negam (leia mais abaixo).
No Brasil, religiosos evangélicos e parlamentares bolsonaristas têm defendido a tese de que o longa mostraria algo que a mídia supostamente quer esconder.
O lançamento no Brasil
O movimento de divulgação do filme em grupos, principalmente os que se autointitulam conservadores, chamou a atenção nas redes.
Uma publicação compartilhada no Twitter na sexta-feira (22/9), após o lançamento, mostra um grupo de evangélicos entoando um canto religioso em um shopping no interior de São Paulo enquanto caminhava em direção ao cinema para assistir ao filme.
“A igreja se uniu e fechou a sala toda”, diz o responsável pela publicação à BBC News Brasil.
Em uma pré-estreia em um cinema de Brasília, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e o deputado federal Mário Frias (PL-SP), ambos ex-ministros de Jair Bolsonaro (PL), discursaram a favor do filme.
Na plateia, estavam dois filhos do ex-presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
“Não é coincidência que este filme está em cartaz neste momento. Deus ouviu o clamor das crianças”, disse Damares durante a sessão de cinema.
“Nós somos a resistência, as crianças estão pedindo socorro.”
Já o deputado Mário Frias afirmou que o longa-metragem é algo que “a grande mídia não quer falar a respeito”.
A pesquisadora Magali Cunha, que estuda religião e política, afirma que há bastante repercussão sobre o filme nas redes sociais por causa das ações de líderes políticos e religiosos com “identidade cristã afinada com a ideologia da extrema-direita”.
“Portais de notícias gospel que têm a mesma linha ideológica também repercutiram bastante. Todos enfatizam não só a importância de assistir ao filme mas também a conspiração em torno dele”, afirma Cunha, que é pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (ISER).
“Eles produzem a ideia de que mídias de notícia e esquerdas políticas trabalham contra o filme para que ninguém assista, o que é estratégia para gerar curiosidade no público e indignação, especialmente nas pessoas alinhadas com as lideranças que propagam tais conteúdos.”
Ela aponta que o combate ao tráfico de crianças não deve ter “lado político”. A pesquisadora frisa que se trata de uma “questão humanitária que deve ser abraçada por políticos, religiosos e qualquer pessoa que defende o direito à vida e à liberdade de ser”.
“Ocorre que a obra foi produzida e financiada por pessoas e organizações ligadas à extrema-direita dos Estados Unidos”, afirma Cunha.
“Esse grupo político é notório por lançar mão de pautas relacionadas à defesa da família, das crianças e de jovens para promover pânico moral e teorias da conspiração sobre interesses de ‘um sistema’ que envolveria esquerdas políticas, o comunismo, alguns nomes de empresários, políticos e religiosos interessados na destruição das famílias, na depravação sexual e na exploração de crianças e jovens, inclusive com interesses políticos e financeiros.”
No Brasil, aponta Cunha, a distribuição do filme teve características semelhantes ao que ocorreu nos Estados Unidos.
“Toda a publicidade do filme nos Estados Unidos foi construída com essas bases e a defesa dos heróis relacionados à extrema-direita. Nessa propaganda, esses seriam os únicos que estariam, de fato, empenhados em colocar um fim nesse mal.”
O movimento de divulgação do longa é considerado incomum, mas não inédito, diz o cientista político Vinícius do Valle, diretor do Observatório Evangélico.
“A Igreja Universal já usou a Folha Universal e seus próprios pastores para divulgar produções ligadas a eles”, diz Valle, em referência a filmes produzidos no Brasil, como Os Dez Mandamentos.
“Mas algo que envolva várias igrejas, como nesse caso agora, é muito difícil de acontecer.”
Ingressos grátis
Uma das principais formas de distribuição gratuita dos ingressos para o filme é por meio do site da produtora Angel Studios. Por lá, é possível comprar ingresso ou retirar gratuitamente.
Isso funciona, segundo o site da Angel, por meio de doações de pessoas que compram ingressos antecipados para serem distribuídos gratuitamente.
A Paris Filmes, responsável por distribuir o Som da Liberdade no Brasil, disse em nota à BBC News Brasil que não tem nenhuma relação com os ingressos que estão sendo doados.
“A Angel Studios, produtora internacional do filme, está promovendo por aqui a mesma estratégia de engajamento que fez no exterior: pessoas que apoiam a mensagem do filme podem comprar ingressos para outras que não podem comprar, dando a possibilidade dessas outras pessoas assistirem”, afirmou a produtora.
“Não temos informação de quantos ingressos serão distribuídos dessa forma”, acrescentou a Paris Filmes.
No Brasil, houve outros meios de distribuição de ingressos.
Na semana passada, por exemplo, um grupo de policiais militares de Santa Catarina foi a um shopping para assistir ao filme, como mostra um vídeo compartilhado em redes sociais.
A Associação Nacional dos Servidores da Polícia Federal também anunciou a distribuição gratuita de 5 mil ingressos para seus associados e familiares. A entidade disse em seu site que tomou a decisão “considerando a relevância e o impacto global do filme”.
A plataforma Brasil Paralelo anunciou que se uniu à Angel Studios e irá distribuir ingressos do filme para as pessoas que assinarem um plano da empresa.
“Quem já é assinante da Brasil Paralelo vai poder participar de sorteios para receber ingressos gratuitos”, anunciou.
“Diante dos cancelamentos feitos a produções que defendem bons valores, a Brasil Paralelo decidiu ir na contramão”, disse a Brasil Paralelo ao anunciar a distribuição de ingressos.
A BBC News Brasil procurou a Brasil Paralelo para comentar sobre a campanha para promover o filme, mas a produtora respondeu apenas com o material de divulgação de sua parceria com a Angel Studios.
O cientista político Vinícius do Valle avalia que a mobilização em torno do Som da Liberdade indica que existe uma demanda reprimida por produções culturais religiosas e alinhadas aos valores de grupos que se identificam como conservadores, como aqueles alinhados à direita radical americana.
“E isso exporta a visão de mundo dessa direita americana para outros grupos conservadores brasileiros, entre eles os conservadores bolsonaristas”, afirma Valle à BBC News Brasil.
As polêmicas do filme
Gravado em 2018, Som da Liberdade foi financiado por investidores independentes.
Ele tem sido associado por críticos e especialistas ao movimento americano QAnon — que propaga a tese de que políticos como Donald Trump estariam travando uma guerra secreta contra pedófilos adoradores de Satanás que supostamente ocupariam cargos no alto escalão do governo dos Estados Unidos, do mundo empresarial e da imprensa no país.
Essas referências ao QAnon não são totalmente infundadas, como mostrou uma reportagem da BBC.
A estrela do filme, Jim Caviezel, participou de uma conferência temática QAnon em 2021 e apareceu várias vezes no podcast de Steve Bannon, que recentemente disse que o QAnon é “uma coisa boa”.
Como mostrou outra reportagem recente da BBC, a ideia mostrada no filme de que há uma rede mundial de traficantes sexuais de crianças à espreita por toda parte é um dos pensamentos centrais do QAnon.
Especialista em QAnon, o escritor Mike Rothschild afirmou à BBC que os grupos antitráfico já apontaram que essa teoria da conspiração atrapalha seus esforços em combater esse tipo de crime.
“O filme gira em torno do pânico infundado de que grandes redes de tráfico estão esperando para capturar crianças americanas”, disse Rothschild.
“O tráfico é real, mas filmes como este obscurecem a verdadeira questão. O filme é comercializado para os crentes do QAnon da mesma forma que o QAnon funciona através do medo do tráfico e do apelo à emoção.”
A produtora do filme nega que esteja alimentando pensamentos conspiratórios.
“Qualquer pessoa que tenha visto este filme sabe que não tem nada a ver com teorias da conspiração”, disse o presidente do Angel Studios, Jordan Harmon. “É sobre um homem que fez algo corajoso.”
Já Tim Ballard, que inspirou o filme, respondeu à Fox News que aqueles que citam teorias da conspiração ao falar sobre o filme “não fazem qualquer ligação com a história real”.
“Conta uma história baseada na verdade… Acho que a esquerda, esses meios de comunicação, não querem ter uma discussão que este filme vai gerar”, acrescentou.
Fonte: BBC
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