- Author, Mike Henson
- Role, BBC Sport
Atenção: esta reportagem inclui uma descrição detalhada, com imagens, de um ataque a bomba.
Ovo, queijo, bacon e pimenta. O molho carbonara é simples – uma rica mistura de sabor e gordura para acompanhar o macarrão.
Para Sebastien Bellin, contudo, o ingrediente mais importante não está na receita. A refeição que salvou a sua vida era feita de muito mais do que isso.
No dia 21 de março de 2016, em meio a uma iluminação suave e altas risadas, Bellin sentou-se em um restaurante de Bruxelas, na Bélgica, e devorou três pratos de carbonara.
Doze horas depois, o belga estava deitado no piso do aeroporto da cidade. Há uma foto daquele momento.
À primeira vista, a expressão de Bellin chama a atenção. Ele parece calmo, quase sereno, enquanto ergue o pescoço para olhar melhor para o seu corpo. Mas, quando se observa o resto da imagem, fica claro que algo está muito errado.
Metade do rosto de Bellin está coberto de poeira. Suas calças estão em farrapos. Seus tornozelos estão voltados para cima e suas pernas, aparentemente, não se movem.
E, o mais perturbador de tudo, uma espessa poça de sangue, como sinal de mau agouro, cresce ao lado dele.
Duas malas, uma em cada lado da área de check-in, haviam acabado de explodir, atingindo uma multidão. Dezesseis pessoas morreram no aeroporto. Bellin poderia facilmente ter sido mais uma vítima fatal.
“Eu me lembro de cair e meus quadris explodirem”, ele conta. “Olhei para baixo e vi uma massa de ossos saltados. Você vê as pessoas mortas, você vê partes de corpos, você ouve os gritos.”
O sangue de Bellin saía do corpo e a dormência subia pelas pernas. Ele sabia que sua vida dependia das suas próximas ações. Felizmente, ele havia sido preparado para a situação.
Olhando agora, sete anos depois, Bellin observa como tudo o que aconteceu antes o preparou para aquela manhã.
Bellin nasceu em São Paulo. Sua mãe era fisioterapeuta – “muito hippie, muito liberal, simplesmente um espírito livre”. Seu pai era um executivo arrojado, mais conservador e concentrado nos negócios.
A carreira do pai levou Bellin e o resto da família para Indianápolis e a Filadélfia, nos Estados Unidos, e, depois, para a Dinamarca, Itália e Bélgica.
“Foi uma infância nômade”, relembra ele. “Mas, desde cedo, observei a vantagem de ter equilíbrio na sua vida, de sempre olhar os dois lados de cada questão. Eu sempre tentei extrair os benefícios dessas diversas e diferentes culturas.”
O caminho tomado por Bellin para ingressar em todas essas culturas era sempre o mesmo: o esporte.
Inicialmente, era futebol e tênis. Durante sua estada na Itália, o futebol o tomou por completo.
E, quando chegou à Bélgica, seus colegas de escola convenceram o menino alto, então com 13 anos de idade, a tentar o basquete. Este esporte o levou a uma faculdade de alto nível nos Estados Unidos e a uma carreira profissional pela Europa.
“O esporte é a maior sala de aula do mundo. Tudo o que você precisa saber na vida está ali”, afirma Bellin. “Ele mostra que existem muitos caminhos diferentes. Não existe um caminho correto, sempre há uma alternativa.”
Bellin não sabia o que fazer no piso do aeroporto. Mas, enquanto estava à beira da morte, ele percebeu que precisava começar a procurar essa alternativa. E o esporte, mais uma vez, mostrou o caminho.
Ele se lembrou das palavras de um antigo técnico – Greg Kampe, da Universidade de Oakland, nos Estados Unidos. Ele havia dirigido uma equipe da Primeira Divisão onde Bellin jogava na mesma época.
“Ele sempre costumava dizer ‘apenas ganhe o dia'”, relembra Bellin.
Kampe queria dizer que muitos jogadores ficam presos pelas conquistas do passado ou distraídos pelos fatores imponderáveis do futuro. A história e suas consequências ofuscavam sua concentração no presente, deixando-os vulneráveis.
Bellin não tinha tempo de pensar sobre o que ele teve na vida ou no que ele poderia perder com a morte.
“Quando me vi naquele momento, observei talvez de uma forma um pouco diferente dos demais: a questão é o agora, é o momento”, ele conta.
“Eu sabia que a próxima hora e meia seria a final do campeonato. É isso. Você precisa vencer o momento. Você precisa vencer o dia.”
Bellin então decidiu que precisava se mover.
Ele pediu a alguém que erguesse suas pernas sobre uma mala para reduzir o fluxo de sangue e usou um cachecol como torniquete improvisado. Mas a perda de sangue era rápida demais e o tempo era curto.
Havia dois problemas. Além de não conseguia se mover, ele também foi instruído a não sair do lugar.
Os policiais haviam formado um cordão de isolamento em torno dos mortos e feridos no terminal. Eles disseram a Bellin para permanecer imóvel enquanto protegiam o aeroporto e pediam ajuda.
Mas Bellin insistiu. A solução dos policiais não era a única. Não era a solução para ele. Pelo menos, não se ele quisesse sobreviver.
Ele disse à polícia que iria arriscar e que, se não o fizesse, sua morte ficaria na consciência deles.
Bellin convenceu um carregador que passava a erguê-lo sobre um carrinho de bagagem e empurrá-lo até a frente do aeroporto. Sua ideia era ficar no lugar por onde chegariam os médicos.
A tática funcionou. Seis bombeiros que corriam para o local o encontraram e levaram para um centro de triagem improvisado.
Bellin havia perdido 50% do seu sangue. Ele quase perdeu sua perna esquerda na cirurgia – mas ganhou o dia.
O ‘sonho impossível’
Bellin se transformou em celebridade durante sua estada no hospital.
A foto no aeroporto foi tirada pela jornalista da Geórgia Ketevan Kardava. Ela estava comprando uma passagem para Genebra, na Suíça, no mesmo dia.
A imagem viralizou. Bellin apareceu nas telas e bancas de jornais de todo o mundo. Ele deu entrevistas e encontrou Kardava novamente na enfermaria.
Quarenta e um dias depois do ataque, suas filhas pequenas viajaram da casa da família nos Estados Unidos para um encontro emotivo, que foi transmitida pela TV americana.
Mas, exceto por esses momentos, as horas que ele passou no hospital foram difíceis, dolorosas e solitárias.
Bellin ficou três meses internado. Inicialmente, ele ficou confinado à cama, com suas pernas mantidas no lugar por uma série de talas e pinos metálicos.
Estilhaços atingiram seus quadris. Ele precisou de enxertos de pele para cobrir os buracos das feridas.
Pouco a pouco, ele reaprendeu a andar, ajustando-se à nova realidade e às suas novas dificuldades. Ele não sentia nada abaixo do joelho na sua perna esquerda. O osso metatarso do seu pé foi retirado depois que começou a infeccionar.
Apesar das lesões, Bellin decidiu que o esporte continuaria fazendo parte da sua vida.
“Sou uma pessoa que ama o movimento e fiquei imóvel, com a notícia de que seria deficiente pelo resto da vida”, ele conta.
“Eu precisava de um sonho impossível para ficar concentrado e manter o otimismo. Eu queria o extremo oposto da situação em que me encontrava”, prossegue Bellin. “Para um velocista, aquela era uma das corridas de resistência mais difíceis do mundo.”
Bellin definiu como objetivo um triatlo Ironman – especificamente, a famosa prova de Kona, no Havaí, onde a história e a umidade têm grande peso. Este já teria sido um objetivo nada fácil, mesmo antes das lesões.
Bellin tem 2 metros e 6 centímetros de altura. No auge do basquete, ele pesava quase 114 kg. Seu treinamento anterior era apenas de saltos e corridas curtas de velocidade.
“Acho que havia dado, no máximo, seis voltas em torno da pista como atleta profissional. E certamente não havia andado de bicicleta, nem nadado”, ele conta.
O Ironman engloba muito mais: uma prova de natação de quase 4 km, mais 180 km de bicicleta e uma maratona completa.
Bellin preparou-se com calma e foi inteligente no seu treinamento. Ele se pôs a trabalhar na distância aos poucos e adaptou seu equipamento com cuidado. Ele mandou fazer um calçado especial para ajudar a evitar as bolhas que certamente surgiriam no seu pé esquerdo dormente e não seriam notadas.
Ele também enfrentou obstáculos. A pandemia de covid-19 atrasou a tentativa em Kona.
Quando os lockdowns diminuíram e o evento foi retomado, Bellin ainda estava aprendendo a confiar novamente nas suas pernas depois da cirurgia, para poder remover os apoios metálicos presos aos ossos.
Até que, em outubro de 2022 – seis anos e meio depois do ataque – Bellin provou que sua coragem era maior do que as adversidades. Ele cruzou a linha de chegada no Havaí em 14 horas, 39 minutos e 38 segundos.
“A questão nunca foi a minha velocidade; o objetivo era mostrar para mim mesmo que o meu corpo e minha mente são capazes, apesar das limitações”, afirma Bellin.
“Não quero aceitar a situação de vítima”, prossegue ele.
“Sou um sobrevivente e devo isso às pessoas que morreram naquele dia – e ao meu país, pois sou belga com orgulho – para poder me superar constantemente. Não vou sucumbir a isso. Tenho atrofia, não consigo mais mover os dedos dos pés, mas, se você deixar que a sua deficiência seja mais forte que você, sua condição lentamente irá se agravar.”
O único ponto que quase o afastou da linha de chegada foi o mesmo que garantiu sua presença na prova – sua alimentação.
Durante a prova, Bellin se adiantou no seu cronograma de natação e ciclismo, mas deixou de ajustar sua estratégia de alimentação. Ele tomou uma bebida eletrolítica mais rápido que o planejado.
E, quando estava no meio da maratona, ele começou a sofrer cãibras e dores de estômago. Era o seu corpo tentando processar uma sobrecarga de sódio e carboidratos.
Mas, em 22 de março de 2016, o apetite de Bellin havia sido sua salvação.
Se ele não tivesse comido aqueles três pratos de carbonara na noite anterior, seu nível de açúcar no sangue provavelmente estaria baixo demais para que ele ficasse consciente. Bellin teria ficado atrás do cordão policial, perdido mais sangue e, possivelmente, a vida.
Sorte? Destino? Feliz coincidência de açúcares e sais no seu corpo?
Bellin discorda.
“Aquela história do macarrão com carbonara? A história toda? Não foi nem um pingo de sorte”, afirma ele.
Naquela noite, Bellin não havia planejado sair para comer. Ele havia acabado de voltar para Bruxelas depois de um dia de reuniões de negócios em Paris, na França.
Estava exausto. Tinha uma passagem para o primeiro voo para Nova York, nos Estados Unidos, no dia seguinte. Só queria dormir.
Foi quando o telefone tocou.
“Era um grande amigo meu, Greg”, relembra. “A esposa dele é professora junto com a minha, na Escola Internacional de Bruxelas.”
“Ele disse: ‘Estamos indo comer alguma coisa naquele restaurante italiano, venha conosco!’ Eu respondi: ‘Estou cansado, estive em Paris o dia todo’ e desliguei”, ele conta.
“Greg me ligou de novo. E disse: ‘vamos lá, eu não vejo você há tempos, vamos sair’’ Eu respondi que iria pegar o primeiro voo para Nova York e desliguei pela segunda vez.”
Mas Greg era insistente. Ele telefonou mais uma vez para Bellin – que desligou de novo. Foi apenas na quarta ligação que o amigo finalmente cedeu.
“Greg finalmente disse: ‘Seb, você precisa comer. Eu amo você, cara, só quero ver você.’ Então, fui encontrar a ele e sua esposa Cara no restaurante e comi aquele primeiro prato de macarrão tão rápido que o garçom trouxe mais dois.”
“Se Greg não tivesse me ligado de novo, eu teria ido direto para a cama, levantado, tomado um copo d’água, talvez comido uma banana, e corrido para pegar aquele voo.”
“Todos acham que foi o macarrão com carbonara, mas eu nem estaria ali para comer, não fosse o amor de um amigo com quem desliguei o telefone três vezes”, ele conta. “A minha qualidade de vida foi decisiva. O amor e a paixão.”
Este foi o ingrediente secreto do carbonara de Bellin, que ele acrescenta a tudo o que pode.
“Foi o mesmo no esporte. Nunca me concentrei nas estatísticas”, afirma ele.
“Eu não tinha habilidade para saltar, não tinha bons números nem nada do tipo, mas tinha paixão e disciplina, atributos que não podem ser medidos.”
“Na vida, acontece o mesmo. Você consegue medir o amor, paixão, empatia, tolerância, mente aberta? Você não pode medir essas coisas. São qualidades, não quantidades.”
“A mentalidade concentrada na quantidade é sempre limitada e finita”, prossegue Bellin. “Mas, quando você se concentra naquilo que você ama, porque você é apaixonado por aquilo, porque quer aprender, surgem infinitas possibilidades.”
O perdão
Bellin chegou a lugares que poderiam estar além dos limites de outras pessoas. Em março, ele esteve na antiga sede da Otan, a poucos quilômetros do local das explosões em 2016.
Ali, 10 homens – um deles, à revelia – estão sendo julgados. Eles são acusados de ajudar a planejar os ataques no aeroporto de Bruxelas e, no mesmo dia, na estação de metrô Maelbeek, na capital belga, onde outras 16 pessoas morreram.
Mohamed Abrini é um deles. Ele levou uma bomba para o aeroporto de Bruxelas – mas, ao contrário dos outros dois conspiradores que o acompanhavam, não a detonou. Ele saiu do edifício, passando pelos mortos e feridos, e só foi preso duas semanas depois.
Bellin tomou a palavra e pediu ao acusado que olhasse nos seus olhos e ouvisse suas palavras.
“Hoje eu decidi perdoar você”, ele disse. “Estou esquecendo os horrores de que você é acusado. Decidi reservar mais espaço para o amor na minha vida.”
Refletindo sobre o seu dia no tribunal, Bellin comenta que “havia um pouco de desconhecido e nervosismo em mim”.
“Você não sabe o que aquilo irá causar em você. Você vai sentir raiva? Quais são as consequências? Mas, assim que saí do tribunal, senti um enorme alívio e uma onda de confiança.”
Bellin afirma que “é preciso fazer justiça” e que os responsáveis “precisam pagar”. Mas, agora, ele está concentrado em si próprio e na sua família.
“Tenho muito orgulho do caminho que percorremos”, ele conta. “Nós nos reconstruímos e nos adaptamos ao que a vida nos trouxe. Quero deixar para trás toda essa confusão.’
“Serei deficiente pelo resto da vida, mas, ao mesmo tempo, existem muitas coisas boas que surgiram nestes últimos sete anos. Sinto que sou um amigo melhor, um marido melhor, um pai melhor, uma pessoa melhor.”
“Sei que sou mais forte.”
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