- Josué Seixas
- De Maceió para a BBC News Brasil
Ricardo Lopes Dos Santos só teve tempo de levar a esposa e a filha de 3 anos para a casa de sua mãe antes que a água invadisse onde ele mora. Em Murici, na Zona da Mata de Alagoas, ele conta que tudo aconteceu muito rápido e só ficou o rastro de destruição na hora de contabilizar as consequências da chuva que atingiu praticamente todo o Estado no último fim de semana. Dos 102 municípios, 56 declararam emergência.
“Não é fácil trabalhar para construir uma casinha e ver a enchente levar tudo”, conta Ricardo, por telefone, à BBC News Brasil. Em vídeos compartilhados por ele, é possível ver que toda a estrutura da casa em que morava se desfez, com tijolos e telhas misturados no chão. Somente um sofá antigo restou, sem possibilidade de ser reaproveitado.
Chuvas intensas afetaram mais de 1 milhão de pessoas no Nordeste nos últimos seis meses, segundo a CNM (Confederação Nacional dos Municípios. A entidade aponta que, apesar dos desastres terem sido causados pelas chuvas, muitos dos problemas são resultado da falta de políticas públicas de habitação, saneamento básico e infraestrutura.
“Era madrugada de sexta-feira, e eu já não conseguia entrar no bar que meu pai montou para mim. Eu tenho 1,96m de altura, e a água quase me cobria. No mercado do meu irmão, a água estava na cintura. Ainda tentei tirar algumas coisas, salvar algo, mas vi que não daria e que, se insistisse, acabaria morrendo. Vinham várias correntezas de água, água muito forte. Vi meus móveis e minhas coisas indo embora, sem poder fazer nada. Se ficasse mais 10 a 15 minutos, não sobreviveria. E, para falar a verdade, não sei nem como recomeçar”, conta.
Restou a ele e a família ter como abrigo um imóvel do pai, um cassino. Eles apoiaram alguns poucos itens que sobraram do mercado do irmão para isolar as portas, impedindo a entrada de mais água, e lá ficaram. Ricardo diz que ‘trabalha com tudo’, especialmente no bar montado pelo pai, mas que agora não vê qualquer possibilidade de arrumar qualquer bico. A situação dele se repete em outros municípios. Alagoas tem, até o momento, 47.651 pessoas desalojadas e 8.830 pessoas desabrigadas.
Em Maceió, Paulo Tácio de Oliveira Santos Júnior, que é gari, viu a situação escalonando em menos de cinco horas. Segundo ele, a água começou a entrar em sua casa, no bairro do Bom Parto, às 6h da manhã. Às 11h, estava na altura do joelho e, duas horas depois, na barriga. Ele ainda conseguiu suspender algumas coisas, mas perdeu o fogão e o guarda-roupa. A solução foi se abrigar numa igreja com a esposa e a filha. A Lagoa Mundaú, por conta das fortes chuvas, transbordou e atingiu os bairros próximos.
“Pobre não tem móvel, tem quebra-galho. Se der outra chuva dessas, tenho certeza que acaba com tudo que sobrou. Em 2010 [quando Alagoas sofreu outra tragédia com as chuvas], todo mundo ficou em casa. Dessa vez, não dava. Saímos de casa no domingo e ficamos sem energia até terça-feira à tarde no abrigo. Era tudo na luz de vela, e levávamos os celulares para casas distantes para poder carregá-los. Um calor absurdo, desorganização, dificuldade para receber os mantimentos… Não desejo isso ao meu pior inimigo”, relatou Paulo.
A volta para casa foi um momento delicado para a família. Ele voltou sozinho quando a água baixou na última quarta-feira (6/7) e encontrou um cenário difícil, com lama na maioria dos seus bens materiais, roupas perdidas e uma grande destruição. Assim como ele, outras pessoas da região descartavam os itens nas ruas. “Perdi o que tinha, mas tenho minha vida”, frisou.
“Muita gente voltou para casa e encontrou esse cenário de destruição. Era a primeira vez que essas pessoas viam algo assim. Eu já sabia que seria algo terrível no domingo à noite, no nosso primeiro dia no abrigo. Começaram a chegar mensagens dos amigos, de apoio mesmo, e aí eu me toquei que aquilo estava realmente acontecendo. A ficha caiu e senti um desespero muito grande. Comecei a chorar muito, minha esposa que veio me confortar. Tudo que construímos foi com nosso esforço. Agora, só resta lutar para reconstruir.”
Ana Kezia de Oliveira Lima, que mora perto de Paulo, conta que ela e os pais acordaram no domingo, às 8h da manhã, e, ao saírem da cama, já sentiram a água nos pés. Começaram a erguer os móveis, mas a casa foi invadida cada vez mais e ficou impossível de continuarem. Na casa de parentes, encontraram abrigo. Segundo ela, só conseguiram recuperar os documentos e alguns poucos objetos pessoais. Por conta disso, resolveu criar uma força-tarefa com amigos de infância para arrumar doações.
“Não fomos assistidos pelo governo ou pela prefeitura. A comunidade teve de se unir para ajudar. Criei um grupo com alguns amigos de infância, também do bairro, para corrermos atrás de doações. Comida, roupas, qualquer coisa. Foi isso que nos ajudou a estar aqui hoje, porque todo o bairro sofreu as consequências dessa cheia da lagoa. A situação é tão caótica que passamos a fazer trocas de doações com pessoas de outros bairros, justamente para que boa parte da população fosse assistida”, revela.
Em Fernão Velho, bairro de Maceió, Isabel Cristina Felix dos Santos vivia em sua casa com cinco adultos e duas crianças, incluindo uma bebê de poucos meses de vida. Em vídeo, ela contou que a sua casa caiu e perderam móveis, roupas, colchões, cama, sofá e alimentos. Tudo estava embaixo da lama. Mais do que um relato do que estava vivendo, ela fez um apelo por ajuda.
“Não é fácil lutar tanto para conseguir as coisas e, em uma fração de segundo, se ver sem nada.”
Segundo o jornalista Júlio César Oliveira, também morador do bairro, a água subiu de uma forma muito rápida e em nível alto. Ele perdeu móveis, a geladeira e encontrou seu fogão boiando, sem um dos pés, quando conseguiu entrar em casa novamente. Nas ruas, a população fez um mutirão de limpeza quando a água baixou, para tentar reorganizar o bairro.
“No começo, o desesperador era ver a água invadindo a minha casa e a de outras pessoas e não poder fazer nada. Eu queria ajudar, mas não dava. Partiu o meu coração ver isso acontecendo. Em 27 anos, nunca passei por nada assim, nem mesmo em 2010. Nós pegamos barcos e canoas e fomos ao resgate das pessoas que estavam ilhadas, sem conseguir sair de casa. Foi a população quem se ajudou nesse momento de dificuldade. Só dava para fazer isso. Agora, a gente vai na rua e vê tudo estragado pelas águas. Começa a luta para conquistar tudo novamente”, diz.
O também jornalista Bruno Fernandes dos Santos, que vive no bairro do Vergel, teve pouco tempo para sair de casa. Ele viu a água da Lagoa Mundaú entrando pela rua e até tentou erguer os seus bens, mas não conseguiu. Pegou o seu gato de estimação, colocou documentos e alguns poucos itens pessoais em seu carro, e conseguiu sair. Pouco tempo depois, os moradores da região ficaram ilhados.
“Acho que eu saí no único momento que tinha. A água ainda não tinha entrado dentro de casa, mas logo depois conseguiu invadir. Só voltei alguns dias depois e encontrei tudo cheio de lama, um mau-cheiro forte, e algumas coisas perdidas. Ainda não consegui contabilizar as minhas perdas, para falar a verdade. Eu ainda nem consegui dormir. Desde que cheguei, coloquei um alarme para tocar de hora em hora. Levanto, olho se a água está chegando na rua e volto para cama. Uma hora depois, faço a mesma coisa. Essa é minha rotina desde domingo.”
Nas comunidades, como a Muvuca, visitada pela BBC News Brasil em dezembro do ano passado, as consequências foram grandes. Os barracos que ficam à beira da lagoa logo ficaram cheios, e a agente popular Jane Dayse Fidelis da Silva tentou levar o máximo de moradores da comunidade para a sua casa, que fica um pouco mais distante da lagoa. O esforço, porém, não foi suficiente para salvaguardar a todos.
“Quando estávamos recuperando uma geladeira, colocando numa carroça para levarmos para o começo da comunidade, uma das pessoas falou: ‘Jane, a água está entrando em sua casa’. Conseguimos suspender o meu sofá e colocamos a geladeira num barco. Perdi roupas, exames médicos, alguns documentos. Estou abrigada em uma escola e, na sala que me colocaram, temos 14 famílias. Não há colchão para todo mundo. Recebemos alguns cobertores, roupas. Como as doações ainda não são suficientes para nos mantermos, temos que dividir tudo entre nós mesmos.”
Em todo o Estado, houve uma corrente de solidariedade para ajudar as pessoas atingidas. Lucas Israel da Silva Santos viu a água chegar na porta de sua casa e resolveu sair de casa com a família. Pendurou algumas coisas e se abrigou na sua mãe, que mora em um primeiro andar. Ao se sentir “à salvo”, resolveu que era seu dever ajudar as pessoas que não tiveram a mesma oportunidade.
“Semanalmente, sempre tive como objetivo ajudar as pessoas em situação de rua. Então, caí em campo também com as chuvas. Vi a água batendo no peito das pessoas e elas levando geladeiras abertas para tentar preservar alguns poucos alimentos. Pedi ajuda pelas redes sociais e tornei a minha barbearia um ponto de coleta, além de me dispor a buscar qualquer doação oferecida. Distribuímos comida, roupas e itens para crianças. Eu percebi que eu só não era uma dessas pessoas porque faltou bem pouco para a água invadir a minha casa.”
“Recebi muita ajuda nos primeiros dias. Para você ter ideia, um amigo me ofereceu um berço, e eu ainda não tinha a quem doar, mas aceitei e disse que iria buscá-lo. Cerca de 20 minutos depois, uma outra amiga me disse que tinha perdido tudo dentro de casa, inclusive as roupas e o berço de sua filha bebê. E aí, felizmente, nós tivemos a oportunidade de entregar a ela esse berço, de dar um pouco de conforto à família. Ainda me sinto muito triste com tudo isso, mas estamos aqui para continuar ajudando”, complementa.
Na segunda-feira (4/7), o Governo de Alagoas anunciou um auxílio-chuvas no valor de R$ 2 mil para os 56 municípios atingidos. Além disso, foram enviadas cestas básicas, kits de higiene pessoal, água potável e colchões. A Prefeitura de Maceió também dará um auxílio, que varia entre R$ 500 e R$ 3 mil, para famílias que moram às margens da Lagoa Mundaú ou em encostas.
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