- Author, Edison Veiga
- Role, De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
É Dia dos Namorados no Brasil. Mas, ao contrário dos países em que a data faz referência a um santo ligado ao amor, o São Valentim de 14 de fevereiro, o Martirológio Romano reserva ao 12 de junho uma antítese da vida a dois: Santo Onofre.
Criado no Brasil em 1949 pelo publicitário João Doria (1919-2000), o Dia dos Namorados é meramente comercial e sua única ligação com a religiosidade popular está no fato de ser véspera do dia de Santo Antônio, o popularíssimo santo casamenteiro — em outras palavras, permite a analogia de que o namoro seria a véspera do casamento.
“O que nem Doria nem a Associação Comercial [de São Paulo, que encampou a data] sabiam é que dia 12 é dia de Santo Onofre. Então criou-se uma interessantíssima contradição”, comenta à BBC News Brasil o historiador Luiz Antônio Simas, autor de, entre outros, Santos de casa: fé, crenças e festas de cada dia.
Na semana passada, ele postou um vídeo em suas redes sociais contando a história — chamada pelo próprio de “uma maluquice deliciosa”.
“Ninguém lembrou que é dia de Santo Onofre e Santo Onofre, na tradição católica, é o grande eremita do deserto, o casto, o solitário, o homem que passou 60 anos no deserto de Tebaida, no Egito, sem ter contato com qualquer pessoa, em voto de castidade de silêncio”, afirmou Simas.
Para o historiador, o personagem pode ser definido como “o santo da castidade, o santo eremita, o antissocial do deserto”.
Em conversa com a reportagem, Simas acredita que essa dissonância tem sua lógica por algumas razões. Primeiro porque “o próprio São Valentim não é um santo que se popularizou no Brasil”. Isso já contribuiu para que a data de fevereiro não pegasse mesmo.
Também há o fato sazonal: no hemisfério norte, a data coincide com o finzinho do inverno e os preparativos para o início da primavera. “Coisa que no Brasil não faria o menor sentido. Tem essas condicionantes”, contextualiza.
Daí que quando o publicitário Doria inventou a comemoração, ele estava na verdade de olho nos livros-caixa.
“Junho é um mês de desaquecimento de vendas e isso foi uma maneira de pegar um certo vazio comercial e criar uma data”, diz Simas.
A conveniência foi colar em Santo Antônio. Mas não se atentou para o Onofre.
Quem foi?
De acordo com a tradição cristã Onofre teria sido um ermitão egípcio que viveu entre os anos 320 e 400 de nossa era.
“Ele passou de 60 a 70 anos em solidão no deserto, cobrindo-se com folhas ou com seus próprios cabelo e barba, no deserto da Tebaida, no Alto Egito, em fins do século 4”, diz à BBC News Brasil o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará.
“Não consta em registros hagiográficos, salvo no Martirológio”, acrescenta.
Autor do livro Os Santos de Cada Dia, o escritor, teólogo e pesquisador J. Alves ressalta à reportagem, via e-mail, que “o que sabemos sobre Santo Onofre advém da tradição que construiu várias narrativas sobre a vida do santo”.
“A mais importante nos chega mediante os relatos de santo abade Pafúncio, que viveu por um tempo com ele, aprendendo sobre a vida ascética. Assim, a figura de Santo Onofre está profundamente ligada à de São Pafúncio [também grafado como Pafnutio ou Pafnúcio], grande incentivador da vida monástica”, explica Alves.
“Tanto que quando participou do Concílio de Niceia [em 325 d.C.] São Pafúncio destacou a importância dos monges e dos eremitas na Igreja”, acrescenta o teólogo.
Segundo a narrativa mais reconhecida, foi em uma de suas andanças pelo deserto, já na segunda metade do século 4, que Pafúncio encontrou-se com Onofre.
Nos relatos de Pafúncio, Onofre foi descrito como uma figura curiosa, de longa barba e cabelos descendo à cintura, trajado com uma tanga de folhas. “Vivia em uma gruta”, pontua Alves.
“O velhinho o convidou a ficar com ele. Onofre contou-lhe sua vida, dizendo que era monge e vivia em uma comunidade monástica, depois se fez eremita e ali na gruta vivia sozinho havia mais de 60 anos.”
“Alimentava-se de tâmaras de uma palmeira”, narra o escritor.
“São Pafúncio conta que passaram a noite rezando e conversando sobre as coisas de Deus. Ao romper da aurora, São Pafúncio notou que o santo homem estava exangue e prestes a entregar seu espírito a Deus. Vendo o espanto de São Pafúncio, o santo eremita o consolou dizendo que, na sua infinita misericórdia, Deus o tinha enviado à sua gruta para sepultá-lo. Assim dizendo, Onofre abençoou-o e morreu.”
De acordo com os relatos de Pafúncio, assim que Onofre morreu “a gruta desabou e a palmeira secou”.
Fato ou lenda?
A exemplo de muitas figuras do cristianismo antigo, não há como provar que Onofre tenha realmente existido. “Não existem restos mortais conhecidos dele”, diz Lira.
No Martirológio Romano está registrado em 12 de junho, como morto no ano de 400: “No Egito, Santo Onofre, anacoreta, que passou 60 anos de vida religiosa na amplidão do deserto”.
“O relato diz, sucintamente, que Pafúncio encontrou um monge num cenobita da região da Tebaida, abandonou-o para viver uma vida de eremita e, durante 60 a 70 anos, Onofre viveu sozinho no deserto, usando apenas, para proteger as partes pudentes, folhas ou seus longos cabelo e barba”, complementa o pesquisador.
Ou seja: em uma das versões, Pafúncio teria encontrado Onofre no fim de seu período ermitão. Em outra, no início.
Lira ressalta que o maior indicativo de que o personagem existiu de fato é sua presença no Martirológio.
“Como se pode constatar, não há comprovação histórica de que ele existiu. Entretanto, a figura de São Pafúncio lhe empresta veracidade pelo fato de ter ele vivido entre os século 3 e 4 e de ter tido uma atuação histórica na vida da Igreja, como defensor da vida monástica”, argumenta Alves.
“Historicamente sabe-se que o final do século 4 foi marcado pela institucionalização do cristianismo por Constantino [imperador romano] e pelo florescimento do monaquismo.”
Solidão e santidade
A vida solitária, no entendimento desses ermitãos, era uma maneira de estar em contato direto com o divino. Por isso Onofre se tornou um exemplo: mais de 60 anos sem nenhum contato com ninguém.
“Os eremitas se separavam do mundo para uma interlocução direta com Deus”, contextualiza Lira.
“Isso não é privilégio de Onofre. Muitos outros santos, padres, religiosos e confessores da fé cristã se retiraram para uma reflexão mais profunda e um encontro mais próximo com Deus. Se formos ao Velho Testamento, por exemplo, vamos encontrar Moisés que se retirou a um monte e dali voltou com as tábuas da lei. O próprio filho de Deus [Jesus] se retirava para orar e, para o início de sua vida pública, esteve no deserto.”
“Acredito que ele [Onofre] buscava o estado de natureza e uma ligação mais próxima com Deus”, diz Lira.
Alves completa lembrando que, naquele período, “a busca da vida ascética levou muitos cristãos a encontrar no deserto o refúgio para uma vida de contemplação, penitência e purificação espiritual”.
“Santo Onofre se enquadra nesse contexto como inspirador da vida monástica”, afirma.
Como ele se tornou santo ainda no primeiro milênio, não teve nenhum processo de canonização nem sequer semelhante ao que ocorre hoje. Portanto, não há uma justificativa milagrosa para o fato de ele ter sido incluído no cânone católico. “A prova de sua santificação, para nós, é a sua inscrição no Martirológio”, frisa Lira.
“Não há uma bula ou decreto designando-o santo. Sua memória é facultativa, mas, recomendada. E não só a Igreja Católica Apostólica Romana o cultua mas as orientais também.”
“Ele foi um exemplo de vida santa, da busca incessante de Deus mediante a penitência e a oração”, enfatiza Alves.
“É uma figura emblemática da vida ascética e eremítica. Sua confiança inabalável na providência divina, que não desampara quem em Deus confia, e leva a superar situações extremas de perigos e necessidades, serviu e serve de inspiração espiritual a todos os cristãos.”
Segundo o teólogo, isso fez com que sua devoção tenha se espalhado “tanto na Igreja Ortodoxa como na Católica” e atravessado os séculos, “passando pelos Cruzados que carregavam suas relíquias como proteção contra os perigos” e tendo chegado ao Brasil “pelos colonizadores, enriquecendo a religiosidade popular através do sincretismo de matrizes religiosas afroameríndias”.
“Em termos gerais ele seria patrono dos tecelões”, diz Lira.
“Mas minha avó paterna conservava uma imagem dele para proteger da fome. Ela me dizia que na casa que tivesse uma imagem de Santo Onofre ninguém passaria fome. Não há fontes para esse patronato, mas, é com base na tradição e no que teria vivido o santo”, acrescenta.
Na devoção popular, ele também é invocado por aqueles que querem se livrar do alcoolismo ou pelos que são vítimas da convivência com familiares alcoólatras.
Fonte: BBC
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