- Marcos González Díaz
- De San Miguel de Allende, México, para a BBC News Mundo
Entre as pitorescas ruas de San Miguel de Allende, é preciso esquivar-se de centenas de turistas tirando selfies em frente às belas construções coloniais desse município na região central do México.
Suas alamedas de pedra, galerias de arte, restaurantes encantadores e residências coloridas fizeram com que esse lugar se tornasse o paraíso do Instagram – e também de milhares de estrangeiros, especialmente aposentados norte-americanos, que fizeram dele seu segundo município ou até sua residência principal, atraídos pelo clima agradável e pelo custo de vida muito menor que o do seu país de origem.
A fama de San Miguel atravessou fronteiras. Em 2021, ela foi considerada a melhor cidade do mundo pela revista Travel & Leisure e pelos leitores do site Condé Nast Traveler.
Mas é interessante observar que, a poucos quilômetros de distância e no mesmo Estado mexicano de Guanajuato, encontram-se alguns dos municípios considerados os mais violentos do México. Trata-se, de fato, da região do país com maior incidência de homicídios em 2021.
Como esse paraíso turístico consegue escapar da onda de violência que assola as regiões vizinhas?
Estrangeiros e segurança
Sentado em um restaurante na praça central de San Miguel de Allende, o norte-americano Malcolm Halliday prova uma sopa asteca, tipicamente mexicana.
Em frente a ele, um grupo de turistas fotografa a impressionante catedral de estilo neogótico que se tornou o símbolo da cidade. “Parece o castelo da Disney”, diz um menino boquiaberto.
Halliday chegou a San Miguel quase cinco anos atrás, atraído pela vida cultural da cidade.
“A cidade e o ambiente me encantam”, afirmou ele em bom espanhol à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. “Nos Estados Unidos, também temos violência em algumas cidades, mas a verdade é que aqui não temos muitos problemas.”
Louise Gilliam, também norte-americana e moradora de San Miguel, concorda. “Em todo o tempo em que estou aqui, nunca presenciei nenhum ato de violência. Morei em Chicago, em Nova York, em Los Angeles… e tomava o cuidado de não ir até as zonas perigosas. Você encontrará crime em qualquer lugar aonde for, se não andar com cuidado”, afirma ela em inglês.
Eles reconhecem que seus familiares e amigos ficaram preocupados quando souberam da sua intenção de estabelecer-se na região central do México.
“Muitos estrangeiros ficam surpresos. Eles acreditam que, depois do entardecer, aqui já não podem sair. Eles trazem esse paradigma e depois observam a realidade. É como dar-lhes a certeza de que sim, somos parte do México, mas, ao mesmo tempo, também não”, segundo Tania Castillo, secretária de turismo de San Miguel de Allende.
Mas o município – que foi um dos principais cenários da Guerra da Independência do México no século 19 e acolheu algumas das reuniões de conspiração na luta contra os espanhóis – nem sempre foi um atrativo turístico.
No início do século 20, por exemplo, o local esteve a ponto de tornar-se uma cidade-fantasma, devido aos vários conflitos bélicos que flagelaram a região. Somente nos anos 1930 e 1940, começaram a chegar artistas e promotores que fundaram escolas de arte e galerias que foram atraindo estudantes e imigrantes norte-americanos.
Segundo Castillo, o que torna hoje a cidade um dos melhores destinos do mundo é a sua arquitetura, grande quantidade de igrejas, sua rede gastronômica, artística, de vinhedos e hotéis de luxo, aliados ao estilo de vida que “combina o cosmopolita com a vida das pequenas cidades mexicanas”.
‘Ilha’ em Guanajuato
Em meio a uma patrulha realizada pelo município para conhecer a situação de segurança, o policial local Esteban López conta que suas ações, em sua maioria, são “incidentes menores”, para atender casos de pessoas que discutem ou bebem nas ruas.
“Imagine que somos uma ilha. Tudo o que é ruim acontece ao redor dela”, resume o policial.
De fato, a apenas 50 km de distância de San Miguel, encontram-se alguns dos municípios mais violentos do México, onde o governo desenvolveu uma estratégia para reduzir o número de homicídios – como é o caso de Celaya ou León – e cujos números de assassinatos são até 20 vezes mais altos que os de San Miguel.
Mas a principal razão que faz com que San Miguel de Allende fique de fora do processo de violência de Guanajuato é por não estar localizada no corredor de extração de petróleo que atravessa parte do Estado.
“O fluxo desses oleodutos é o que gera a violência pelo controle desse mercado ilegal. San Miguel está próxima, mas não passa por ali”, indica o especialista em segurança Victor Sánchez.
Essa linha em diagonal, também conhecida como “Triângulo das Bermudas”, é formada por cerca de 15 municípios por onde passam os oleodutos da Petróleos Mexicanos (Pemex), que transportam o combustível ao longo do país.
Embora, no passado, a região fosse dominada principalmente pelo cartel de Santa Rosa de Lima, a prisão do seu líder, o “Marro”, em 2020, fez com que a organização perdesse força na maioria dos municípios, que agora são disputados por células do cartel de Sinaloa, Jalisco Nova Geração (CJNG) e Nueva Plaza.
E, além da sua localização geográfica, existem algumas particularidades da infraestrutura de San Miguel que podem torná-la menos atraente para os grupos criminosos.
“Suas características arquitetônicas impedem que esta seja uma cidade com determinados planos de desenvolvimento. Quando um município não tem vias expressas, não tem uma central de abastecimento e não é um centro de coleta de materiais que precise receber caminhões, ele não tem a infraestrutura necessária para a distribuição de produtos proibidos”, explica o prefeito de San Miguel de Allende, Mauricio Trejo.
“Somos uma bolha dentro do Estado”, afirma ele, com orgulho.
Sem disputas entre cartéis
Para Sánchez, outro fator importante para explicar a falta de violência é o fato de que “não existe uma disputa declarada entre várias organizações criminosas, como vemos em outros municípios. A região do centro até o norte [de Guanajuato], onde está San Miguel, é uma zona totalmente controlada pelo CJNG.”
E, segundo o especialista, isso traz duas hipóteses. A primeira é que, como ocorre em tantos outros corredores turísticos, os grupos criminosos vendem produtos ilegais, como drogas, em pequena escala, aproveitando a presença de turistas e moradores estrangeiros.
“Para a organização criminosa, é interessante não afugentar esses compradores com alto poder aquisitivo. Se começar a haver violência na região, os turistas deixarão de vir”, salienta ele.
A segunda hipótese, relacionada com a primeira, é que “como existe um fluxo de dinheiro considerável, negócios como hotéis e restaurantes que operam com dinheiro vivo podem servir de pontos de lavagem de dinheiro para a organização que controlar o município – e ela, por fim, também quer manter a paz para não chamar a atenção das autoridades”.
Mas o prefeito nega a presença do CJNG e de qualquer outra organização em San Miguel de Allende.
“Não detectamos a ingerência de nenhum grupo criminoso. Não fomos pressionados nem ameaçados por nenhum grupo”, afirma ele, taxativo.
“A questão do varejo de drogas que pode ocorrer no município é combatida pela Guarda Municipal e por programas de denúncia e prevenção do uso de drogas”, reconhece Trejo. “Mas o perfil dos turistas que temos por aqui é diferente, porque eles vêm procurando por cultura.”
Alguns desses turistas, como Aarón González, da Cidade do México, acreditam que tudo se deve a “acordos entre as autoridades e os grupos, porque é claro que [os grupos] não podem ter todo o controle, nem o governo pode controlá-los. Ou talvez possa, mas não o faz porque há interesses e eles preferem manter seus acordos”, opina ele, sentado em um banco do parque central com sua esposa, ouvindo a música dos mariachis enquanto a noite cai.
Diversos moradores que preferiram manter-se anônimos mencionaram para a BBC News Mundo a existência de práticas de extorsão, pressões ou cobrança de “taxas de segurança” junto aos comerciantes da cidade.
“Uma amiga minha tinha um pequeno comércio, até que ela teve a ideia de vender [drogas] ali. Agora, já não tem o negócio, nem está lá. Disseram que ou ela pagaria pelo local, ou [ficaria sem] nada. Eles dão o dinheiro para você entrar no negócio, mas depois você precisa pagar de volta. Ela não pagou e assim fizeram”, conta Paula Colunga, que vende raspadinha em frente à catedral.
Mas o prefeito garante não ter recebido informação de nenhum comerciante que tenha sofrido extorsão recentemente. “Pode ser que ainda se sintam ofendidos pela época em que eram cobrados, mas, quando entramos [no governo municipal], percebemos que a maioria não se devia a grupos criminosos, mas sim a autoridades corruptas, que já foram demitidas ou estão sob investigação”, afirmou ele.
Estratégia de segurança
Para o prefeito Trejo, sua estratégia de segurança municipal é a responsável por San Miguel de Allende ter escapado da violência que domina boa parte do Estado de Guanajuato.
Entre outros fatores, o prefeito destaca o centro avançado de vigilância C4, além da capacitação e da remuneração da polícia local, que ele afirma ser “a mais bem paga do Estado e uma das mais bem remuneradas de todo o país”.
“Também mantemos ajuda com os municípios vizinhos, para evitar o ‘efeito barata’ – para que, toda vez que houver alguma operação em uma cidade próxima, os delinquentes não venham refugiar-se em San Miguel”, explica o prefeito.
Mas, para o analista de segurança Victor Sánchez, “seria difícil atribuir o caso de sucesso de San Miguel à ação das autoridades, pois, se dependesse disso, teriam sido procuradas formas de reproduzi-la nas cidades vizinhas, onde a segurança é um fracasso considerável”.
Sánchez insiste que os verdadeiros motivos residem em questões alheias às funções do município, como a inexistência de grupos criminais rivais, sua própria localização geográfica e a alta concentração de estrangeiros e turistas, que faz com que tudo “funcione melhor se estiver pacificado”.
Mas a presença de estrangeiros de mais de 60 nacionalidades (totalizando cerca de 10% dos seus 180 mil habitantes) também teve outro efeito em San Miguel de Allende, como ocorre em tantas outras cidades com realidades similares: o aumento do custo dos aluguéis e de muitos serviços, como bares e restaurantes.
“Para muitas pessoas, não é um problema econômico, mas talvez seja um desafio para aqueles que viviam aqui originalmente, já que o preço de tudo está subindo. Vamos ver… eu não posso resolver todos os problemas, estou aproveitando a vida aqui”, afirma, dando de ombros, o norte-americano Malcolm Halliday.
Por outro lado, como ocorre habitualmente, essa chegada de pessoas com maior poder aquisitivo também trouxe vantagens. Paula, a vendedora de raspadinha, reconhece que os mexicanos que trabalham para estrangeiros no município costumam receber melhores salários. “É ruim dizer isso, mas é assim. Já entre os mexicanos, quanto menos pagarmos as pessoas, melhor.”
Outra San Miguel
Os milhares de estrangeiros que vivem em San Miguel de Allende também deixam outra pegada no município. Eles fundaram dezenas de ONGs que cuidam da educação até a saúde dental dos moradores mais carentes.
Isso porque, por trás da bela arquitetura e dos hotéis de luxo frequentados pelos turistas, San Miguel esconde uma realidade muito diferente a poucos minutos do centro histórico, nos bairros da zona rural.
Segundo dados do Ministério do Bem-Estar do México, mais de 44% da população de San Miguel vivem em condições de “pobreza moderada”, enquanto outros 4% encontram-se em pobreza extrema. Quase duas a cada dez moradias não têm acesso à rede de esgoto.
Jazmín Yanet Ramírez mostra com orgulho sua casa, onde passou a morar no início deste ano, na comunidade de San Miguel Viejo, uma região de ruas sem asfalto que não é visitada pelos turistas.
“As pessoas que chegam ao centro de San Miguel não percebem que, nas áreas próximas, estamos nós que, na verdade, há muito tempo não vamos àquela região porque há muitos turistas… É uma pena, porque nem todos podem desfrutar do centro turístico igualmente”, lamenta ela.
Ramírez conta que ela e seu marido agora não precisam dormir no mesmo quarto com seus três filhos, como faziam antes. Eles já não se molham dentro de casa quando chove, nem temem que o telhado voe com o vento. E, sobre a falta de esgoto, sua nova casa conta com uma pequena fossa séptica e um sistema de recolhimento de água da chuva.
Sua casa foi construída pela ONG Casita Linda, financiada por norte-americanos residentes em San Miguel e que ajudou 130 famílias da cidade nos últimos 20 anos.
“É um clichê dizer que você quer devolver alguma coisa para o município que o acolhe, mas é uma forma muito honesta de dizê-lo. É uma forma de ajudar as pessoas”, afirma Louise Gilliam, que é presidente da organização e mora há quase 20 anos em San Miguel.
“A vida aqui é boa. “O clima é perfeito, é menos caro morar aqui… Eu digo aos meus filhos que estão no Texas que vendam suas casas e venham para cá”, responde Gilliam, quando questionada sobre a influência da insegurança na sua vida.
“Nunca mais voltarei para os Estados Unidos”, conclui ela.
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