- Author, Mariana Schreiber
- Role, Da BBC News Brasil em Brasília
Avessa aos holofotes e à articulação política comuns a alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Rosa Weber deixou uma marca nada discreta em sua passagem pela Corte, que se encerra no dia 2 de outubro, quando ela completa 75 anos e é obrigada a se aposentar.
Para juristas ouvidos pela BBC News Brasil, sua trajetória foi marcada por decisões importantes e controversas – como o voto de minerva que autorizou a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ou a recente manifestação pela liberação do aborto – e também por mudar a dinâmica da Corte, aprovando durante sua presidência uma alteração no regimento interno que limitou decisões individuais dos ministros, como os intermináveis pedidos de vista que paralisavam julgamentos indefinidamente.
Já outra mudança capaz de impactar a estrutura do Poder Judiciário foi aprovada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sua última sessão como presidente do órgão: uma alteração na dinâmica de promoção de juízes para a segunda instância vai aumentar a presença de mulheres nos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
“Confesso que sinto esse resultado como uma verdadeira vitória”, disse Weber após a decisão.
No entanto, mais do que suas decisões em processos ou sua gestão como presidente do STF e do CNJ, é sua postura como ministra que é mais lembrada como seu legado para a Corte.
Em contraste com diversos colegas, Weber passou seus quase doze anos na Corte sem conceder entrevistas, sem participar de eventos patrocinados por empresas, sem comentar julgamentos fora dos autos e sem se reunir com políticos.
Ela também atuou com respeito ao colegiado, ou seja, seguindo as jurisprudências (decisões anteriores) do STF, ao invés de buscar impor sua vontade individual nas decisões.
Para juristas ouvidos pela reportagem, a ministra agiu como uma espécie de modelo ideal de integrante da Suprema Corte – o que não impede algumas críticas, como no caso do voto contra o habeas corpus de Lula, caso que divide os entrevistados.
“Em seu comportamento pessoal, funcional e social, a Ministra Rosa Weber transmitiu ao STF aquela aura de grandeza, de dignidade, de gravitas e de respeitabilidade. Esse, pois, o seu grande legado, que assim será sempre lembrado, ad perpetuam, nos fatos da história judiciária do Supremo Tribunal Federal”, disse em mensagem à BBC News Brasil o ministro aposentado Celso de Mello, que dividiu o plenário do Supremo com Weber por quase uma década.
Ele destacou também a importância de sua liderança na reação da Corte aos ataques de 8 de janeiro, quando as sedes dos Três Poderes foram vandalizadas por bolsonaristas radicais insatisfeitos com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente.
“O Brasil teve, então, na pessoa da ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal, um decisivo fator de equilíbrio, de confiança, de firmeza e de segurança no respeito incondicional à nossa Lei Fundamental (a Constituição) e na preservação da estabilidade do regime democrático, das instituições da República e das liberdades essenciais do Povo de nosso País”, escreveu Mello.
Para o professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal Fluminense (UFF) João Pedro Pádua, a descrição e o respeito à colegialidade de Weber são posturas que fortalecem a institucionalidade do STF e, consequentemente, a democracia.
“A literatura da ciência política vem apontando isso. O argumento central do livro Como as democracias morrem (Daniel Ziblatt e Steven Levitsky) é que as democracias modernas claudicam não por posturas ideológicas de um lado ou de outro, mas porque as suas instituições se enfraquecem e aí grupos autoritários conseguem tomar o poder ou dominar o funcionamento da República”, afirma.
“No caso da ministra Rosa Weber, isso (sua postura) é especialmente importante porque contrasta com a pouca relevância dada à instituição do Supremo Tribunal Federal e ao papel do Supremo junto a outras instituições que os colegas da Rosa Weber normalmente demonstram”, disse ainda.
Autor do livro O Supremo, entre o direito e a política, o professor do Insper Diergo Werneck também exalta o perfil discreto na ministra.
Na sua avaliação, o fato de Weber não se manifestar fora dos autos e se manter distante da política fortalece seus votos, pois não deixa margem para suspeitas sobre as motivações de suas decisões.
Isso, acredita, deu mais autoridade à ministra para tomar, eventualmente, decisões de forte intervenção em outros Poderes, como no caso em que suspendeu liminarmente o funcionamento do chamado Orçamento Secreto, em que o Poder Executivo liberava recursos para emendas parlamentares com pouca transparência. Depois, a decisão foi confirmada pela maioria da Corte.
Em contraste à postura austera de Weber, Werneck cita ministros que falam com frequência em público, como Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Luiz Fux, Alexandre de Moares e Luís Roberto Barroso.
“O comportamento da ministra Rosa Weber é muito importante porque mostra que faz sentido cobrar que seja diferente”, nota o professor.
“É possível e desejável que ministros aceitem que vão ter que perder certas liberdades para integrar o Supremo. Não vão poder só fazer mais coisas do que fariam se não fossem ministro do Supremo. Vão poder fazer menos”, reforça.
Nesse sentido, caso se confirme a expectativa de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolha um jurista homem de sua confiança para a vaga de Weber, pode haver uma “dupla perda” para o Supremo, avalia Werneck, seja pela redução da presença de mulheres na Corte (Cármen Lúcia será a única ministra), seja pela entrada de um integrante com perfil mais político.
Hoje, os nomes mais cotados para a vaga são os ministros Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).
Magistrada de carreira na Justiça do Trabalho, Weber chegou ao STF por indicação de Dilma Rousseff em 2011. Ela foi apenas a terceira ministra mulher em 132 anos de história do STF, depois de Ellen Gracie, indicada por Fernando Henrique Cardoso, e Cármen Lúcia, indicada por Lula.
Temas sensíveis
Devido a sua aposentadoria, Weber ficou apenas um ano na presidência do STF, metade do mandato normal. Nesse curto período, deu andamento a julgamentos de temas sensíveis, com o que rejeitou o marco temporal para territórios indígenas.
Também pautou a retomada do processo que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo, julgamento que acabou suspenso por um novo pedido de vista (mais tempo para analisar o caso), após reunir cinco votos favoráveis a liberação no caso específico da maconha (inclusive o de Weber).
“Rosa Weber não só pautou temas controversos, como ela geriu para que esses casos chegassem até o fim, custasse o que custasse”, nota Eloísa Machado, professora de direito constitucional da FGV, citando em especial o caso do Marco Temporal, que consumiu onze sessões de julgamento.
Já ao final do seu mandato, a ministra iniciou o julgamento de uma ação pela descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação, dando um voto histórico pela liberação do procedimento.
Para os defensores da descriminalização se trata de um importante posicionamento pelo direito das mulheres, enquanto o lado favorável à proibição vê o voto como uma afronta à maioria conservadora do país e um desrespeito à vida do feto.
Weber foi sorteada para relatar a ação em 2017 e já em 2018 realizou audiências públicas no Supremo para ouvir os argumentos dos dois lados. A demora em levar a ação a julgamento é atribuída ao clima político desfavorável durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Depois, a presidência da ministra acabou atropelada pelo 8 de janeiro, o que atrasou novamente o julgamento, acredita a antropóloga Débora Diniz, professora que pesquisa o tema do aborto e esteve à frente da ação que em 2012 levou a liberação da interrupção da gestação de fetos anencéfalos (sem cérebro) pelo Supremo.
O julgamento acabou sendo iniciado no plenário virtual – em que os ministros apenas depositam seu voto escrito eletronicamente – e foi interrompido por um destaque (pedido para levar o caso ao plenário físico) de Barroso. Como próximo presidente do STF, é ele quem vai decidir quando o tema volta a ser analisado.
Quando isso ocorrer, é dado como certo que um novo pedido de vista interromperá o julgamento, possivelmente de um dos ministros considerados mais conservadores – André Mendonça e Nunes Marques, ambos nomeados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
Diniz espera que outra medida capitaneada por Weber, a mudança no regimento interno do STF aprovada em dezembro de 2022 que limitou os pedidos de vista a um prazo de 90 dias, contribua para que a ação sobre o aborto não fique eternamente em suspenso.
Na sua leitura, a presidente do Supremo promoveu essa alteração tendo em vista os temas sensíveis que ela queria julgar durante sua presidência.
“Essa mudança que a ministra Rosa Weber faz, de limitar os pedidos de vista, é revolucionária. E ela não faz isso sem ter grandes questões em mente, que foram essas que ela enfrenta (pautando ações sensíveis para julgamento)”, acredita.
O professor Diego Werneck também chama a mudança de “revolucionária”. Ele ressalta que a ideia de limitar os pedidos de vista e a duração de medidas individuais dos ministros (como algumas liminares) já vinha sendo discutida internamente por outros ministros.
Mas, na sua avaliação, a ministra tinha “autoridade moral” para avançar o tema em sua gestão, justamente por não abusar dos mecanismos que ficaram limitados com a decisão.
O polêmico voto que permitiu a prisão de Lula
No auge da operação Lava Jato, o STF viveu uma intensa disputa interna sobre a possibilidade de um réu condenado em segunda instância começar a cumprir a pena antes do trânsito em julgado do processo – ou seja, quando todos os recursos se esgotam. Recuperar esse contexto é importante para analisar o polêmico voto de Weber que contribuiu para a prisão de Lula.
Desde 1988, quando a Constituição foi promulgada, até 2009, vinha prevalecendo o entendimento de que era possível cumprir a pena antecipadamente, mas não havia uma orientação clara do STF sobre o assunto.
Por causa disso, em 2009 o plenário do STF analisou a questão a partir de um habeas corpus (pedido de liberdade) de um réu condenado por homicídio – na ocasião, por 7 a 4, o Supremo decidiu contra a prisão antes do esgotamento dos recursos, já que a Constituição prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em 2016, porém, quando o país vivia um forte clamor contra a impunidade em meio à operação Lava Jato, a Corte mudou sua posição, ao julgar um caso específico e, depois, ao analisar provisoriamente duas ações amplas sobre esse tema.
Na ocasião, uma maioria apertada (6 a 5) entendeu que é possível iniciar o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, por ser a etapa em que se encerram a análise de provas (as cortes superiores julgam apenas questões processuais, ou seja, se a lei foi aplicada corretamente no processo).
O resultado foi modificado porque a composição da corte se alterou, devido à aposentadoria de alguns ministros, e também porque Gilmar Mendes mudou seu voto. Após ter ficado contra a prisão antecipada em 2009, ele votou em 2016 a favor.
Já em 2017, porém, Mendes indicou que mudou seu posicionamento novamente, o que gerou fortes críticas de que estaria agindo politicamente após a Lava Jato ampliar seu alcance a atingir políticos do PSDB e do MDB, próximos ao ministro.
Mendes negou essa motivação e se justificou dizendo que havia votado para autorizar a prisão antecipada, mas não para que se tornasse algo automático após a condenação em segunda instância, como estava ocorrendo.
Após ele sinalizar sua mudança de posição, ministros contrários a prisão antecipada passaram a pressionar a então presidente da Corte, Cármen Lúcia, a pautar novamente as duas ações amplas que discutiam essa questão, e que haviam sido julgadas apenas provisoriamente em 2016.
Favorável à prisão após segunda instância e crítica a uma revisão tão rápida de uma decisão do colegiado, ela resistiu à pressão. Em vez de pautar as ações mais amplas, levou a julgamento em 2018 um pedido de habeas corpus de Lula, em que a defesa pedia que ele não fosse preso antes do trânsito em julgado.
O julgamento foi envolto em forte tensão, dada à grande projeção política de Lula – ele havia sido condenado meses antes em segunda instância no caso do Tríplex do Guarujá, em rápido julgamento do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que confirmou uma decisão do então juiz Sergio Moro, hoje senador.
Como esperado, Gilmar mudou de lado, votando contra a possibilidade de Lula ser preso. O petista acabou indo pra cadeia, porém, porque Weber se manifestou contra seu pedido de habeas corpus.
Para Diego Werneck, o voto foi coerente com a postura da ministra de respeitar o colegiado: como havia uma decisão ampla do STF autorizando a prisão antecipada para todos os réus, não faria sentido, na lógica de Weber, considerar ilegal que Lula fosse preso.
“Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação ao meu voto, porque eu tenho critérios e procuro manter a coerência das minhas decisões”, disse Weber no julgamento, após ser interrompida em seu voto, com críticas dos ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski (já aposentados).
A professora Eloísa Machado, por sua vez, considera “um erro de avaliação” o voto da ministra, já que a jurisprudência da corte que autorizava a prisão antecipada era “instável” e seria revista em seguida.
De fato, em 2019, o novo presidente do STF, Dias Toffoli, levou a julgamento novamente as ações amplas que discutiam a constitucionalidade da prisão após segunda instância. Nessa caso, Weber voltou a votar contra essa possibilidade, firmando maioria no Supremo contra o cumprimento antecipado da pena.
Lula foi solto após essa decisão, e depois teve suas condenações anuladas pelo Supremo, devido a ilegalidades na condução dos processos da Lava Jato.
“Eu acho que esse talvez seja o momento mais é polêmico e que marca a trajetória da ministra Rosa Weber. Talvez ela devesse ter se mantido fiel as suas convicções ao invés de se atrelar a uma maioria do colegiado que já se mostrava instável”, nota Machado.
“De fato, é um mérito os ministros do Supremo serem deferentes às posições do colegiado. Isso não é algo ruim. Porém, essa decisão da possibilidade de execução da pena após condenações em segunda instância não se mostrava uma posição consolidada na Corte. Portanto, se ela se mantivesse atrelada a suas convicções contrária a antecipação da execução da pena, ela não estaria minando a colegialidade do tribunal”, acrescenta.
Fonte: BBC
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