- Author, Marina Rossi
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
Depois de 25 anos de carreira como CEO de uma grande empresa nos Estados Unidos, Tales, que não quis ter a sua identidade revelada, diz que começou a sentir falta de um propósito.
Foi isso que o motivou a fazer um curso sobre “identidade e propósito” com Pablo Marçal no fim do ano passado. Ele e a esposa desembolsaram R$ 15 mil cada um e passaram dois dias assistindo às aulas.
No âmbito profissional, ele diz, nada mudou. “Continuo sendo CEO. Mas, na parte espiritual, o curso me ajudou a ganhar autoconhecimento, me encontrar e a sair da zona de conforto.”
Mas, no mundo digital, o empresário — que agora rejeita o termo coach que até então utilizava e define-se como mentor — já é uma estrela há muito tempo.
Alavancado durante a pandemia, quando as vendas online explodiram, o universo do marketing digital é amplo. Reúne CEOs em busca de um propósito, mas também todo mundo que aspira ganhar mais dinheiro e seguidores na internet.
O grupo inclui médicos e dentistas, pequenos comerciantes que buscam impulsionar sua presença online ou simplesmente aspirantes a empreendedores que querem ganhar dinheiro com negócios digitais.
Para tal, este mercado oferece um leque igualmente grande de possibilidades. Desde mentorias de autoconhecimento, a curso de vendas de qualquer tipo de produto, incluindo cursos sobre como vender cursos.
Em comum, está o discurso aspiracional e dos ganhos financeiros — de preferência, rápidos.
É um mundo ainda pouco explorado do ponto de vista de números e informações concretas. O Ministério do Trabalho, por exemplo, não tem ideia de quantas pessoas estão neste setor.
E as principais plataformas — a Meta, responsável pelo Instagram, Facebook e WhatsApp, e o TikTok — não abrem seus números sobre o tamanho da movimentação financeira ou a quantidade de contas comerciais que possuem.
Mas a BBC News Brasil teve acesso a um relatório inédito que será lançado no fim do ano sobre este universo.
Pesquisadores da University College Dublin (UCD) mergulharam neste mundo por dois anos e acompanharam os 500 maiores influenciadores de marketing digital do Brasil.
Analisaram também o perfil de 1 milhão de pessoas que fizeram algum dos cursos destes influenciadores, ou manifestaram interesse em fazer, chamadas aqui de aspirantes a empreendedores.
O trabalho, que envolveu coleta de dados e entrevistas mais aprofundadas, foi liderado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora titular da UCD e diretora do Digital Economy and Extreme Politics Lab (Laboratório de Economia Digital e Extremos da Política), e teve financiamento do Conselho Europeu de Pesquisa (ERC).
Aversão à CLT, valores tradicionais e ostentação
Com base em dados globais levantados no estudo, os pesquisadores estimam que 13 milhões de pessoas estão empreendendo no Instagram hoje no Brasil, por meio das contas comerciais.
No entanto, eles também levantaram que, dos empreendedores na rede, somente 54% usam uma conta comercial na plataforma, com funcionalidades específicas para quem quer fazer negócios.
“Muitas pessoas nem sabem fazer uma conta comercial”, diz Rosana Pinheiro-Machado.
“Por isso, estimamos que a quantidade de gente usando o Instagram para vender algum produto no Brasil hoje é muito maior, girando em torno de 25 milhões.”
Seguindo a projeção da pesquisa, cerca de um quarto da população economicamente ativa do país já busca fazer dinheiro no Instagram, em uma transformação do enorme setor informal e autônomo brasileiro.
“A lógica da pessoa querer ser chefe de si mesma, em um país onde muitos empregos estão marcados pela lógica da humilhação, é muito libertadora”, analisa Pinheiro-Machado, citando condições precárias de trabalho em parte do mercado brasileiro como fator de estímulo à entrada neste setor.
As descobertas feitas pelos pesquisadores revelam a maneira como a maior parte dos influenciadores opera e seus padrões do discurso, que incluem a aversão ao emprego formal regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) — vista como limitadora —, e críticas à formação superior.
Também foram apontadas como características comuns o reforço de valores ligados à religião cristã e à família tradicional (no duo “homem valoroso, mulher virtuosa”), e a ostentação de valores materiais (exibir mansões, carros e relógios de luxo e até mesmo resultado de procedimentos estéticos) “em um ambiente propício à desinformação”.
Em geral, os influenciadores analisados se alinham a valores conservadores, quer demonstrem ou não seus apoios políticos de maneira explícita.
“Há uma notável ausência de vozes divergentes, progressistas ou à esquerda nesta esfera”, diz o relatório da UCD.
No universo de 1 milhão de contas compiladas, a pesquisa monitorou mais de perto 32 mil perfis que manifestaram interesse ou efetivamente fizeram algum curso de marketing digital, independentemente de qual ou com quem, para aumentar sua presença nas plataformas.
Os resultados e as análises desses números mostram a fragilidade dessa aposta, diz o relatório.
Somente 1,2% dos perfis monitorados ganhou seguidores de fato, saindo da classificação de “aspirantes” para o posto de influenciadores, com mais de 5 mil seguidores.
“São pessoas vulneráveis que caem no discurso”, afirma Pinheiro-Machado.
“Uma grande parte das entrevistas aponta para uma expectativa grande em torno de ganhar muito dinheiro, para viver bem. Mas também tem um número significativo de pessoas dizendo que vai fazer milhões.”
Como funciona o universo de onde vem Pablo Marçal
O foco da parte qualitativa da pesquisa, feita com base em entrevistas e estudos de casos, está em grupos de baixa renda que trabalham como autônomos, com contratos sem garantia de direitos trabalhistas ou estão desempregados.
“Esses grupos têm menos opções profissionais e estão privados de várias capacidades, o que os torna mais vulneráveis aos impactos do mundo do marketing digital não regulamentado”, segue a antropológa.
Se aparentemente este aparenta ser um mercado livre e horizontal, na prática, afirma o relatório, é um rígido esquema ditado por uma infraestrutura baseada em algorítmos que empurra os participantes a querer crescer.
Para isso, é preciso investir tanto em cursos como em tráfego pago, ou seja, dar dinheiro para as plataformas para ter seu conteúdo exibido para mais usuários.
“É deste universo que vem o Pablo Marçal”, afirma Pinheiro Machado. “Em muitos sentidos, ele é a personificação do mundo do marketing digital e suas visões ideológicas.”
Com uma presença digital na casa dos milhões há anos, Marçal foi citado como modelo a ser seguido por alguns dos entrevistados por Pinheiro-Machado em cidades tão distantes como Manaus e Porto Alegre.
Sócio ou dono de um emaranhado de empresas, de diferentes segmentos, Marçal declarou ter um patrimônio de R$ 169 milhões ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
A PLX Digital, uma de suas empresas, é focada em lançamentos, o que, no jargão deste mercado, é o nome dado à venda de um curso ou produto online.
Fundada em 2019 por Marçal e seu sócio, Marcos Paulo de Oliveira, a PLX promete “romper limites” e “transformar vidas”, de acordo com as mensagens descritas em seu site — o candidato a prefeito já disse ter vendido cursos e mentorias a 1,5 milhão de pessoas.
A BBC News Brasil tentou falar com Marcos Paulo, mas ele não respondeu à mensagem enviada, e também com Marçal, por meio de sua assessoria de imprensa, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.
Neste mercado, os valores dos cursos e mentorias de diferentes influenciadores variam muito, podendo custar de R$ 100 a mais de R$ 60 mil.
Mas todos prometem a mesma coisa: que qualquer um pode prosperar finaceiramente.
O dinheiro pode ser conquistado transformando-se em um influenciador e criador de conteúdo, ou também apenas vendendo o conteúdo ou curso de alguém em troca de uma comissão, que é o caso dos chamados afiliados.
Por exemplo, a pessoa pode ser ensinada a ter renda revendendo cursos dos grandes influenciadores ou oferecendo atalhos de comércio digital para produtos de gigantes como a Amazon ou a Shopee.
Sem apontar diretamente para nenhuma empresa ou influenciador específico, o relatório faz um alerta sobre riscos em torno deste universo, que cria “pirâmides aspiracionais”.
O estudo aponta para a presença dos esquemas de pirâmide, um modelo comercial fraudulento que depende do recrutamento de novas pessoas que pagam às antigas integrantes da rede, sem regras claras de remuneração. E também do estímulo nocivo de “aspirações irrealistas” e gastos com “treinamento digital enganoso”.
Por isso, a pesquisa defende a necessidade da criação de medidas regulatórias, inclusive com regras para o trabalho de influenciadores, além de programas educacionais para o segmento.
Vender e-books, sonhar alto
Foi por meio de um atraente anúncio para ganhar dinheiro que o motorista Lucas Silva, de 39 anos, foi atrás do primeiro curso de marketing digital que fez.
Em seu currículo, constam trabalhos como atendente, garçom, motorista de aplicativo, vendedor e vigilante.
Seu sonho, no entanto, é ter uma hamburgueria em Porto Alegre, cidade onde vive com a mulher, Priscilla Carvalho dos Santos, de 32 anos. Ela tem nível técnico em contabilidade e trabalha no momento como manicure.
Na tentativa de ser dono do próprio negócio, o casal já se aventurou por diferentes cursos de marketing digital, com focos variados.
Um deles, voltado para a venda direta de produtos de beleza, como pílulas que prometem cabelos saudáveis, crescimento das unhas e fortalecimento do sistema imunológico, ou comprimidos cujo anúncio diz auxiliar na perda de peso.
Desembolsaram quase R$ 1 mil, entre o valor do curso e dos impulsionamentos dos anúncios de vendas, mas, até agora, não tiveram retorno.
“Trabalhar com carteira assinada hoje em dia é uma coisa limitada”, diz Lucas.
Por isso, ele diversifica as apostas, literalmente, já que também entrou no ramo das apostas esportivas, as bets. “Em um dia só, coloquei R$ 30 e ganhei R$ 700. Mas em seguida perdi tudo.”
O perfil do casal é comum entre os analisados pelos pesquisadores da UCD. “Todo mundo aposta nas bets, faz rifas e quer vender e-book“, diz Pinheiro-Machado.
“É tudo parte do mesmo universo de esquemas que jogam com a aspiração das pessoas.”
Independentemente do meio, o fim se justifica pelo ganho de dinheiro graças a, teoricamente, o esforço individual, apontam os pesquisadores.
Para lucrar, é preciso vender, e, para vender, é preciso se esforçar e ter foco.
E, claro, fazer um curso, com “muitos entrevistados de origens menos privilegiadas, ou até mesmo em situação de pobreza, reiterando a crença de que ainda não eram ricos porque não tinham o mindset (mentalidade) certo”, diz o relatório.
“É um discurso baseado no hiperindividualismo”, afirma Pinheiro-Machado, que cita também a presença de uma “meritocracia distorcida” — se algo não deu certo, é porque a técnica não foi bem aplicada. Um “caldo de cultura” que carrega junto milhões de seguidores.
A cuidadora Crystian Rodrigues Ayres, de 31 anos, já fez cinco cursos de vendas online, mas ainda não conseguiu empreender. “Não me dediquei o suficiente”, diz ela.
“Não tenho vontade de fazer faculdade. Tenho o objetivo de fazer dar certo no marketing porque sei que o retorno é bom.”
Atualmente, Crystian, que vive no Rio de Janeiro, é contratada como microempreendedora individual (MEI) por uma agência especializada em cuidados de idosos.
Altas expectativas, longas jornadas
A pesquisa da UCD aponta que pode haver vantagens no mundo digital para todos os tipos de empreendedores, mas a questão é em que medida estão ancoradas suas expectativas.
“Quem já tem um pequeno comércio se beneficia do Instagram para promover seu negócio”, afirma Pinheiro-Machado.
“Mas é um percentual muito pequeno de pessoas que de fato estão ganhando dinheiro ali.”
A professora Adriana Tavares, por exemplo, já dava aulas de inglês totalmente online quando conheceu o mundo do marketing digital.
Em 2022, quando ela lançou um curso voltado para pessoas com mais de 50 anos, chegou a faturar R$ 100 mil em uma semana, um marco para quem se aventura por esse universo — e ainda repetiu o feito outras duas vezes naquele ano.
Mas hoje ela não está milionária. Tampouco tem tempo livre ou faz viagens luxuosas.
Pelo contrário, sua rotina de trabalho é extensa, dura de 12 a 15 horas por dia, inclusive aos finais de semana.
Do que ganha hoje, parte ela separa para quitar as dívidas que fez justamente quando faturou os tão sonhados “seis dígitos”. “Eu fiz errado no começo”, diz Adriana.
“Quando faturei aquele valor, contratei gente, cheguei a ter 12 pessoas trabalhando comigo, contando que eu iria faturar aquele valor de novo. E não é porque você fez ‘seis em sete’ uma vez que fará sempre.”
Fazer “seis em sete” significa faturar seis dígitos, ou ao menos R$ 100 mil, em sete dias, ou uma semana.
O curso de Adriana custa R$ 1.597 e fica disponível por um ano para que o aluno o conclua quando quiser, na Hotmart, uma das maiores plataformas de cursos online do país.
A plataforma foi fundada em 2011 e diz que já ultrapassou US$ 10 bilhões (R$ 54,5 bilhões) em vendas.
Os cursos que estão ali são variados, desde aulas sobre a Bíblia, maquiagem, idiomas, dietas, preparo para concursos, passando por formações sobre todos os tipos de terapias, jornalismo, direito, medicina, e, claro, muitos cursos sobre como criar cursos.
A BBC News Brasil solicitou uma entrevista com os executivos à frente da Hotmart, mas não houve retorno ao pedido.
Hoje, Adriana comemora ter chegado a 800 alunos e conta com orgulho sobre a sua mais recente matriculada: uma senhora de 84 anos.
“Sei que meu produto é bom. Sei que não estou enganando ninguém”, diz ela.
Suas expectativas, no entanto, foram reduzidas. Dos 12 funcionários que chegou a ter, hoje trabalham com ela o marido e a filha.
“Se eu pudesse voltar atrás, não teria contratado equipe, teria cuidado mais”, diz Adriana.
“O [influenciador] Erico [Rocha] não ensina isso, ele ensina o ‘montinho montão’, ou seja, a cada ganho, é preciso separar uma parte para investir no próximo lançamento.”
Esse ciclo de investimentos em publicidade a cada novo lançamento tem dado musculatura para esse setor da economia de influenciadores.
Segundo projeções do Goldman Sachs, esse ecossistema pode quase dobrar de tamanho nos próximos cinco anos, chegando a movimentar US$ 480 bilhões até 2027 no mundo.
Os principais impulsionadores desse crescimento, segundo o banco, serão os gastos com impulsionamentos e a monetização de vídeos curtos por meio de publicidade.
Faixa-preta de chinelo
Com mais de 2,5 milhões de seguidores no Instagram, Erico Rocha é um sujeito de voz mansa e gestos contidos, longe dos estereótipos mais agressivos utilizados por muitos influenciadores deste universo.
Um dos precursores do marketing digital no Brasil, é dele o método que Adriana aprendeu, chamado Fórmula de Lançamento.
Ele importou o método em 2013 do guru dos gurus, o americano Jeff Walker, pagando royalties cujo valor ele não revela.
Hoje, sua empresa tem 154 funcionários e, segundo ele, fatura R$ 100 milhões ao ano e ajuda a movimentar mais de R$ 1 bilhão indiretamente, por meio do faturamento dos alunos.
Seu discurso é voltado para o reinvestimento na empresa. “Sempre digo: não quero que você faça ‘seis em sete’ e vá para Ibiza. A gente quer ser empreendedor, por isso eu falo para as pessoas fazerem reserva de caixa, cuidar da empresa.”
Quando conversou com a BBC News Brasil de seu escritório em Brasília, Erico vestia camiseta, calça jeans e chinelo.
De acordo com ele, seu público, formado por pessoas com mais de 25 anos, já não se vê mais atraído pela ostentação de riqueza.
“Minha audiência não quer isso. Eles querem pagar o seguro de saúde da mãe, uma escola particular para o filho.”
Rocha se orgulha em dizer que tem mais de 400 “mentorados”, como ele chama, que já faturaram R$ 2 milhões em um ano, os chamados “faixas-pretas”, em alusão às graduação de artes marciais.
“Quer dizer que todos fazem esse valor? Não. Teve gente que fez mais, teve gente que faliu, foi fazer outra coisa…”
O dinheiro, no entanto, não vem da noite para o dia. “A média para que um aluno faça ‘seis em sete’ é de 12 a 14 meses”, diz Rocha.
Mas há exceções. “[Pablo] Marçal deve ter feito seis em sete no primeiro lançamento, ou no segundo”, diz Rocha.
“O que ele faz hoje não é a fórmula clássica. Ele cria movimentos, é extremamente viral. As pessoas, para ter sucesso com a fórmula, não são virais. Eu não sou viral.”
Viralizar um conteúdo e fazer com que ele chegue ao maior número possível de pessoas é estratégico.
Nesta equação, larga na frente quem tem mais seguidores ou consegue ganhar novos com técnicas para capturar atenção e tráfego pago.
No monitoramento da UCD, além de verificar o reduzido crescimento em número de seguidores dos aspirantes a influenciadores, também apareceram os padrões de discurso.
Entre as palavras comuns a todas as categorias, do maior influenciador para o menor aspirante a empreendedor, apareceram sempre a ideia de mentoria e expertise, como nas frases “te ajudo”, “especialista”.
“No entanto, à medida que eles ganham mais seguidores, a nuvem de palavras muda também”, afirma Matheus.
Saem de cena palavras como “Deus”, “mãe” e “CEO” e entram “mentor”, “pai” e “curso”, por exemplo, em um possível indicativo de que, quanto mais seguidores, mais corporativa e masculina são as descrições do perfil.
Instagram como ‘plataforma de trabalho’
É por causa da escala de abrangência do setor e suas implicações que a pesquisa da UCD defende que redes como Instagram tem que ser classificadas como “plataforma de trabalho” por governos e entidades globais como Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao lado de empresas como Uber e Rappi, por exemplo.
Para a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, essa mudança permitirá uma melhor análise para formular políticas públicas e uma maior cobrança das plataformas por transparência.
Na visão da pesquisadora, trabalhador “plataformizado” não seria apenas o motorista do aplicativo, mas um público muito mais amplo, que abarcaria da vendedora de cosméticos que tem um perfil na redes até o dentista que quer se lançar como mentor de outros dentistas. Todos “homogenizados” sob uma lógica ditada pela plataforma.
“As plataformas reforçam o tempo todo a promessa de que é possível viver como influenciador digital”, afirma Issaaf Karhawi, pesquisadora da cultura dos influenciadores digitais no Brasil e autora do livro De blogueira a influenciadora (Sulina, 2020).
“Isso te leva a trabalhar, de forma gratuita, produzindo diariamente conteúdo, na esperança de um dia viralizar e vir a se tornar um influenciador.”
Para Karhawi, a pesquisa da UCD “está muito associada a uma virada crítica importante nos estudos dos influenciadores digitais”, iniciados na época em que surgiram as blogueiras de moda.
Ela também compartilha da ideia, que aparece nos resultados da pesquisa, de que é um discurso muito presente no mundo digital, mas que não se concretiza e contém riscos.
A opacidade das plataformas, que não deixam claras as regras do algoritmo, e as próprias regras, como punições, suspensão de conteúdos considerados violadores, necessidade de constância nas publicações e a imposição de horários para um conteúdo ter melhor desempenho criam, na verdade, um sistema esgotador para quem trabalha com isso, de acordo com a pesquisadora. É o que Karhawi chama de “exaustão algorítmica”.
Já Cássio Calvete, economista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que pesquisa inteligência artificial e seu impacto no mercado de trabalho, aponta que a tecnologia ou o trabalho mediado por algoritmos pode, inclusive, piorar as condições de trabalho.
“Percebemos que o algoritmo tem uma série de formas para intensificar e estender o ritmo de trabalho, tanto por aplicativo, quanto para profissionais que trabalham em centros de distribuição”, diz ele.
Suas conclusões são um contraponto ao discurso de mais liberdade atrelado ao trabalho mundo digital.
Pinheiro-Machado lembra, no entanto, que a digitalização também traz a promessa de dignidade.
“Uma coisa é eu dizer que sou faxineira. A outra, é dizer que sou personal trainer”, afirma a antropóloga.
“A pessoa muitas vezes não ganhou dinheiro algum ainda, mas ganhou dignidade. Isso em um país historicamente marcado pelo estigma da pobreza importa.”
‘Eu invado cérebros’
“O outro lá invade terrenos. Eu invado cérebros. Entro no cérebro da pessoa, faço ela ficar com raiva e depois pulo para o outro lado”, disse Pablo Marçal durante uma entrevista no mês passado ao podcast Primocast, do grupo empresarial Primo, onde falou sobre seus negócios, em especial de marketing digital, e sobre política.
A declaração continha uma provocação ao adversário na corrida eleitoral, Guilherme Boulos (PSOL), que fez parte do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), e também foi uma janela para comentar as técnicas que ele usa tanto na carreira empresarial como na corrida eleitoral.
Ao longo dos meses, Marçal utilizou provocações e lançou mão de gatilhos emocionais para irritar adversários e ganhar holofotes. Também usou algo que aplica em seus “lançamentos digitais”, os chamados campeonatos de “cortes”, para divulgar sua campanha.
Na modalidade, ele recruta milhares de seguidores para que façam pequenos clips de seus conteúdos, os “cortes” de vídeos, em busca de engajamento nas redes.
O candidato chegou a dizer publicamente que remuneraria os campeões dos cortes que tivessem mais engajamento, e, questionado pela campanha de Tabata Amaral (PSB) na Justiça Eleitoral, acabou punido em agosto, ficando sem acesso às redes sociais que tinha. Isso no o impediu de seguir nas redes, já que ele criou novas contas em seguida.
“Deus vai mudar nossa sorte. A gente está sozinho. Nós, o povo, e Deus. [… ] Eu construí riqueza e você também vai construir. Chegou a hora do povo de São Paulo prosperar”, disse em um programa de TV em agosto, em linguagem próxima a que usa em seus próprios produtos digitais.
Se Marçal começou a campanha com 14% das intenções de voto antes do registro das candidaturas, em agosto, agora esse número chega a 21%, segundo apontou o Datafolha em 27 de setembro.
Para Rosana Pinheiro-Machado, o sucesso até agora é menos surpreendente do que parece, porque, em sua visão, trata-se de uma mensagem “individualista, consumista e conservadora” que ela vê repetida no mundo do marketing digital há muitos meses.
A hipótese da pesquisadora é que a plataformização do trabalho, aliada à precarização, une, em um só lugar, toda essa lógica, criando um “solo fértil” para a direita radical.
Fonte: BBC