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Duas das principais perguntas em torno do assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips são repetidas à exaustão por pessoas ligadas às vítimas: quem matou e quem mandou matar Dom e Bruno?

A Polícia Federal, que lidera as investigações no Vale do Javari (AM), diz ter descoberto as respostas para ambas.

Segundo os investigadores, há pelo menos oito pessoas suspeitas de envolvimento no crime, e duas confessaram ter feito os disparos que mataram as vítimas. Mas, por outro lado, os mesmos investigadores afirmam que os “os executores agiram sozinhos, não havendo mandante nem organização criminosa por trás do delito”.

Essas conclusões, divulgadas poucos dias depois que os restos mortais foram achados, receberam duras críticas da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que acusa as autoridades de ignorarem denúncias e informações repassadas pelos indígenas.

“O requinte de crueldade utilizado na prática do crime evidencia que Pereira e Phillips estavam no caminho de uma poderosa organização criminosa que tentou à todo custo ocultar seus rastros durante a investigação. Esse contexto evidencia que não se trata apenas de dois executores, mas sim de um grupo organizado que planejou minimamente os detalhes desse crime”, afirma a entidade.

Há ainda uma terceira pergunta central em torno dos assassinatos, mas esta não foi respondida ainda por autoridades: por que afinal Pereira e Philips foram mortos?

Questionada por jornalistas sobre a motivação do crime, a PF disse que não poderia relevar detalhes de uma investigação sigilosa e em andamento. Mas há indícios de que os assassinatos estejam ligados à pesca e caça ilegal em terras indígenas.

Segundo a Univaja, os suspeitos do crime integram grupos de caçadores e pescadores profissionais que fazem invasões constantes à terra indígena Vale do Javari e ameaçam de morte quem atua contra eles, a exemplo de indígenas e do próprio Bruno Pereira, tido como um dos maiores especialistas sobre a região e um dos principais indigenistas do país — mais recentemente, ele treinava indígenas para uso de drones e monitoramento do território.

Em 2019, por exemplo, o colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira foi morto a tiros em Tabatinga, a maior cidade da região. Meses antes, ele havia participado de uma operação que apreendeu grande quantidade de pesca e caça ilegal. Não houve prisões nem condenações pelo crime.

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Dezenas de manifestantes, entre eles indígenas da etnia guarani, se reúnem em 18/06 no vão livre do Masp para pedir justiça

O que dizem as investigações sobre quem matou Pereira e Phillips?

A Polícia Federal e outras autoridades envolvidas na investigação (como a Polícia Civil de Amazonas) têm divulgado o andamento dos trabalhos por meio de entrevistas e notas enviadas à imprensa.

Até agora, não há informações oficiais claras sobre o que realmente aconteceu no dia 05/06 e por que os crimes foram cometidos.

Dias antes, Phillips viajou para o extremo oeste da Amazônia acompanhado de Pereira para coletar dados para um livro que estava escrevendo sobre como salvar a floresta — ele já havia realizado diversas viagens para a Amazônia, onde fez reportagens sobre desmatamento e crimes. Os dois eram amigos e já haviam viajado juntos à Amazônia em outras ocasiões profissionais.

Mas em 05/06, ambos desapareceram a poucos quilômetros do Vale do Javari, que é a segunda maior reserva indígena do Brasil, um território com área equivalente à de Portugal onde vivem cerca de 6 mil integrantes de sete etnias.

A região é conhecida por intensos conflitos entre diversos grupos criminosos (como quadrilhas de madeireiros e pescadores ilegais). Alguns estudos sugerem que existe ligação entre essas atividades e o narcotráfico, que está presente na região desde os anos 1970.

O jornalista e o indigenista viajavam de barco pelos mais de 70 km que ligam o lago do Jaburu ao município de Atalaia do Norte. Na última vez que foram vistos, eles pararam na comunidade de São Rafael, às 6h, onde tinham uma reunião marcada com o líder pescador Manoel Vitor Sabino da Costa, conhecido como Churrasco.

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Bruno e Dom em viagem em 2018

Dali, eles seguiram seu caminho pelo rio. A dupla deveria ter chegado a Atalaia do Norte duas horas depois, mas desapareceu. Quem soou o alerta foram os indígenas da Univaja. Segundo a associação, Bruno e Dom viajavam em uma lancha em bom estado e com combustível suficiente para a viagem.

A partir dali, indígenas começam a realizar diversas buscas pela região, que seriam reforçadas em seguida por integrantes das Forças Armadas e das polícias estadual e federal.

Três homens foram presos até agora por suspeita de envolvimento nos crimes. Todos são pescadores.

O primeiro foi detido três dias após o desaparecimento de Pereira e Phillips. Amarildo da Costa de Oliveira disse ter sido torturado por policiais e confessou o crime, apontando, inclusive, a localização dos restos mortais de Pereira e Phillips.

Amarildo já havia sido acusado por indígenas de ter feito ameaças de morte e de ter participado dos atentados com arma de fogo contra a base de proteção da Funai em 2018 e 2019.

Outros dois suspeitos presos são: Oseney da Costa de Oliveira, um irmão de Amarildo que negou participação no crime, e Jefferson da Silva Lima, que estava foragido e se entregou à polícia em 18/06.

Segundo a polícia, Amarildo e Jefferson admitiram ter atirado nas vítimas com armas e munições de caça (repleta de balins de chumbo): Pereira foi atingido por três disparos (dois no peito e um na cabeça) e Phillips por um no peito.

Conflito crescente na região

A atividade movimenta recursos vultosos e abastece as principais cidades da região, onde a carne de caça e de peixes como o pirarucu é vendida em feiras e restaurantes.

Uma pesquisa realizada entre 2013 e 2014 pelo Center for International Forestry Research (Cifor), entidade baseada na Indonésia, estimou que 278 toneladas de carne de caça são vendidas por ano nas cidades de Benjamin Constant, Tabatinga, Letícia (Colômbia) e Caballococha (Peru), na Tríplice Fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia.

Enquanto um tracajá custa ao menos R$ 100 na região, um pirarucu pode ser vendido por mais de R$ 1.000, de acordo com uma reportagem publicada pela BBC em 2019.

Pela lei brasileira, no entanto, só povos indígenas e populações tradicionais podem caçar animais silvestres, e a atividade deve se voltar à subsistência dos grupos.

Mas invasões do território indígena são um problema antigo e se intensificaram nos últimos anos diante do “enfraquecimento da Funai”, segundo pesquisadores.

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Carne de caça e armas apreendidas pelo Exército em operação em 2019 na Tríplice Fronteira, entre Brasil, Peru e Colômbia

Os conflitos com pescadores e caçadores na região são antigos. Em 2000, um grupo de cerca de 300 pescadores de Atalaia do Norte e Benjamin Constant criou o Movimento dos Sem Rio e atacou instalações da Funai com coquetéis molotov.

Parte do grupo vivia em áreas que integravam o território demarcado como terra indígena, em 2001.

Muitas dessas pessoas descendem de seringueiros que chegaram à região no começo do século 20, no ciclo da borracha. A presença dos moradores, no entanto, era vista como um grave risco à sobrevivência dos indígenas isolados, pela possibilidade de conflitos e da disseminação de doenças.

Após a criação da terra indígena, os ribeirinhos deixaram o território e houve uma redução expressiva nas invasões por pescadores, caçadores e madeireiros.

Mas indígenas e pesquisadores afirmam que, mesmo após se mudarem, alguns ribeirinhos continuaram entrando na terra indígena para caçar e pescar animais destinados ao comércio.

Já na época da demarcação do território, há duas décadas, organizações alertavam para o risco de conflitos entre indígenas e ribeirinhos.

Enfraquecimento da Funai

Em artigo publicado em 2019 pelo geólogo Conrado Octavio e pelo ecólogo Hilton Nascimento no relatório “Cercos e Resistências – Povos Indígenas Isolados na Amazônia Brasileira”, do Instituto Socioambiental (ISA), a dupla diz que a situação se deteriorou rapidamente nos últimos anos “na esteira do processo de desconstrução de direitos e políticas públicas que tem marcado a atual conjuntura no país”.

“As invasões para a exploração predatória e ilegal de recursos naturais têm se intensificado até mesmo em locais que contam com bases da Funai, frequentemente acompanhadas de ameaças e até mesmo ataques a indígenas, servidores e membros de instituições que atuam na região”, dizem os autores.

A dupla atribui o agravamento dos conflitos principalmente ao “processo de enfraquecimento e precarização da Funai”.

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Colaborador da Funai Maxciel dos Santos Pereira foi morto a tiros em 2019 em Tabatinga, onde atuava com fiscalização e vigilância da terra indígena

No governo de Jair Bolsonaro (PL), a Funai teve grandes cortes no orçamento e passou a endossar propostas do presidente que sofrem grande oposição entre indígenas, como a liberação da mineração em seus territórios e a agricultura mecanizada em larga escala.

“Sucessivos cortes orçamentários, quadro deficitário de recursos humanos, evasão de servidores, além das pressões e ingerências políticas por parte das bancadas ruralista e evangélica têm impactado o órgão como um todo, com evidentes reflexos sobre a região”, afirmam os autores.

Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a maior organização indígena do país, diz à BBC que gestões anteriores da Funai eram mais abertas às comunidades indígenas e que o órgão “tem sido uma ferramenta a mais do governo para investir contra os povos indígenas. Acabou virando um órgão anti-indígena”.

Procurada, a Funai diz que vem ampliando os gastos com a proteção de indígenas isolados, mas não quis comentar as declarações de Terena.

Em nota à BBC na qual não cita suas operações no Vale do Javari nem os ataques recentes às suas instalações na região, o órgão federal afirma que os investimentos em ações de proteção a indígenas isolados e de recente contato chegou a R$ 51,4 milhões entre 2019 e 2021.

“Os valores superam em 335% o total investido entre os anos de 2016 e 2018”, diz a Funai, que informa ter usado os recursos “principalmente em ações de fiscalização territorial e combate à covid-19 em áreas habitadas por essas populações.”

*Com informações adicionais de João Fellet e Letícia Mori, da BBC News Brasil em São Paulo

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