- Evanildo da Silveira
- De Vera Cruz (RS) para BBC News Brasil
Figura controversa, ele era senhor de engenho e dono de negros escravizados, mas foi o autor da primeira lei contra o comércio deles da África para o Brasil. Amigo do imperador D. Pedro 1º e ministro, foi responsável pelas negociações que levaram ao segundo casamento do monarca, mas depois foi demitido acusado de corrupção. Em seguida, escreveu uma “carta profética” para o imperador, na qual insinuava que ele era doido e o alertava que, se não mudasse sua forma de governar, cairia em sete meses. Caiu em seis, ao ser obrigado a abdicar.
Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, o marquês de Barbacena, embora pouco estudado e mencionado pela historiografia brasileira, é considerado por alguns como a personificação do Primeiro Reinado (1822-1831) e até do Período Regencial (1831-1840). Militar de formação, foi diplomata, senador do Império, ministro da Fazenda e Conselheiro de Estado. Era peça política importante na época, tendo participação ativa nos grandes momentos do reinado de D. Pedro 1º.
O futuro visconde e depois marquês nasceu no arraial de São Sebastião, perto de Mariana, em Minas Gerais, em 19 de setembro de 1772 e morreu no Rio de Janeiro em 13 de junho de 1842. Era filho de duas famílias importantes, os Caldeira Brant e os Horta. “Barbacena era neto do contratador de diamantes Felisberto Caldeira Brant, preso acusado de contrabando no período das Minas Gerais setecentistas”, conta o historiador Rafael Cupello Peixoto, autor do livro O marquês de Barbacena: política e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841), com lançamento previsto para maio de 2022. “Ele foi casado com Anna Constança Guilhermina de Castro Cardoso, filha de um importante traficante de escravos da Bahia, Antônio Cardoso dos Santos.”
O também historiador Carlos Gabriel Guimarães, da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve o contexto político e econômicos na época em que Barbacena atuou, no início do império. “O ambiente no Primeiro Reinado foi bem conturbado, por causa das Guerras da Independência e as reações de outras Províncias à centralidade do Rio de Janeiro, e da presença portuguesa”, explica. “Importante ressaltar o embate entre o imperador D. Pedro 1º e a Assembleia Constituinte de 1823, com seu fechamento e a Constituição sendo outorgada pelo imperador em março de 1824, o que levou à reação de Pernambuco com a Confederação do Equador.”
Além disto, acrescenta, a Grã-Bretanha continuava pressionando para pôr fim ao tráfico negreiro com a África e a questão do reconhecimento político e diplomático do Brasil. “Em 1825, a antiga metrópole reconheceu a independência, mediante o pagamento de uma vultosa soma, o que levou o Brasil a contrair um empréstimo internacional”, informa Guimarães. “Foi o chamado o ‘empréstimo português’, no valor de 3,7 milhões de libras esterlinas.”
Outros problemas surgiram com a morte do rei de D. João 6º e a disputa pela sua sucessão, sendo D. Pedro 1º o autor da Carta Constitucional portuguesa, que duraria até a República de 1910 em Portugal. “Essa proximidade do imperador com seu país natal fez com que a relação deles com os brasileiros e seus representantes, principalmente na Câmara dos Deputados a partir de 1826, piorasse”, explica Guimarães.
A situação se agravou mais ainda com a derrota na Guerra da Cisplatina (1825-1828), na qual Barbacena foi comandante das tropas brasileiras, com a consequente perda daquela Província (atual Uruguai), grandes gastos com o conflito e a falência do Banco do Brasil (o primeiro, criado em 1808). “Portanto, nas vésperas da abdicação, em 1831, a situação política e econômica era difícil, e D. Pedro 1º já estava bastante desgastado e cada vez mais pressionado pelo grupo dos brasileiros acusando-o de ser favorável aos interesses de Portugal e dos portugueses”, conta o historiador.
Ao lado da perda da Província Cisplatina e dos gastos que a guerra gerou, Tâmis Parron, colega de Guimarães na UFF, lista outros fatores que levaram ao desgaste do imperador perante os brasileiros. “A política externa de D. Pedro 1º foi seu telhado de vidro, e a oposição não poupou nenhuma pedra que caísse nas suas mãos”, diz. “Ele usou o fim do tráfico negreiro transatlântico como parte de uma barganha com a Inglaterra. A Corte assinaria uma convenção com os ingleses suprimindo esse comércio, e eles viabilizariam o reconhecimento da Independência do Brasil o mais rápido possível.”
A barganha deu certo: nenhum país das Américas alcançou reconhecimento tão rapidamente como o Brasil na Era das Revoluções. “Foram meros três anos”, lembra Parron. “Mesmo assim, a elite política não perdoou, pelo efeito que teve na ilegalização do comércio de africanos escravizados. ‘O governo tem obrado como estúpido’, gritou um deputado no Parlamento, pouco antes da queda de D. Pedro 1º. Mais uma vez, o rei já tinha perdido a majestade antes de cair.”
De um jeito ou de outro, Barbacena participou de todos esses acontecimentos e situações. Antes disso, no entanto, ele foi fazer sua formação na Europa. O futuro marquês partiu em 1788, para estudar em Lisboa. Depois, ingressou na academia da Marinha, cujo comandante era seu primo José Pires da Silva Pontes, que o tornou seu protegido e de quem, mais tarde, ele adotou o sobrenome, como homenagem. Por algum motivo, Barbacena pediu transferência para o Exército e foi servir, por dois anos, em Angola, como major.
Segundo Peixoto, depois disso, Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta, fixou-se, em 1801, na Bahia como tenente-coronel do regimento local, onde desenvolveu uma extensa rede de negócios, que lhe possibilitou aproximar-se do novo centro político do Império português, o Rio de Janeiro, em virtude da instalação da Corte Joanina em 1808. “Nas diversas cartas que redigiu ao longo do oitocentos, a questão da segurança da Bahia, bem como o medo de levantes de ‘negros’ e da ‘gente miúda’ permearam as ideias dele”, diz.
Ainda de acordo com o historiador, como militar, o futuro marquês procurou disciplinar as Forças Armadas que tinha à disposição, como instrumento de ação para preservar a ordem e garantir a segurança da “boa sociedade”. Sua atuação no processo de independência reflete, de certa forma, seu apego à ordem. “Suas ações nesse período exemplificam seu modus operandi como político durante o período imperial brasileiro”, explica.
Barbacena era simpático aos ideais constitucionais que circulavam no século 19, resultado da Revolução Francesa de 1789. No entanto, defensor de uma perspectiva conservadora, ele acreditava que uma mudança para o sistema constitucional deveria ser processada pelo monarca. “Ele era um belo exemplar do conceito de ‘Despotismo Ilustrado’, tão em voga no mundo luso-brasileiro e promovido pelas autoridades reinóis portuguesas em seus projetos de reformismo ilustrado, do final do século 18”, diz Peixoto.
Ou seja, fiel ao seu princípio conservador, ele não poderia admitir um evento de transformação das estruturas políticas do mundo luso-brasileiro que não fosse comandado pela figura real. Isso pôde ser visto em 1817, quando eclodiu a Revolução Pernambucana, um movimento separatista — o último do período colonial — de caráter republicano. “Barbacena jamais participou ou apoiou qualquer movimento democrático”, conta Peixoto.
Na verdade, ele associava o conceito de democracia ao de excesso de liberdade, vista como “desprezível” e associada ao termo “República”, com a qual se deveria ter “o maior cuidado, e vigilância sobre outros da mesma escola, e seita”. “Para ele, esta forma de governo (República) era propagadora da anarquia e do caos social”, explica o historiador. “Não por acaso, portanto, ele se colocou contra a Revolução de 1817 e impediu que o movimento se alastrasse para a Bahia.”
Peixoto lembra ainda que o futuro marquês também se posicionou contra a Revolução do Porto, em 1820, que ele classificou como uma “moléstia do século”. Afinal, diz o historiador, ela foi promovida por revolucionários e não pela figura real. A mesma posição ele teve em relação ao movimento em apoio à revolta que ocorria em Portugal, que explodiu na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821.
Mas, desta vez, ele se viu em “maus lençóis”, inclusive sendo ameaçado de “linchamento” pelos apoiadores do movimento. “Assim, ele acabou aderindo à ação, mas sob forte constrangimento”, informa Peixoto. “Felisberto resolveu ir para o Rio de Janeiro e, depois, acabou viajando para Londres, após mais uma vez se envolver em uma confusão provocada agora por outro movimento de adesão às Cortes lisboetas, mas desta vez na cidade carioca.”
Na Inglaterra, Barbacena desempenhou importante papel diplomático. “Ao lado do jornalista e diplomata, Hipólito José da Costa, ele atuou, antes mesmo da independência, na primeira tentativa de obter o reconhecimento do Brasil como reino autônomo”, informa Isabel Lustosa, pesquisadora do Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. “Depois da morte de Hipólito [em 11 de setembro de 1823], atuou junto ao governo inglês pelo reconhecimento da independência do Brasil.”
Esse seu trabalho diplomático rendeu a ele dividendos econômicos e político. “Por causa de sua atuação, D. Pedro 1º, por meio do decreto de 12 de outubro de 1825, concedeu a Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira e Horta o título de Visconde de Barbacena, e, um ano depois, de marquês”, conta Guimarães.
Já como marquês, Barbacena teve forte atuação no governo imperial e ajudou D. Pedro a contornar crises. Diante da situação crítica da corte, ele foi convidado pelo imperador, em 1829, para ficar à frente do gabinete de ministros. “No cargo, Barbacena teve que lidar com as questões políticas, como a presença dos portugueses na Corte; com o famoso secretário do imperador Chalaça [Francisco Gomes da Silva], e o problema de ordem moral de D. Pedro 1º, envolvendo a sua amante, a Marquesa de Santos”, relata Guimarães.
O marquês se saiu bem – pelo menos por um tempo. Sua atuação fez com que os portugueses fossem afastados e a marquesa se retirasse da Corte. “No entanto, a pressão sobre D. Pedro 1º fez com que o imperador, em 1830, dissolvesse o gabinete do Marquês de Barbacena, que tinha trazido um pouco de ‘serenidade’ na conturbada conjuntura do momento”, diz Guimarães. “Isto fragilizou mais ainda o imperador, sendo criticado abertamente e em público.”
Lustosa acrescenta que Barbacena foi nomeado ministro com grande prestígio e parecia destinado a fazer um grande governo. “Mas D. Pedro rompeu com ele, por conta das despesas das viagens à Europa para negociar o segundo casamento do imperador”, explica. “O monarca lançou suspeitas sobre suas contas e o demitiu. Essa demissão parece ter tido o dedo do Chalaça, que tinha sido mandado embora do Brasil pelo imperador, a pedido do marquês. De lá da Inglaterra, Francisco Gomes da Silva fez a intriga que levou o monarca a romper com Barbacena.”
Esse é o final de uma história que começou antes de o Marquês assumir o ministério, quando ele viajou à Europa, em de julho de 1828, para levar a filha de D. Pedro, D. Maria da Glória, que viria a ser a rainha de Portugal, D. Maria 2ª, para a corte de seu avô, o imperador Francisco 1º, da Áustria. Também fazia parte da missão do marquês negociar o segundo casamento do imperador do Brasil, com alguma princesa europeia.
Quando chegaram em Gibraltar, Barbacena ficou sabendo que o irmão de D. Pedro, D. Miguel, havia usurpado o trono português e tinha o apoio de Francisco 1º. Então, resolveu levar Maria da Glória para a Inglaterra e, de lá, seguiu com a segunda parte da missão. Em 1829, ele retornou ao Brasil, trazendo a segunda imperatriz do Brasil, D. Amelia de Leuchtenberg.
Este poderia teria sido um final da história feliz para Barbacena se tempos antes ele não tivesse cometido um erro de avaliação. “O marquês havia entendido a dinâmica para chegar ao topo do poder político imperial, isto é, ‘bajular’ os homens próximos do monarca como forma de se aproximar dele”, conta Peixoto. “Ele fez isso ao ganhar a confiança de Chalaça, amigo e fiel escudeiro de D. Pedro 1º. Seu erro político foi achar que, uma vez no topo, poderia se livrar da influência de Francisco Gomes da Silva. Ao fazê-lo, enviando-o para a Europa, escreveu as páginas de sua própria ruína.”
Quando Chalaça descobriu que Barbacena foi um dos articuladores de sua retirada da Corte do Rio de Janeiro, conspirou contra ele, de Londres, incutindo no Imperador a desconfiança de que seu ministro havia roubado dinheiro em sua missão na Europa. “Dito e feito, D. Pedro demitiu Barbacena”, resume Peixoto.
Com o que D. Pedro não contava talvez fosse a crise que sua decisão iria gerar e que levaria a sua própria queda. Ressentido pelas acusações de corrupção, Barbacena trouxe à tona a história das negociações do segundo casamento e as exigências do Imperador de que a nova imperatriz reunisse quatro qualidades essenciais: nascimento, formosura, virtudes e instrução.
Dessas, D. Pedro estava até disposto a abrir mão de parte de duas. “Se não fosse ‘possível reunir as quatro indicações’, poderia ‘admitir alguma diminuição da primeira, e quarta, contanto que a segunda e a terceira sejam constantes'”, conta Peixoto. “A humilhação pela qual D. Pedro 1º passou, com seu excêntrico pedido e uma série de recusas, veio assim a conhecimento público.”
Barbacena foi mais longe, no entanto. Em 15 de dezembro de 1830, pouco depois de ter sido demitido, ele escreveu uma carta com pesadas críticas a D. Pedro, insinuando, inclusive, que o imperador era louco. “É uma carta interessantíssima, na qual ele faz análise da política na corte”, diz Peixoto. “Num trecho dela, ele lembra antepassados do imperador, como Afonso 6º (1643-1683) [rei de Portugal de 1656 até à sua morte, o segundo monarca português da Casa de Bragança], que acabou preso em Sintra por loucura.”
Segundo o historiador, Barbacena diz, “com todas as letras”, que, pelo seu comportamento, de às vezes falar uma coisa e fazer outra e pelos seus rompantes de fúria, pelo seu autoritarismo, se não mudasse poderia seguir o destino de Afonso 6º. “Ele diz textualmente as seguintes palavras: ‘Poderá acabar como parentes seus, em alguma prisão de Minas a título de doido’,”, revela. “Ou seja, D. Pedro seria considerado louco pelas suas ações.”
Na mesma carta, ele alertou que seu reinado não iria longe daquele jeito. “Barbacena previu, mas não no sentido profético, mas sim porque estava sintonizado com os acontecimentos políticos do período e também porque havia conversado com os grupos de oposição, que ele duraria sete meses no poder”, diz Peixoto. “Mas D. Pedro 1º caiu em seis, com a abdicação, em 7 de abril de 1831, em favor de seu filho, então uma criança de 5 anos, que mais tarde veria a ser o imperador D. Pedro 2º.”
Fora do governo, Barbacena continuou atuando no Parlamento. Ele foi autor da Lei de 4 de novembro de 1831 a primeira do Brasil que buscou abolir o comércio de africanos escravizados para o país. “Por muito tempo, a historiografia especializada, influenciada por pesquisadores estrangeiros, considerou a lei como uma norma promulgada apenas para ‘inglês ver’, isto é ‘letra morta’, que foi criada só para fugir das fortes pressões britânicas pelo fim do tráfico de africanos, tendo em vista a forte campanha internacional abolicionista promovida pela Grã-Bretanha”, explica Peixoto.
A aparente contradição de um dono de escravos, como Barbacena, fazer uma lei para proibir o comércio deles pode ser explicada pelo projeto de nação que ele defendia. “A ideia era – seguindo em parte o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva – construir uma nação homogênea, mas diferentemente do patriarca da Independência, que via na miscigenação o caminho para o branqueamento do país, o marquês defendia a vinda de imigrantes, sem qualquer tipo de mistura racial, como forma de colocar o país entre nas nações civilizadas”, diz Peixoto. “Uma civilização feita a partir do branqueamento do país.”
A lei de 1831 chegou a ser executada num primeiro momento após a sua promulgação, mas o fracasso do projeto “moderado” de Barbacena e do ideal de maior aceitabilidade das liberdades fez surgir uma nova força política em 1835, os Regressistas, futuro Partido Conservador do Segundo Reinado. Barbacena propôs então outro projeto de lei em 1837, que anulava a de 1831, mas mantinha o comércio proibido em troca um grande perdão aos senhores de escravos, que haviam obtido ilegalmente mão de obra africana desde o momento de promulgação da norma. “Uma vergonha”, classifica Peixoto.
Com o projeto de 1837, Barbacena ainda tentava fazer valer seu projeto de nação, no qual o africano deveria ser impedido de entrar no país e uma nação de imigrantes branqueada seria incentivada. “Só que, os regressistas eram contrários a esse projeto, porque o que eles desejavam era manter a escravidão e retirar dessa gente qualquer tipo de direito”, explica Peixoto. “Até mesmo o da liberdade, que de alguma forma, mesmo que não ideal, a lei de 1831 garantiu aos africanos.”
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