- Edison Veiga
- De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Em 11 de maio de 2007, durante missa presidida pelo papa Bento 16 no Campo de Marte, na zona norte de São Paulo, o Brasil oficialmente ganhou seu primeiro santo: o frade franciscano Antônio de Sant’Anna Galvão (1739-1822), mais conhecido como Frei Galvão.
Antes dele, apenas uma pessoa que vivera em solo brasileiro havia sido canonizada, a italiana Madre Paulina — nascida Amabile Lúcia Visintainer (1865-1942), no tirol italiano, mas emigrada ao Brasil em 1875.
De lá para cá, os altares nacionais acabaram povoados. Atualmente, já são 37 os brasileiros ou pessoas que viveram no Brasil reconhecidos como santos pelo Vaticano. E 54 beatos.
Uma “porteira” aberta por Frei Galvão, acreditam especialistas. “Ele abriu a fila”, diz o jornalista Victor Hugo Barros, membro titular da cadeira São Frei Galvão da Academia Brasileira de Hagiologia.
“A canonização de Frei Galvão foi motivo de grande alegria para o Brasil. Quando eu preparava meu livro ‘Candidatos ao Altar’ [de 2006], eu dizia que, a considerar o avanço da causa, seria ele o primeiro santo brasileiro nato”, comenta o hagiólogo José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.
“Foi um avanço muito grande e hoje temos muitos beatos e beatas, santos e santas. E todas essas causas seguem o esteio iniciado por Frei Galvão.”
Doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, o vaticanista Filipe Domingues, vice-diretor do Lay Centre, pontua que o gesto de Bento 16, decidindo celebrar a canonização em São Paulo, e não no Vaticano, teve um simbolismo importante.
“Isso não é comum. Normalmente, as canonizações são feitas na Praça São Pedro, pois ali o novo santo é ‘apresentado’ para a igreja no mundo. Mas ao celebrar localmente, no Brasil, o papa quis dar ênfase ao fato de estar presenteando o Brasil com um santo. Isso foi histórico”, analisa Domingues.
Obra do santo
Em 2008, um ano após a canonização, Frei Galvão acabou reconhecido postumamente como engenheiro honoris causa, em uma homenagem realizada pelo CREA-SP (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo), o conselho regional da profissão.
“Porque ele foi o grande responsável pela construção do Mosteiro da Luz [em São Paulo]. Esse diploma reconhece sua genialidade e seu empenho”, diz Barros.
“Frei Galvão foi o construtor do Convento de Nossa Senhora da Luz, depois, Mosteiro da Luz. Consta que ele acompanhou a construção passo a passo, como assistente de pedreiro e mestre-de-obras, muitas vezes, juntando-se aos trabalhadores e os ajudando no pesado trabalho”, acrescenta Lira.
“Frei Galvão dedicou muitos anos de sua vida à construção do Mosteiro da Luz. Por isso, religiosamente é o padroeiro da Construção Civil no Brasil, lastro que se estende a todos aqueles que estão ligados à arte de construir, pedreiros, serventes, carpinteiros, oleiros, ferralheiros, mestres-de-obras, empreiteiros, desenhistas, pintores, arquitetos e engenheiros.”
Lira lembra que Frei Galvão “é considerado o primeiro engenheiro brasileiro, mesmo sem formação acadêmica”. “E no campo cível, existe a Lei Nº 13.359, de 17 de novembro de 2016, que instituiu o Dia Nacional do Patrono da Construção Civil e dos Profissionais da Engenharia Civil, Santo Antônio de Sant’Anna Galvão, Frei Galvão, a ser celebrado no dia 25 de outubro de cada ano”, diz o hagiólogo.
“Frei Galvão é o padroeiro dos construtores, dos engenheiros e dos arquitetos. Em sua biografia, é apontado como projetista, mestre de obras, pedreiro… Acompanhou o passo a passo da construção desse mosteiro com uma dedicação quase paternal”, comenta o jornalista Barros. “Tinha o dom de trabalhar com construção.”
Um dos mais importantes historiadores da evolução urbana de São Paulo, o arquiteto e urbanista Benedito Lima de Toledo (1934-2019), professor na Universidade de São Paulo (USP), explorou essa faceta do santo em seu livro ‘Frei Galvão: Arquiteto’, no qual classifica o religioso como um “dos mais importantes arquitetos” do século 18.
Segundo a análise de Toledo, o frade tinha conhecimentos na hora de planejar a construção, pois conseguia projetar considerando fatores como ventilação, iluminação natural e o impacto na paisagem.
A história de Galvão confunde-se com a própria criação do Mosteiro da Luz. Nascido em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, o religioso formou-se no Seminário dos Jesuítas de Belém em Cachoeira, na Bahia, mandado por seus pais e onde estudou entre os 13 e 19 anos. Nessa época já demonstrava interesse pela construção religiosa — consta que teria visitado diversas igrejas da região nordeste do país e iniciado estudos na área.
Frei Galvão foi ordenado sacerdote franciscano aos 21 anos, no Rio de Janeiro. Logo em seguida, acabou se estabelecendo em São Paulo, no convento de São Francisco localizado no largo de mesmo nome, na região central da cidade.
De acordo com Barros, o religioso tinha uma inteligência fora do comum e isso fez com que logo assumisse papéis de destaque. “Também prezava pelos trabalhos em prol dos necessitados, pobres e doentes. Em 1768, apenas quatro anos depois de sua ordenação sacerdotal, foi nomeado confessor, pregador e porteiro do convento”, conta o jornalista.
Nesse período, a igreja anexa ao convento passou por uma grande reforma. Em seu livro Toledo afirma que é muito provável que ele não só tenha testemunhado, mas também auxiliado nessas obras.
O religioso se tornou confessor de religiosas que viviam no chamado Recolhimento de Santa Teresa, em São Paulo, e acabou comprando a ideia delas da necessidade de criação de um novo convento.
A oportunidade estava posta à mesa, já que alguns anos antes, em 1765, havia assumido a capitania de São Paulo o português Luís Antônio de Souza Botelho Mourão (1722-1798). E, devoto que era de Nossa Senhora, ele queria que uma decrépita capela em honra a Nossa Senhora da Luz, erguida em uma região então despovoada da cidade, fosse reconstruída.
A igreja estava em ruínas. Galvão entendeu que era sua hora de trabalhar. O Mosteiro da Luz foi inaugurado em 1774 — mas foram outros 14 anos de trabalhos para que a construção ficasse pronta. A igreja contígua só seria inaugurada em 1802.
Segundo a pesquisa de Toledo, durante essa longa obra, Frei Galvão atuou como arquiteto, mestre-de-obras, pedreiro, servente e carpinteiro. Dominou completamente a técnica em voga na época, da taipa de pilão. E não foram poucas as vezes em que ele assumiu o trabalho braçal, engrossando o rol dos escravos que famílias nobres cediam para a empreitada religiosa.
Em seu livro, o arquiteto Benedito Lima de Toledo pontua que o frade tomou uma decisão importante no decorrer da obra, que permitem vê-lo também como um urbanista empírico: ele alterou a entrada da capela. Isso faz com que a igreja tenha uma configuração um tanto estranha aos templos católicos: o altar principal não fica à frente de quem entra, mas, sim, à esquerda.
Galvão decidiu mudar a posição do frontispício e da face principal da igreja porque vislumbrava, segundo Toledo, julgando a geografia da região, que a área onde hoje está a Avenida Tiradentes seria muito movimentada — então a igreja precisaria “olhar” para essa direção.
Religiosidade
Mas é claro que não foram as habilidades na construção civil que fizeram de Galvão um santo. “Canonização é reconhecimento a alguém que viveu uma vida exemplar”, define Barros. E foi em memória a essa vida exemplar e reconhecimento a milagres que 800 mil pessoas acompanharam a cerimônia presidida por Bento 16 em 11 de maio de 2007.
Desde então, a igreja erguida por Galvão viu aumentar ainda mais o número de peregrinações. E Guaratinguetá, sua terra natal, também passou a fazer parte do turismo religioso — foi lá que Galvão, quando recém-ordenado, celebrou sua primeira missa.
Para o vaticanista Domingues, a canonização do brasileiro foi uma mensagem para os fiéis de que “os santos podem ser gente próxima da gente”. “Ao ser reconhecido como santo, ele mostrou que santos podem ser pessoas da nossa história, da nossa realidade local”, comenta.
“Frei Galvão tinha atenção aos pobres e aos doentes. E outra coisa importante foi a ideia das pílulas, uma devoção muito dele”, recorda Domingues. São pequenos pedaços de papel, com uma oração escrita, dobrados — que os fiéis ingerem enquanto rezam por uma causa especial.
Conta-se que a tradição tenha começado porque, certa vez, imbuído da necessidade de angariar recursos para a construção do mosteiro, Galvão teria ido até sua Guaratinguetá natal. Quando lá estava, foi abordado por um grupo que pedia que ele fosse até uma fazenda para rezar por um amigo que estava há dias sofrendo com uma pedra no rim.
Mas não havia tempo para ir até lá, Frei Galvão tinha de retornar logo a São Paulo para honrar alguns compromissos. Então teve uma sacada: pegou um pedacinho de papel, escreveu nele a frase: “Depois do parto, ó Virgem, permaneceste intacta: Mãe de Deus, intercedei por nós”. Dobrou o papelzinho, entregou a uma daquelas pessoas e recomendou que o doente tomasse aquilo como se fosse um remédio, rezando o terço.
A notícia seguinte foi que o homem havia se curado.
Histórias assim passaram a se repetir. Então as religiosas do convento foram incumbidas pelos sacerdote de produzirem as tais pílulas. É um trabalho que elas fazem até hoje, distribuindo-as a quem quiser, pessoalmente ou por correio, sempre de graça.
“Acabaram se tornando algo diretamente associado ao Frei Galvão”, afirma Barros.
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