- Julia Braun
- Da BBC News Brasil em São Paulo
Atos em prol da democracia estão marcados para diversas cidades do país nesta quinta-feira (11/08). As demonstrações foram impulsionadas pela articulação de um manifesto por professores e juristas ligados à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
A Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito, que pede respeito ao processo eleitoral, à separação dos Poderes e ao Estado Democrático de Direito, já recebeu mais de 840 mil assinaturas. Constam entre os signatários acadêmicos, ex-ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), bancários, empresários, artistas e diversas entidades.
“No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários”, diz o manifesto. “A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições.”
Alguns dos principais candidatos à Presidência também assinaram o documento, entre eles Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Ciro Gomes (PDT), Simone Tebet (MDB) e Felipe D’Avila (Novo). Os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff também apoiaram.
Os atos previstos para quinta acontecerão de forma simultânea à leitura do manifesto na Faculdade de Direito da USP.
Uma segunda carta em defesa da democracia, organizado pela Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e endossado por centrais sindicais, pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos), Fecomércio, Academia Brasileira de Ciências, UNE (União Nacional dos Estudantes) e outros, também será lida durante a manifestação, de acordo com os organizadores.
Segundo cientistas políticos e sociólogos, os manifestos de caráter suprapartidário têm, além de um valor simbólico grande para o Brasil, a capacidade de gerar efeitos práticos no atual contexto pré-eleitoral.
Para Rosemary Segurado, cientista política e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), o primeiro grande resultado da mobilização — e que já vem se tornando realidade — é a formação de uma frente ampla em prol da democracia.
“Há tempos se fala da necessidade de uma frente ampla para defesa da democracia, que acabava não se constituindo. Mas o que vemos agora é um passo inicial nessa direção, especialmente se tratando de manifestos que reuniram diversos setores da sociedade, inclusive do empresariado, em prol da pauta”, diz.
Segundo a especialista, esse processo ainda amplia a legitimidade do processo eleitoral brasileiro, que vem sendo questionado por forças dentro do próprio governo.
“Essa mobilização tem ainda a capacidade de dar ainda mais legitimidade ao processo eleitoral e, principalmente, uma sustentação para o próximo presidente eleito tomar posse e exercer seus poderes”, afirma Segurado.
Desde que tomou posse do cargo em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PL) vem investindo contra o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o sistema de votação eletrônica.
Em julho, uma reunião com embaixadores estrangeiros de países democráticos, em que o presidente repetiu suspeitas já desmentidas por órgãos oficiais sobre a credibilidade das eleições de 2018 e a segurança das urnas eletrônicas, foi alvo de muitas críticas e preocupação.
Diferentemente da maioria dos presidenciáveis, Bolsonaro afirmou que não vai assinar a carta organizada pela Faculdade de Direito da USP.
Para o cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) Marco Antônio Teixeira, os atos e manifestos em prol da democracia isolam Bolsonaro e seu discurso sobre o sistema eleitoral.
“A mobilização deixa o bolsonarismo isolado nessas ideias e demonstra que a desconfiança sobre as urnas eletrônicas e o processo eleitoral não tem grande adesão na sociedade”, diz.
Segundo uma pesquisa do Instituto Datafolha de março deste ano, 82% da população brasileira confia no sistema de votação e nas urnas eletrônicas.
“Na medida em que a manifestação vai acontecer em todo país, a iniciativa coloca obrigatoriamente o tema da proteção da democracia na agenda da eleição”, diz o cientista político Ricardo Ismael, professor da PUC-Rio.
“Isso pode ter um efeito importante, especialmente porque os candidatos certamente serão questionados sobre isso em entrevistas e debates.”
Marco Antônio Teixeira chama atenção, porém, para o fato de que até o momento, as manifestações em prol do Estado Democrático de Direito não impediram as declarações de Bolsonaro e outros membros de seu governo.
Em encontro com representantes da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e da CNF (Confederação Nacional das Instituições Financeiras) em São Paulo na segunda-feira (8/08), o presidente atacou o manifesto em defesa da democracia.
Aos banqueiros, signatários da carta, Bolsonaro disse que quem é “democrata não precisa assinar cartinha”. Ele ainda associou o manifesto a uma defesa da candidatura do ex-presidente Lula, apesar de o documento não mencionar nenhum político.
Impacto nas eleições
Para Ricardo Ismael, a mobilização em torno da carta tende a não se refletir de forma expressiva nas urnas.
“A nível dos formadores de opinião, dos segmentos de maior escolaridade e mais politizados a carta tem um efeito importante”, diz.
“Mas quando se trata da maior parte da população, que foi atingida pela atual crise econômica social e que está preocupada com questões ligadas à sobrevivência e às suas condições de vida, o tema pode ficar em segundo plano.”
“É claro que a maioria dos brasileiros de baixa renda não deseja a volta da ditadura ou o fim da democracia, mas os critérios de definição do voto devem girar em torno da redução do desemprego, do pagamento de benefícios sociais, do estado do sistema de saúde pública e do combate à fome”, afirma Ismael.
Na opinião do professor da FGV Marco Antônio Teixeira, porém, a mobilização pela defesa da democracia pode influenciar o eleitor caso o atual presidente insista no discurso que questiona a segurança das urnas e do processo eleitoral.
“O impacto eleitoral pode ser negativo para Bolsonaro caso sua campanha insista no discurso polarizador”, diz.
“As pesquisas eleitorais já mostraram que quando o atual presidente radicaliza seu discurso e faz ameaças à eleição, suas intenções de voto caem ou estancam.”
Uma pesquisa Genial/Quaest colhida entre os dias 28 e 31 de julho mostrou o ex-presidente Lula com 12 pontos de vantagem sobre Bolsonaro. Segundo o levantamento, o petista tem 44% das intenções de voto, ante 32% do atual chefe do Executivo.
Frente ampla no 2° turno?
Ricardo Ismael, da PUC-Rio, afirma ainda que a formação de uma frente ampla em prol da democracia no Brasil, arquitetada por meio dos manifestos, pode ser o pontapé inicial para uma aliança política em um possível 2º turno das eleições presidenciais.
“Podemos imaginar uma frente democrática se formando no 2° turno, que inclua o ex-presidente Lula e alguns outros adversários contra o atual presidente Jair Bolsonaro”, diz.
Segundo o cientista político, o movimento de assinar o manifesto feito pelos candidatos Ciro Gomes e Simone Tebet, que ocupam atualmente o terceiro e quarto lugar nas principais pesquisas de opinião, tende a indicar uma oposição ao discurso de ataque ao sistema eleitoral de Bolsonaro que poderia levar a uma aliança.
Simbolismo e referência a 1977
Em seu texto, a Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado Democrático de Direito faz referência direta a outro momento da história em que um manifesto democrático gerou repercussões na sociedade brasileira.
Trata-se de um manifesto semelhante lido no Largo de São Francisco pelo professor Goffredo Telles Jr., em 1977, em ato que ficou conhecido como um dos marcos da organização da sociedade civil contra a ditadura militar (1964-1985).
A Carta aos Brasileiros, que completa 45 anos e também será lembrada no ato organizado pela Faculdade de Direito da USP, denunciava a ilegitimidade do então governo militar e conclamava a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.
“Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direitos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras”, dizia o manifesto de 1977.
“Há todo um simbolismo que os autores e agora os mais de 800 mil signatários tentam ecoar pelo país todo com o manifesto de 2022, que remonta ao movimento de 1977”, diz Ricardo Ismael.
“Diferente do momento atual, naquele momento o Brasil ainda passava pela ditadura militar e o manifesto foi muito importante para articular as forças políticas em trabalhar pela redemocratização”, explica Rosemary Segurado, da PUC e FESPSP.
“A defesa da democracia é algo comum, o que muda são os contextos”, diz Marco Antônio Teixeira.
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