- Author, Leandro Machado
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @machadoleandro
Pernambuco está no centro de um conflito envolvendo a energia eólica, setor econômico que passa por um momento decisivo no Brasil e que tem o Nordeste como principal polo de seu acelerado crescimento.
Enquanto o país investe cada vez mais na chamada transição energética — mudança na produção de energia, de combustíveis fósseis para recursos renováveis —, também tem crescido a resistência de movimentos sociais e comunidades de pequenos agricultores afetados pelos aerogeradores.
O Brasil tem hoje 1.043 parques eólicos, com 11.183 torres operando em 12 Estados, segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). Eles são responsáveis por produzir 14,5% de toda eletricidade no país — e o Nordeste responde por mais de 80% disso.
Em Pernambuco, que conta com 43 dessas fazendas de produção, a gestão da governadora Raquel Lyra (PSDB) está tentando regulamentar o setor por meio de um decreto que prevê regras e procedimentos a serem adotados pelas empresas que pretendem instalar novos parques.
Embora existam projetos de lei em outros Estados, Pernambuco saiu na frente e tem mobilizado empresas e movimentos sociais sobre a discussão.
Para licenciar um empreendimento, os Estados seguem uma norma do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 2014 que determina um distanciamento de 400 metros entre torres e casas.
Mas especialistas no assunto acreditam ser necessária uma nova regulamentação, sob o argumento de que a anterior foi escrita em um período em que os impactos ambientais e sociais da produção de energia eólica eram pouco conhecidos por se tratar de uma nova tecnologia ainda não avaliada a longo prazo.
Em 10 de abril, a tensão aumentou em Pernambuco quando um grupo de agricultores de seis comunidades de Caetés, município no Agreste e local de nascimento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ocupou a sala onde ocorria uma reunião com representantes do governo estadual e de empresas de energia.
A principal reclamação é sobre o barulho produzido pelos aerogeradores — máquinas com mais de 120 metros de altura, e 50 de comprimento. O ruído ininterrupto, dizem os agricultores, tem gerado problemas de audição e prejudicado a saúde mental da população.
Em abril do ano passado, a BBC News Brasil visitou a zona rural de Caetés. Os moradores, alguns com torres a cerca de 150 metros de suas casas, relataram uma série de impactos que, segundo eles, são causados pela proximidade com dois parques instalados na região na última década.
Além da piora da saúde mental, o que levou a um aumento do uso de ansiolíticos, alguns desses trabalhadores contam ter deixado suas casas por não conseguir mais conviver com o barulho constante.
A minuta do decreto elaborado pelo governo de Pernambuco, à qual a BBC News Brasil teve acesso, estipula um distanciamento mínimo de 500 metros.
A proposta é rechaçada por agricultores e movimentos sociais, que defendem uma distância de pelo menos um quilômetro.
“A proposta de 500 metros é um absurdo. Quando você está perto de um parque eólico, não é apenas uma torre que faz barulho, são dezenas, centenas. Cria-se uma onda sonora muito maior, que afeta a vida das pessoas, dentro e fora de casa”, diz João do Vale, ativista da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e diretor do documentário Vento Agreste, sobre o impacto do setor em Caetés.
“Esse barulho deixa as pessoas doentes, está expulsando os agricultores de suas casas.”
Por outro lado, o governo pernambucano argumenta que 500 metros ainda não é o valor definitivo e que pode exigir um distanciamento maior a depender do projeto – a empresa terá de demonstrar que não causará prejuízos aos moradores.
Distância mínima
A discussão sobre a distância mínima entre aerogeradores e residências também está sendo travada em outros países em um momento em que a transição energética é apontada como uma das soluções para frear as mudanças climáticas. O problema é que não há consenso sobre qual é distância ideal.
A Polônia, por exemplo, estabeleceu um limite de 400 metros, e a França, de 700.
No ano retrasado, após uma série de protestos, o Conselho de Estado da Holanda, mais alto conselho administrativo do país, suspendeu a construção de um parque eólico e solicitou mais estudos sobre possíveis consequências no meio ambiente e na saúde mental das pessoas que vivem a cerca de 600 metros de onde as torres seriam instaladas.
Também na Holanda, alguns pesquisadores afirmaram que os ruídos não causam problemas de saúde mental, mas, logo depois, outro grupo de cientistas contestou essa conclusão, afirmando que há muitos indícios de prejuízos à saúde, além de apontar que a pesquisa inicial havia sido bancada por empresas de energia eólica.
Por ora, o decreto do governo de Pernambuco não apresenta justificativa técnica para estipular o limite mínimo de 500 metros, de acordo com a minuta.
Segundo José de Anchieta dos Santos, presidente da Agência Pernambucana de Meio Ambiente, conhecida pela sigla CPRH e responsável por comandar as reuniões, esse valor ainda “não está fechado”. Ele diz que “500 metros foram só para começar a discussão.”
“O empreendedor terá de provar, durante a fase de licenciamento ambiental, que o barulho das torres não vai prejudicar os moradores do entorno como vem acontecendo hoje em alguns parques”, diz Santos.
“Se tiver que ser um ou dois quilômetros, nós é quem vamos aprovar a partir desses estudos.”
Por outro lado, a ABEEólica, associação que representa o setor, acredita que “delimitar uma distância específica não necessariamente vai resolver a questão do ruído nas casas vizinhas aos aerogeradores.”
“É preciso um estudo prévio de cada terreno. O ideal é definir essa distância caso a caso por conta das peculiaridades de cada terreno e região, além de ser um cálculo multifatorial de direção e velocidade dos ventos, topografia, características da vegetação, rugosidade do solo, incidência solar. Para algumas regiões essa distância pode ser inferior a 500 metros e, para outras, superior”, diz a ABEEólica, em nota.
Efeito de borda
Mas não é só o barulho o que está sendo discutido em Pernambuco.
Embora a produção de energia eólica e solar — chamadas de “energia verde e limpa” por empresas, governos e imprensa — causem menos impactos ambientais do que hidrelétricas e termelétricas, estudos científicos mostram que esses impactos são relevantes.
Um levantamento da plataforma MapBiomas, que usa imagens de satélites para monitorar as transformações no uso do solo, apontou que 4 mil hectares da Caatinga foram desmatados em 2022 para dar lugar à infraestrutura de produção de energia solar e eólica, como estradas, parques e linhas de transmissão.
No total, cerca de 140 mil hectares do bioma foram desmatados naquele ano, ficando atrás apenas da Amazônia (1,1 milhão hectares) e do Cerrado (659 mil), segundo o MapBiomas.
A Caatinga, bioma exclusivamente brasileiro, abriga mais de 11 mil tipos de plantas e cerca de 1,3 mil espécies de animais, principalmente no semiárido nordestino.
Para o biólogo Gabriel Faria, que estuda o impacto ambiental do setor em seu mestrado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o tipo de desmatamento para dar lugar às renováveis causa o que os ambientalistas chamam de “efeito de borda”.
“Quando a mata é cortada ao meio, seja para colocar uma torre, uma estrada ou uma linha de transmissão, você acaba limitando e comprometendo processos biológicos do bioma”, explica.
“Isso afeta o desenvolvimento e sobrevivência da flora e da fauna. É como se você cortasse uma célula ao meio: o impacto não ocorre só no ponto de corte, mas em todo o sistema que ficou em volta.”
Um dos exemplos desse problema ocorreu em uma área de Caatinga conhecida como “Boqueirão da Onça”, na Bahia, conforme mostrou uma reportagem da BBC News Brasil em 2020.
A instalação de parques eólicos na Área de Proteção Ambiental (APA) do Boqueirão limitou o espaço para onças-pardas e pintadas caçarem suas presas naturais em meio à vegetação, segundo um monitoramento feito por pesquisadores.
O resultado disso é que os grandes felinos — raros na Caatinga — começaram a atacar animais de pequenos agricultores locais, que, para defender seus rebanhos, muitas vezes matavam as onças que se aproximavam das comunidades, ameaçando a sobrevivência das duas espécies na região.
Faria acredita que o “efeito de borda” pode acontecer no Parque Nacional do Catimbau, reserva ambiental de Caatinga de 62 mil hectares na cidade de Buíque, no sertão de Pernambuco.
Um parque eólico com centenas de torres deve ser instalado nas “zonas de amortecimento” do parque, áreas que oficialmente não estão dentro dos limites da reserva, mas que ainda sustentam vegetação nativa e que servem como uma espécie de “corredor natural” para a fauna, como grandes felinos e aves.
“Também é uma área com aldeias indígenas reconhecidas, mas ainda não demarcadas pelo Estado. As lideranças estão muito preocupadas com os efeitos dos parques na vida das pessoas e também no meio ambiente”, diz o biólogo Gabriel Faria.
“Há muita pressão para que esse modelo de produção seja aceito pelas comunidades. A emergência climática, um problema que o mundo deve enfrentar, acabou virando um grande negócio que está transformando o Nordeste brasileiro em um campo de experiências.”
A ABEEólica argumenta que a produção de energia a partir da força do vento “é uma das fontes de menor impacto socioambiental” e que “as empresas associadas trabalham para mitigar tais impactos.”
“É importante ressaltar o impacto positivo não só para o país e o avanço da transição energética, mas para os municípios e comunidades das áreas que recebem os parques. Dentre eles, podemos citar os impactos diretos e indiretos dos investimentos em energia eólica para o PIB (Produto Interno Bruto), sendo que cada R$ 1 investido num parque eólico tem impacto de R$ 2,9 sobre o PIB”, diz a associação.
Recentemente, a associação lançou um Guia de Boas Práticas Socioambientais, que “apresenta, a partir de ações bem-sucedidas já implementadas, como empreendedores podem trabalhar em projetos de energia eólica no Brasil de forma respeitosa, transparente e harmoniosa com a sociedade e o meio-ambiente”, diz.
Relatórios simplificados
Na regulamentação em curso em Pernambuco, as empresas têm se posicionado a favor de uma flexibilização dos licenciamentos ambientais necessários para a aprovação de seus parques. A ideia é deixar os estudos sobre impactos mais simples e rápidos.
Para licenciar um empreendimento com “degradação ambiental significativa”, os governos estaduais costumam exigir das empresas um documento conhecido como “Eia-Rima” (sigla para estudo e relatório de impacto ambiental).
As empresas pedem que, em caso de parques menores, seja exigido apenas o chamado Relatório Ambiental Simplificado (RAS), que, como o próprio nome diz, é menos detalhado sobre os impactos que um empreendimento pode causar.
“Um pequeno empreendimento necessitar elaborar um Eia-Rima tem o condão de tornar inviável o desenvolvimento de um projeto”, escreveu a Associação Pernambucana de Energias Renováveis, em nota técnica enviada à Assembleia Legislativa do Estado.
A ABEEólica, que representa empresas de todo o país, também é a favor da flexibilização.
“A flexibilidade é algo necessário, especialmente com uma tecnologia nova. É preciso diálogo entre as partes interessadas e decisões com base técnica e científica caso exista a necessidade de mudar regras de licenciamento”, disse a entidade, em nota.
O decreto pernambucano estipula ser obrigatório o RAS até para empreendimentos enquadrados como de “médio impacto”.
Mas, para José de Anchieta dos Santos, da agência de meio ambiente do Estado, isso não é um problema.
“Nós vamos avaliar caso a caso e, se for necessário, vamos pedir o Eia-Rima também, e a empresa terá que fazer”, explica.
Discurso sustentável
A revelação dos impactos até então ignorados da energia eólica levou a Secretaria-Geral da Presidência da República a criar um grupo de trabalho, formado por pesquisadores e servidores, que está visitando comunidades do Nordeste para ouvir a população do entorno desses parques.
O objetivo, diz a pasta, é produzir um relatório a ser enviado a órgãos do governo que atuam em questões relativas à produção energética, saúde e meio ambiente, como o Ibama e os ministérios da Saúde, Minas e Energia e do Meio Ambiente. E que futuramente esse material possa subsidiar uma regulamentação federal sobre o tema.
Atualmente há um projeto de lei tramitando no Congresso, mas ele diz respeito apenas à energia eólica offshore, instalada em alto mar.
“As comunidades não são contrárias à energia renovável, mas sim à forma como ela é instalada”, diz Marcelo Fragozo, secretário nacional de diálogos sociais e articulação de políticas públicas do governo Lula.
“Com a ausência de regulamentação, há uma preocupação grande de que esse modelo se espalhe e crie ainda mais problemas.”
Para Fábio Tomaz, coordenador de projetos da Secretaria-geral da Presidência, a legislação brasileira não acompanhou a evolução tecnológica nem a importância que as energias renováveis ganharam nos últimos anos.
“O desafio é que essa produção seja economicamente justa e ambientalmente sustentável, para que isso não fique apenas no campo do discurso”, diz.
Fonte: BBC
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