- Marcia Carmo
- De Buenos Aires para BBC News Brasil
Assim que a seleção argentina eliminou a Holanda na Copa do Mundo do Catar, em 9 de dezembro, alguns torcedores do Brasil enviaram mensagens para amigos brasileiros e argentinos que moram em Buenos Aires comemorando o resultado.
“Que jogo, que torcida linda. Parabéns, hermanos”, disse um deles.
Na terça-feira (13/12), quando a Argentina venceu a Croácia por três a zero, novas mensagens, em tom de admiração, voltaram a se repetir. E algumas delas incluíram até trechos de tango.
“Arte e luta em doses iguais”, escreveu um deles, elogiando a atuação da seleção capitaneada por Lionel Messi e anexando um tango de Astor Piazzolla à mensagem.
Com a saída do Brasil da Copa, alguns brasileiros famosos e anônimos aderiram à torcida pela seleção argentina — inclusive o narrador Galvão Bueno, da Rede Globo, conhecido por já ter dito que “ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é melhor ainda”.
Até o correspondente do jornal britânico The Guardian na América Latina, Tom Phillips, se surpreendeu com o apoio de brasileiros à seleção do país vizinho. “O que está acontecendo?”, brincou ele no Twitter.
Será que algo está mudando na rivalidade histórica entre Brasil e Argentina, alimentada por disputas em Copa do Mundo e décadas de comparação entre o desempenho de Maradona e Pelé?
Para entender isso, a BBC News Brasil ouviu analistas especializados em história, em antropologia e em futebol, que observaram que esse sentimento atual reflete vários motivos.
A admiração por Messi, que coleciona sete Bolas de Ouro de melhor jogador do mundo e costuma ser elogiado por sua “simplicidade” e “zero arrogância”, a “garra dos jogadores e da torcida argentina” e a percepção das novas gerações de brasileiros, que se identificam como latino-americanos são elementos que contribuem para apaziguar a rivalidade histórica.
O professor João Manuel Casquinha, do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), que faz pesquisas sobre futebol, atendeu à reportagem da BBC News Brasil quando acabava de sair de uma reunião com outros dois professores. Os três acadêmicos estão torcendo pela Seleção Argentina, que neste domingo (18/12) disputará a final do mundial contra a França.
“Vou dar uma percepção bem de torcedor. Os jogadores argentinos sempre nos encantaram pela sua dedicação, pelo seu amor pela pátria. Aquela coisa de jogar pela bandeira e de terminar os jogos e ir para o meio da torcida. Muita garra, muita vibração. E, além de toda garra argentina, eles têm o melhor jogador do mundo e a gente acaba ficando com uma certa invejinha no Brasil”, disse Casquinha.
Coordenador do Grupo de Estudos de História do Esporte e das Práticas Lúdicas (Stadium), o professor entende que até o videogame tem contribuído para as novas torcidas brasileiras por Messi.
“Vemos os mais jovens que curtem o Messi, que o viram jogar no Barcelona, o veem jogar no Paris Saint Gemain e passaram quatro anos (até a Copa) jogando com ‘Messi’ no videogame. E eles acabam tendo tanta identidade com Messi como têm com o Neymar. Eu diria que, em alguns casos, eles têm até mais identidade com o Messi do que com a maioria dos jogadores brasileiros, que nem sempre conhecem porque jogam em equipes europeias menores e praticamente não atuam no território brasileiro”, disse Casquinha.
“A gente tem uma nova geração de torcedores que torce para o Arsenal, para Manchester City, para o Paris Saint Germain, para o Barcelona… É um fenômeno que vemos acontecendo nos países sul-americanos. Tem a ver com a globalização. E esses clubes têm trabalhado uma inserção na América Latina”, afirmou.
Essa mesma geração se identifica, em muitos casos, mais como latino-americana, ao contrário do que pensavam seus pais e seus avós no passado. Esse sentimento também explica a torcida de muitos brasileiros, na visão do professor Casquinha — ele próprio diz querer “uma vitória dos sul-americanos” neste domingo.
O técnico da seleção argentina, Lionel Scaloni, também tentou cultivar isso.
Scaloni é amigo de vários jogadores brasileiros, se declara “fã” do Brasil e disse que seria “estimulante” ter o apoio da torcida brasileira e das outras nações da América do Sul na final — desde 2006, os europeus são os únicos a erguer a taça da Copa do Mundo.
Mas, para deixar a rixa de lado, é preciso entender suas origens.
A origem da rivalidade Brasil x Argentina
É na política, e não no futebol, que alguns historiadores situam esse princípio.
O historiador Boris Fausto, coautor de Brasil e Argentina: Um Ensaio de História Comparada (1850-2002), diz que a rixa começou no século 19, quando os dois países passaram a disputar a liderança regional na América do Sul.
Para Fausto, essa rivalidade política acabou sendo assimilada pela sociedade. E, com isso, se descolou de fatos históricos e invadiu outros setores, como o futebol.
O cientista político argentino Rosendo Fraga também acha que Brasil e Argentina herdaram a rivalidade que existiu entre os ex-colonizadores, Portugal e Espanha, no processo de ocupação da América do Sul. E nisso, a disputa pela região chamada Cisplatina, nos arredores do rio da Prata, tem papel importante.
Essa disputa chegou ao ápice na Guerra da Cisplatina (1825-28), que opôs o Brasil, já independente de Portugal, e as chamadas Províncias Unidas do Rio da Prata, que mais tarde viriam a formar a Argentina.
O Brasil sofreu duras derrotas em três batalhas da guerra e acabou desistindo de ser dona do território. Os argentinos também não ficaram com a Cisplatina, que acabou virando outro país: o Uruguai.
Mas a desconfiança bilateral continuou, apesar da falta de hostilidades ou conflitos dali em diante. Inclusive Brasil, Argentina e Uruguai foram aliados na Guerra do Paraguai (1864-1870).
O cientista político argentino Vicente Palermo, autor de La Alegria y la Pasión – Relatos Brasileños y Argentinos en Perspectiva Comparada (“A Alegria e a Paixão – Relatos Brasileiros e Argentinos em Perspectiva Comparada”, em tradução livre) acha que, historicamente, era comum que argentinos exibissem um ar de superioridade perante os brasileiros. Isso por causa do período histórico em que a Argentina foi um dos países mais ricos do mundo em PIB per capita, com uma classe média mais pujante.
Mas ele acha que isso mudou principalmente depois da ditadura militar instalada no país entre 1976 e 1983, quando os argentinos se viram diante de problemas semelhantes ou até mais graves que os brasileiros, como a sucessão de crises econômicas.
Hoje, Vicente Palermo acha que os argentinos mudaram completamente a visão sobre o Brasil e enxergam o país como um ator global de peso.
Mas os clichês se mantiveram, em particular no futebol e, mais ainda, em Copas do Mundo — com um saldo de taças obviamente favorável ao Brasil.
Efeito Messi
Mas, agora, para o pesquisador João Manuel Casquinha, o comportamento de Messi contribui para que a torcida brasileira se envolva mais com a seleção argentina.
“Uma coisa que o Messi não faz é ficar ostentando, indo pra balada. Enquanto isso, nossos jogadores fazem churrasco, comem carne com ouro… Então, o torcedor brasileiro vê que essa galera [os jogadores brasileiros] está cada vez mais distante dele”, opina Casquinha.
José Paulo Florenzano, professor de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-membro do conselho consultivo do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), entende que, apesar de histórica, a rivalidade entre o Brasil e a Argentina não se manifesta sempre da mesma maneira: tem altos e baixos, a depender do contexto.
“Dependendo da conjuntura esportiva, você tem um acirramento desse sentimento de antagonismo e de rivalidade. Em determinadas conjunturas, como agora em 2022, você tem a possibilidade de uma identificação transversal que atravessa as fronteiras do Estado-Nação”, avalia.
Para o especialista, essa identificação além fronteiras é responsabilidade de Messi. “A seleção argentina do Messi consegue transcender os limites nacionais da Argentina. Existe a identificação em vários países com a figura do Messi e o futebol que ele representa e joga”, pontua.
A política também tem um peso no debate. Neymar conquistou críticos de um lado e admiradores do outro ao declarar apoio a Jair Bolsonaro (PL) na campanha presidencial de 202.
“Neymar também tem admiradores no mundo inteiro pelo futebol exuberante que joga. Mas acredito eu que hoje seja muito mais fácil para um brasileiro torcer para a Argentina do Messi do que o inverso, um argentino se identificar com o Brasil do Neymar”, opina Florenzano.
O antropólogo acha que o estilo de Messi é mais agregador a torcedores não argentinos do que o de Diego Maradona — que, embora fascinante, era visto como rebelde e, por vezes, controverso.
Num documentário recente da Netflix, lançado pouco antes da Copa do Mundo, Messi fez uma espécie de discurso de motivação para os jogadores da Seleção Argentina, falando sobre a importância da oportunidade de vencer no Maracanã a final da Copa América contra o Brasil, em 2021.
Ele não citou a rivalidade e buscou colocar o foco no próprio time. “Já sabemos quem é a Argentina e quem é o Brasil. Não quero falar sobre isso. Formamos um time lindo. Vamos levantar essa copa, vamos levá-la para a Argentina para desfrutar com nossas famílias, com nossos amigos, com as pessoas que sempre apoiaram a Argentina”, disse.
Essa foi a conquista mais importante que a seleção liderada por Messi conquistou para a Argentina até a disputa do mundial de 2022 — e um momento crucial também para mudar a percepção dos torcedores argentinos a respeito de Messi, até então admirado, mas visto como alguém que trazia mais conquistas ao times europeus do que à Seleção Argentina.
Mas qual foi o sentimento predominante na Argentina, quando o Brasil foi eliminado?
Algo de ‘alívio’ foi detectado em alguns torcedores argentinos. “O Brasil seria um competidor muito difícil pela fortaleza de seu futebol”, explicou um dos comentaristas esportivos do canal 13, de Buenos Aires.
Nas redes sociais, circulou imagem atribuída à TV Crónica, que costuma exibir títulos originais com letras maiúsculas na sua tela, dizendo: “Lá se vai o avião brasileiro (com os jogadores)”.
Um comentárista disse que a eliminação significava “um gigante a menos para enfrentar” — talvez sem imaginar que a seleção de seu país contasse agora com o apoio de setores da torcida do próprio Brasil.
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