- Author, Luís Barrucho
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @luisbarrucho
A microbiologista e divulgadora científica Natalia Pasternak provocou polêmica em seu novo livro ao descrever a psicanálise como “uma pseudociência”.
A afirmação gerou reações acaloradas nas redes sociais, contra e a favor da especialista, que se tornou conhecida do grande público por seus comentários durante a pandemia de covid-19.
Em Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério (ed. Contexto), Pasternak e o jornalista Carlos Orsi também criticam a homeopatia, astrologia e acupuntura, chamando-as de “falsificações da ciência”.
Mas a polêmica levantada por Pasternak sobre a psicanálise não é nova e vem, há mais de um século, colocando em lados opostos seus apoiadores e defensores.
Em artigo no jornal Folha de S.Paulo, Pasternak e Orsi afirmaram que “muitos dos ataques são ou deliberadamente mentirosos, ou revelam um grau constrangedor de ignorância por parte dos “críticos””.
Alguns especialistas afirmam que o próprio trabalho de Freud era inteiramente pseudocientífico por natureza e que os defensores de sua teoria pouco fizeram para revisá-la.
Outros defendem que a eficácia da psicanálise pode ser comprovada cientificamente.
Também destacam que ela teve uma tremenda influência na cultura ocidental e, apesar de todas as críticas, ainda conta com muitos adeptos em todo o mundo (ler mais abaixo).
Freud, o pai da psicanálise
Desde seus primórdios, nos primeiros anos do século 20, tem havido discussões exaltadas sobre se a psicanálise é mesmo uma ciência.
Mas, antes de mergulhar nessa polêmica, é preciso primeiro entender o que é a psicanálise, método para tratar transtornos mentais e teoria que explica o comportamento humano.
O austríaco Sigmund Freud (1856-1939) é considerado seu pai fundador.
Freud acreditava que os acontecimentos de nossa infância têm grande influência em nossa vida adulta, moldando nossa personalidade.
Por exemplo, para explicar de forma simplificada, a ansiedade originada de experiências traumáticas no passado de uma pessoa é escondida da consciência e pode causar problemas na idade adulta (neuroses).
Assim, quando explicamos nosso comportamento para nós mesmos ou para os outros (atividade mental consciente), raramente damos um relato verdadeiro de nossa motivação.
Freud dedicou-se, portanto, a tentativas de penetrar essa “camuflagem”, muitas vezes sutil e elaborada que obscurece a estrutura e os processos ocultos da nossa personalidade.
Ele insistia que suas postulações formavam a base da ciência da psicologia.
Ou seja, para Freud, a psicanálise era uma “ciência natural”.
Por outro lado, dizia sobre si mesmo: “A verdade é que não sou um homem da ciência, absolutamente. Sou apenas um conquistador, um aventureiro”.
Popper e o ‘falsificacionismo’
Um dos principais críticos das teorias de Freud foi o austro-britânico Karl Popper (1902-1994).
Um dos mais influentes filósofos do século 20, Popper considerava a psicanálise uma pseudociência por produzir hipóteses que não podem ser refutadas empiricamente, chegando a compará-la à astrologia.
Ele defendia que a ciência se diferencia da pseudociência ou da superstição, porque hipóteses científicas podem se mostrar falsas por meio da observação e de experimentos.
Trata-se do “falsificacionismo de Popper”: segundo ele, qualquer afirmação científica baseada em observação jamais poderá ser considerada uma verdade absoluta ou definitiva.
Popper sustentava que as teorias científicas são caracterizadas por implicar previsões que observações futuras podem revelar ser falsas.
Por exemplo: no passado, por desconhecer a existência de cisnes negros, acreditava-se que “todo cisne era branco”.
Mas, para Popper, não importa se todos os cisnes observados eram brancos; basta o aparecimento de um único cisne negro para desmontar essa teoria.
Por consequência, não podemos afirmar cientificamente que “todos os cisnes são brancos”.
Quando as teorias se mostram falsas por tais observações, os cientistas podem responder revisando a teoria ou rejeitando a teoria em favor de uma rival ou mantendo a teoria como está e mudando uma hipótese auxiliar.
No caso da psicanálise freudiana, Popper argumentava que ela, assim como outras teorias que ele descreve como não científicas, não fazem nenhuma previsão que possa permitir que sejam “falsificadas”.
Neste sentido, por não haver previsões precisas, essas teorias acabam sendo criadas para se adequar e fornecer uma suposta explicação de qualquer comportamento observado.
Criança na água
Para ilustrar seu ponto, Popper dá como um exemplo dois homens, um que empurra uma criança na água com a intenção de afogá-la e outro que mergulha na água para salvá-la.
Segundo ele, a psicanálise pode explicar essas duas ações aparentemente contraditórias.
No primeiro caso, o psicanalista pode afirmar que a ação foi impulsionada por um componente reprimido do id (inconsciente) e, no segundo caso, que a ação resultou de uma sublimação bem-sucedida desse mesmo tipo de desejo pelo ego e pelo superego.
Em outras palavras: para Popper, independentemente de como uma pessoa realmente se comporta, a psicanálise pode ser usada para explicar tal comportamento.
Isso, por sua vez, nos impede de formular quaisquer experimentos cruciais que possam servir para “falsificar” a psicanálise.
Para Popper, a psicanálise era “simplesmente não testável, irrefutável. Não havia comportamento humano concebível que a contradissesse”.
“O ponto é muito claro. Nem Freud nem Adler (Alfred Adler, psicólogo austríaco fundador da psicologia do desenvolvimento individual) excluem a ação de qualquer pessoa em particular de qualquer maneira particular, quaisquer que sejam as circunstâncias externas. Se um homem sacrificou sua vida para resgatar uma criança que se afogava (um caso de sublimação) ou se ele assassinou a criança por afogamento (um caso de repressão) não poderia ser previsto ou excluído pela teoria de Freud”, escreveu ele em 1974.
“Eu pessoalmente não duvido que muito do que eles (Freud e Adler) dizem é de considerável importância e pode muito bem desempenhar seu papel um dia em uma ciência psicológica que pode ser testada”.
“Mas isso quer dizer que aquelas ‘observações clínicas’ nas quais os analistas ingenuamente acreditam confirmar sua teoria não são nada diferentes do que as confirmações diárias que os astrólogos encontram”, acrescentou.
Popper, por outro lado, assinalou que muitas vezes existem propósitos legítimos para postular teorias não científicas.
Ele argumentava que as teorias que começam como não científicas podem mais tarde se tornar científicas, à medida que determinamos métodos para gerar e testar previsões específicas com base nessas teorias.
Um exemplo citado por ele é a teoria de Nicolau Copérnico (1473-1543) de um universo centrado no sol, que inicialmente não produziu previsões potencialmente falsificadas e, portanto, não teria sido considerada científica pelos critérios de Popper.
No entanto, astrônomos eventualmente determinaram maneiras de testar a hipótese de Copérnico, tornando-a científica.
Criticando o crítico
Ao longo dos anos, a validade científica da psicanálise foi posta em xeque por outras figuras proeminentes como o psicólogo Steven Pinker, o linguista Noam Chomsky, o biólogo evolutivo Stephen Jay Gould e o físico Richard Feynman.
Alguns mergulharam fundo na obra de Freud, dissecando o que consideravam suas deficiências, como o filósofo alemão-americano Adolf Grünbaum (1923-2018).
Seu livro, Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, de 1984, o tornou mundialmente famoso.
Na época, a obra foi encarada como um ponto de inflexão no debate sobre a psicanálise e considerada por alguns críticos de Freud como uma “obra-prima”.
Curiosamente, Grünbaum era um crítico de Popper antes de se tornar um crítico de Freud.
Na verdade, foi por meio de Popper que Grünbaum passou a se interessar por Freud.
Isso porque, tanto na teoria quanto na prática, insistia Grünbaum, Freud compreendeu e aceitou a lógica da falseabilidade de Popper.
“O primeiro ímpeto para minha investigação sobre os méritos intelectuais do empreendimento psicanalítico”, escreve ele, “veio de minhas dúvidas sobre a filosofia da ciência de Karl Popper”, em alusão ao falsificacionismo.
Ele também defendia que o pai da psicanálise praticava o que pregava: em várias ocasiões, Freud realmente desistiu de ideias porque elas se mostraram empiricamente insustentáveis.
Em outras palavras, na opinião de Grünbaum, Freud agiu exatamente como a teoria popperiana diz que um cientista deveria fazer, abandonando as posições teóricas quando elas eram contrariadas pelos fatos.
Mas, segundo ele, o problema da psicanálise estava no que chamava de “Tally Argument” (“argumento da adequação”).
Resumidamente, Grünbaum criticava Freud por acreditar que apenas a psicanálise podia produzir efeitos terapêuticos.
Segundo ele, os pacientes não são fontes confiáveis para descobrir o que realmente “funcionou” para curar seus transtornos.
Outro lado
Muitos especialistas defendem que algo merece ser considerado uma ciência quando há uma consideração predominante pelos dados, que estão disponíveis para todas as partes interessadas, e quando a teoria é orientada por dados e muda em resposta a novas observações.
Essa é uma visão mais tradicional. Segundo esse ponto de vista, o progresso da teoria é cumulativo, e o modelo original pode servir de base para modelos mais novos.
As alegações também devem ser baseadas em evidências e não em autoridade.
“A psicanálise, por outro lado, é baseada principalmente em postulações pseudocientíficas que são inerentemente não falsificáveis”, diz Anna Järvinen, psicóloga clínica, neuropsicóloga e terapeuta de tradição não psicanalítica/psicodinâmica em artigo no The Skeptic, revista britânica de ceticismo sem fins lucrativos.
Em entrevista à BBC News Brasil, ela diz que as reações inflamadas sobre se a psicanálise é ou não ciência “se devem, pelo menos em parte, ao fato de que, apesar de suas deficiências bastante debatidas e delineadas, a psicologia continua a ter uma presença bastante proeminente, não menos no domínio clínico”.
“Muitos acham isso desconfortável e francamente ameaçador, possivelmente devido ao fato de que a teoria de Freud não é fácil de entender no sentido intelectual (e muito poucos leram seus textos em primeira mão), e toca em áreas muito sensíveis”, acrescenta ela, que tem PhD em Psiciologia no Goldsmiths College, da Universidade de Londres, no Reino Unido.
Segundo Järvinen, “a psicanálise é extremamente poderosa, com o paciente sendo frequentemente colocado na posição de objeto, e os tratamentos costumam ser vistos como misteriosos e até sombrios”.
“Por serem de difícil compreensão, os psicanalistas às vezes são vistos como “elitistas” nas fileiras de diferentes profissionais da saúde mental. Não ajuda que existam alguns grupos ou cultos de praticantes que assumem uma atitude muito acrítica em relação ao trabalho de Freud”, completa.
“Os fatores acima mencionados tornam a teoria de Freud altamente provocadora/evocadora emocionalmente, e as pessoas respondem naturalmente com uma atitude defensiva”.
“Além disso, nesta era do modelo médico e tratamentos baseados em evidências, muitos possivelmente acham incompreensível por que se dá atenção à psicanálise. No entanto, o tratamento continua a beneficiar muitos”, conclui.
Apesar de, assim como muitos psicólogos, Järvinen não considerar a psicanálise como uma ciência, ela ressalva que tratamentos médicos mais comprovados cientificamente nem sempre “atingem os níveis mais profundos da psique e carecem da flexibilidade necessária”, diz ela.
“Precisamos de uma ampla variedade de opções de tratamento para atender à enorme heterogeneidade da população humana e seus vários sintomas, e indiscutivelmente a psicanálise é uma opção útil”, destaca.
Järvinen também lembra ser “crucialmente importante” colocar a teoria de Freud em seu contexto cultural adequado — “ele viveu e foi criado no mundo sexista, racista e imperialista do século 19, na privilegiada Viena, e isso com certeza se reflete em sua teoria; no entanto, ele provavelmente estaria atualizando sua teoria se pudesse testemunhar a evolução da psicologia”.
“No entanto, a meu ver, a contribuição de Freud para o campo da psicologia é irrefutável”, conclui ela.
Conceito ‘não uniforme’
Para Érico Andrade, psicanalista, filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a concepção de ciência “não é uniforme”.
“A própria concepção da ciência vai variar ao longo da história. O ataque à psicanálise é pautado num modelo de evidência científica estritamente de ordem empírica, demonstrável em termos de observação laboratorial. A ideia de empiria também está ligada nesse contexto a algo que podemos mostrar em termos físicos, ou seja, a evidência é de ordem material”, assinala.
“Com o advento das Ciências Humanas, tivemos uma reelaboração da própria concepção de evidência. A evidência empírica não está mais no plano material, mas na observação do comportamento humano a partir de análises sociológicas, antropológicas, etc. A psicanálise deixa de orbitar em torno da ligação com a psiquiatria e neurociência e passa a dialogar mais com as Ciências Humanas”, acrescenta.
“Quando se diz que a psicanálise não é uma ciência, há um desentendimento da produção das Ciências Humanas. E, mais grave, quando se fala que a psicanálise é uma pseudociência, coloca-se a ideia de que seus efeitos são calcados em coisas mágicas e misteriosas, que não tem a ver com a reflexão que a própria psicanálise propõe”.
Segundo Andrade, a psicanálise não propõe ser “a única verdade, uma solução transcendental, como mecanismos imateriais, tampouco uma substância física possa mudar o ser humano”.
“A base da psicanálise é a ideia de que, por um processo de análise pessoal, chegar a compreender melhor nosso desejo e isso tem implicações em nossa vida, porque parte do nosso sofrimento está ligado a questões psíquicas e não de ordem material.”
Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, Ana Cláudia Zuanella, diretora da Febrapsi (Federação Brasileira de Psicanálise), defendeu a psicanálise como uma ciência.
“Não uma ciência dura, que implica refutações por meio de replicabilidade, mas uma ciência que engloba um conjunto de conhecimentos solidamente estabelecidos através de pesquisas clínicas e infindáveis debates teóricos”, afirmou ela.
Na opinião de Zuanella, a psicanálise “tem incessantemente mostrado sua eficácia, não no interior dos laboratórios, mas dentro do sujeito”.
Problemas em metodologia
Para Martin Hoffmann, pesquisador-associado do Departamento de Filosofia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, “mesmo que o próprio Freud considerasse a psicanálise uma teoria científica válida, sua própria metodologia de pesquisa enfrenta sérios problemas”.
“Mas — ao contrário da proeminente crítica de Popper — não se pode negar que muitas reivindicações da teoria psicanalítica são empiricamente testáveis e que, desde a década de 1950, um notável corpo de evidências que atende aos padrões de pesquisa científica foi gerado com o objetivo de confirmar as reivindicações teóricas centrais de psicanálise e a eficácia da terapia psicanalítica”, escreveu ele, no artigo “Psicanálise como ciência” do livro Manual de Filosofia da Medicina, publicado em 2017.
“Portanto, em um sentido processual ou metodológico, a psicanálise de hoje é sem dúvida uma ciência”.
“Mas, ao mesmo tempo, é uma questão em aberto se o esforço científico para confirmar as afirmações centrais da psicanálise será bem-sucedido”.
Fonte: BBC
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