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‘Proud Maroons’: torcedores que o Catar não quer

Antes e, agora, durante a Copa do Mundo 2022, no Catar, um dos assuntos mais comentados e de maior repercussão é a receptividade e o tratamento à população LGBTQIA . Nos meses anteriores ao mundial, muitas eram as perguntas sobre como os torcedores gays iriam ser recebidos em um país conhecido internacionalmente por uma política totalmente anti-LGBT. 

Foi neste cenário que, há 35 anos, nasceu o médico Nasser Mohamed, que se tornaria o primeiro catari a se assumir gay publicamente. Desde 2015, após concluir a faculdade de medicina, ele aproveitou a oportunidade de fazer residência (pós-graduação para médicos obterem título de especialista em determinada área) em São Francisco, nos Estados Unidos, para buscar asilo. A partir disso, Nasser tem procurado formas de dar voz à população LGBT que vive no Catar.

O médico criou uma organização sem fins lucrativos, a Alwan Foundation, e o grupo de torcedores de futebol LGBTQIA do Catar, o ‘Proud Maroons’ (The Maroon é como é chamada a seleção catari). “A ideia do ‘Proud Maroons’ é mostrar um grupo de torcedores gays que não pode ter cidadãos do nosso próprio país, porque, se eles se juntarem a nós, eles vão para a cadeia”, disse Nasser. Ser homossexual, no país onde está acontecendo o maior evento futebolístico do mundo, é crime com pena que pode variar de três a cinco anos de prisão e até pena de morte, de acordo com o artigo 296 do código penal.

Em entrevista exclusiva ao correspondente da Folha de Pernambuco na Copa do Mundo, Victor Pereira, o médico, que nasceu em uma zona rural do interior do país árabe, falou sobre a decisão de deixar o país. “No Catar, onde cresci, a família e a sociedade são peças muito importantes para a nossa identidade. Foi muito difícil saber que eu sou uma laranja podre para eles e que eu não posso jamais estar na mesma cesta que eles. Naquela altura, eu senti como se minha vida tivesse acabado. E acabou. De fato, acabou. Um capítulo da minha vida se encerrou ali”.

Não foi um caminho fácil para Nasser, que se assumiu gay publicamente em 2015, concedendo entrevista para a TV britânica BBC. A declaração teve repercussão também na sucursal árabe da empresa, bastante assistida no Catar. Desde então, ele não tem contato algum com a família. “Por causa dessa exposição, ninguém mais quer ter qualquer tipo de relação pública comigo. Porque eles têm medo. Tem algumas pessoas da minha família que eu sei que estão com muita raiva de mim agora e sequer têm coragem de ligar para brigar comigo, porque eles têm muito medo de manter qualquer tipo de contato”, garantiu.

Através do grupo Proud Maroons, Nasser iniciou uma petição direcionada à Fifa e ao Comitê Organizador Local da Copa do Mundo para reafirmar que “amor não é um crime”. A petição, que tem como meta 100 mil assinaturas, conta com 90,8 mil até o fechamento desta reportagem.

Além da petição, a Alwan Foundation também está arrecadando donativos para serem destinados à luta por direitos LGBT no Oriente Médio. “Estamos trabalhando com diretores de filmes e documentários em Londres e na Alemanha, além do Observatório dos Direitos Humanos (HRW), conectando vítimas de tortura do governo catari diretamente aos pesquisadores”. 

Após iniciar esses projetos, o médico catari, mesmo vivendo a mais de 12 mil quilômetros de distância da terra natal, recebe mensagens de homossexuais que continuam no Catar e, diariamente, posta os relatos nas redes sociais. “Eles estão com medo, não podem ser eles mesmos, se sentem isolados, como se não tivessem esperança na vida. São completamente oprimidos. Essa é a realidade das pessoas LGBT que vivem no Catar. Isso se você tiver sorte. Se você não tiver sorte, você é processado”. 

Quando perguntado se sente saudades do Catar, Nasser é enfático: “Claro! A vida não é tudo preto e branco. Quando você cresce, você perde toda a memória afetiva da sua infância? Claro que sinto saudades. É parte de quem sou. Mas é algo que eu nunca mais posso ter de novo. E isso foi muito difícil aceitar”.

Leia a entrevista exclusiva na íntegra:

Pergunta – Dr. Nas, você nasceu no Catar, certo? Por que saiu?

Resposta – Sim, eu nasci e cresci no Catar, em uma zona rural ao sul de Doha. Eu vivi lá até completar 24 anos. Minha família inteira continua lá. Eu deixei o Catar porque sou uma pessoa LGBT e é muito difícil e perigoso ser uma pessoa LGBT lá. Então, eu saí após terminar a faculdade de medicina, vim fazer residência [programa de treinamento intensivo de pós-graduação para que um médico obtenha o título de especialista em determinada área] nos Estados Unidos e usei essa oportunidade para sair e nunca mais voltar.

P – Sua família continua no Catar? Vocês nunca mais se encontraram desde que você foi morar nos EUA?

R – A última vez que visitei o Catar foi em 2014, mas eu iniciei uma batalha judicial para conseguir asilo nos EUA em 2015 e foi quando eu me assumi para a minha família. Essa conversa não correu bem e, para ser bem sincero, eles não tinham condições nem ferramentas para sequer entender o que é ser uma pessoa LGBT. O Catar, como sociedade, não apenas não tolera as pessoas LGBT, eles impedem sistematicamente as pessoas de sequer falar a respeito deste assunto. Você não pode ver na TV, não existe nenhum material educativo sobre isso, não está na mídia, na escola… não existe em canto nenhum. Meus pais, por exemplo, não faziam ideia do que fazer com um filho LGBT. Eles não sabem e não tem para quem perguntar. Acredito que o sistema falhou conosco, porque quando isso acontece com a gente – e é algo que acontece o tempo inteiro, em todos os lugares do mundo – não existem recursos que auxiliem a mim ou à minha família. 

P – Quando você decidiu abandonar o Catar? E como a sua família reagiu a isso?

R – Existem todas essas peças que constroem a essência do que você é, como um ser humano. No Catar, onde cresci, a família e a sociedade são peças muito importantes para a nossa identidade. Foi muito difícil saber que eu sou uma laranja podre para eles e que eu não posso jamais estar na mesma cesta que eles. Naquela altura, eu senti como se minha vida tivesse acabado. E acabou. De fato, acabou. Um capítulo da minha vida se encerrou ali. Mas, também, naquele momento específico, de muita incerteza sobre o que iria acontecer, foi um tiro no escuro. Mas, foi a chance que eu tanto queria porque eu não conseguia ver um outro caminho, onde eu pudesse continuar em casa. Foi solitário, eu não conhecia, naquela época, ninguém do Catar que tivesse feito a mesma coisa. Na verdade, eu nunca ouvi falar em um catari LGBT que tenha emigrado. Até este ano, quando me assumi publicamente.

P – Você ainda conversa com alguém da sua família?

R – Não. Eu me assumi publicamente na BBC [rede de TV britânica], em inglês e em árabe. A BBC Árabe é muito vista no Catar e, por causa dessa exposição, ninguém mais quer ter qualquer tipo de relação pública comigo. Porque eles têm medo. E isso inclui a minha própria família. Tem algumas pessoas da minha família que eu sei que estão com muita raiva de mim agora e eles sequer têm coragem de ligar para gritar comigo, porque eles têm muito medo de manter qualquer tipo de contato. Então, não, não há nenhum tipo de comunicação.

P – Como foi a ideia de criar os ‘Proud Maroons’?

R – Quando as pessoas falam sobre direitos LGBT durante a Copa do Catar, eles falam sobre ideias. Eles não falam sobre pessoas. Eu queria parar de falar sobre ideias. “Você acha que os direitos LGBT existem no Catar? Pertencem ao Oriente Médio?” Não! Esqueçam as ideias por um momento e comecemos a falar sobre as pessoas. Para mim, como uma pessoa que precisava viver, que precisava estar segura, eu tive que sair do Catar. Esta foi a minha verdade, foi a minha jornada. Porque minha casa não era segura e isto é um fato. E para eu seguir esse caminho e sair, era necessário receber o asilo dos Estados Unidos, as pessoas precisavam acreditar que eu corria risco, realmente, de ser processado. Antes daquele ano (2015), não havia notícias sobre cataris LGBT e o que acontece com eles. E, quando eu iniciei o processo de pedir asilo, eu tive que lutar para as pessoas acreditarem o que acontece. Agora, voltando para 2022, você senta lá e começa a assistir o que está rolando e só tem marketing dizendo que estão “trazendo a Copa do Mundo para casa”, “o mundo está vendo que o Catar está recebendo bem o mundo inteiro” e, indiretamente, estão dizendo que todo mundo é bem-vindo lá, o que não é verdade. Essa mensagem isolada é perigosa porque afeta o caminho que eu trilhei, que eu tive que sair. Então, eu decidi me assumir publicamente para ser porta-voz de histórias reais. Não apenas a minha história, mas também histórias de pessoas do Catar. Desde que isso aconteceu, muitas pessoas me procuraram, muitas continuam no Catar, algumas outras conseguiram asilo em outros países. O que estamos tentando fazer é trazer essas histórias à tona. Estamos trabalhando com diretores de filmes e documentários em Londres e na Alemanha, com o Observatório dos Direitos Humanos, conectando vítimas de tortura do governo catari diretamente aos pesquisadores, para que eles possam ouvir diretamente deles. Enquanto isso, eu quero continuar conscientizando as pessoas durante a Copa do Mundo e foi por causa disso que a ideia de criar o grupo ‘Proud Maroons’ nasceu.

A ideia era comprimir tudo o que eu queria falar em poucos segundos, pois não temos muito tempo de atenção das pessoas. A ideia era mostrar para o mundo que os torcedores LGBT são os mais indesejados no Catar e, dentre eles, quem lidera a lista somos nós, os torcedores LGBT do próprio Catar, que não podemos ser vistos. 

P – Sobre as pessoas homossexuais que continuam vivendo no Catar: como é o seu contato com elas?

R – Durante a Copa do Mundo, estou postando um vídeo meu por dia lendo as histórias que recebo dessas pessoas LGBT que vivem no Catar. Elas me mandam todos os dias. Então, vocês podem saber diretamente delas. Tem gays, lésbicas, mulheres e homens transgênero. Você consegue ouvir diferentes histórias diretamente deles. Eles estão com medo, eles não podem ser eles mesmos, se sentem isolados, se sentem como se não tivessem esperança na vida, são completamente oprimidos. Essa é a realidade das pessoas LGBT que vivem no Catar. Isso se você tiver sorte. Se você não tiver sorte, você é processado.

P – Existe algo da sua terra natal que você sinta saudades?

R – Claro! A vida não é tudo preto e branco. Quando você cresce, você perde toda a memória afetiva da sua infância? Claro que sinto saudades. É parte do que sou. Mas é algo que eu nunca mais posso ter de novo. E isso foi muito difícil aceitar. É a minha vida, a minha jornada. Ou eu tenho aquelas coisas ou eu tenho a mim mesmo. Não dá para ter as duas coisas.

P – Como você espera que seja o resultado de todo esse movimento que você tem liderado?

R – Eu sei que é difícil no Catar. Eu nasci e cresci lá. Eu nasci em um mundo em que eu não consigo imaginar uma realidade lá em que eu seja quem eu sou hoje. Talvez, eu tenha tido sorte, de poder sair, me formar. Mas, sabe o que eu realmente penso? A coisa mais forte que me faz estar aqui é a esperança. Mesmo quando eu não podia ver nada que me tirasse daquele lugar, eu apenas tinha esperança de que minha vida pudesse ficar melhor um dia. Aí, você acorda todos os dias e, porque você tem esperança, você sai buscando formas todos os dias. Agora, é o que todo mundo pode fazer pelas pessoas no Catar. É o mínimo que o mundo pode fazer: dar a eles esperança. Que, talvez, eles tenham uma vida melhor no futuro. Qualquer forma que você possa inspirar alguém, dizer que a vida dessas pessoas importa, que talvez o que a pessoa é hoje não a favoreça, mas tudo isso pode mudar e precisamos continuar esperançosos de que vá mudar, pois no momento que pararmos de acreditar nisso, paramos de buscar formas para que, de fato, mude. E aí é quando você, verdadeiramente, perde.

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Fonte: Folha PE

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