- Author, David Robson
- Role, BBC Business
Quase todas as pessoas concordam que certas profissões inspiram reverência.
Veteranos de guerra, bombeiros, profissionais da saúde e professores garantem nossa segurança, salvam nossas vidas e cultivam as gerações futuras. Por isso, não surpreende que nós os chamemos de “heróis” — uma palavra que evoca a força e a abnegação que parecem evidentes nas responsabilidades diárias desses profissionais.
O entusiasmo desses sentimentos pode ser bem recebido, mas pesquisas recentes indicam que o rótulo de herói também é carregado com premissas contraproducentes sobre as necessidades e ambições pessoais desses trabalhadores.
A maioria das pessoas considera, por exemplo, que os heróis simplesmente não se importam muito com questões como o pagamento justo pelo trabalho que eles oferecem.
“Esta é uma clara falácia da lógica e do raciocínio dedutivo”, explica o pesquisador em pós-doutorado Matthew Stanley, da Escola de Negócios Fuqua da Universidade Duke, nos Estados Unidos.
E as consequências para o mercado de trabalho podem ser sérias. As pesquisas de Stanley indicam que a “heroificação” pode reduzir a remuneração dos profissionais e levar as pessoas a ignorar políticas que resultem em más condições de trabalho.
“Nós nos preocupamos menos com o mau tratamento se as pessoas exploradas forem ‘heróis'”, afirma Stanley.
Faca de dois gumes
A inspiração de Stanley para sua pesquisa veio dos profissionais da saúde, durante os primeiros estágios da pandemia de covid-19.
Muitas pessoas do seu círculo social, incluindo sua esposa, lutavam contra a sobrecarga de trabalho. Elas sentiam que não estavam recebendo o apoio necessário.
“Os políticos proclamavam o ‘rótulo de herói’, como elogio e reconhecimento, mas tudo parecia muito vazio”, ele conta.
Stanley é psicólogo e começou a imaginar se a própria ideia do herói altruísta poderia fazer com que suas necessidades fossem ignoradas. Se confirmado, isso influenciaria as condições em muitas outras profissões, além da medicina.
Em conjunto com o professor Aaron C. Kay, da Escola de Negócios Fuqua, ele projetou uma série de estudos para avaliar as premissas das pessoas sobre profissões “heroicas”. O resultado foram dois estudos, um dos quais foi publicado no Journal of Personality and Social Psychology no ano passado.
Em um deles, quanto mais os participantes consideravam os educadores altruístas, menos eles se opunham a uma política teórica que reduziria o salário dos professores.
Nas duas pesquisas iniciais, Stanley e Kay confirmaram que as pessoas consideram os veteranos de guerra como cidadãos muito mais heroicos do que a média americana. Esta impressão está ligada à percepção de altruísmo e sacrifício pessoal.
“As pessoas pensam neles em termos incrivelmente positivos — elas querem tê-los como amigos, colegas de trabalho e vizinhos”, explica Stanley. “Eles formam o grupo dos heróis por excelência.”
Em seguida, os psicólogos examinaram as percepções das pessoas sobre os empregos que os veteranos deveriam buscar depois de deixarem as forças armadas.
Em diversos questionários, os participantes consideraram que os veteranos se enquadrariam melhor em cargos que envolvessem o serviço a outras pessoas, como captadores de recursos, paramédicos ou cuidadores domiciliares, em detrimento de empregos com maior remuneração e associados a maior interesse próprio, como banqueiros privados ou corretores de seguros.
Stanley e Kay observaram respostas muito similares quando solicitaram aos participantes que considerassem como os veteranos se enquadrariam em organizações específicas.
O resultado foi que os participantes da pesquisa consideraram que alguém vindo da área militar seria mais apropriado para um emprego na organização Habitat for Humanity (que ajuda a construir casas para famílias de baixa renda) do que no banco multinacional de investimentos Goldman Sachs.
Basicamente, os pesquisadores concluíram que reforçar o estereótipo do herói aumenta o tamanho do efeito. Quando os participantes observavam um logotipo dizendo “contrate nossos heróis” ao lado dos seus questionários, por exemplo, eles eram ainda mais propensos a endossar o trabalho beneficente para os veteranos de guerra.
É claro que alguns veteranos, de fato, preferem um trabalho com menor remuneração que envolva servir aos demais, mas existe uma grande variação na preferência das pessoas.
Stanley suspeita que essas premissas estruturais possam incentivar injustamente os indivíduos para que sigam profissões que atendam ao estereótipo altruísta.
É fácil imaginar, por exemplo, como o estereótipo do herói pode influenciar o aconselhamento de carreira que eles recebem ou as decisões de contratação dos empregadores, fazendo com que eles tenham maior possibilidade de entrar nessas profissões, em detrimento de outros setores.
Abertura à exploração
O segundo estudo de Stanley e Kay observou as formas em que a heroificação pode incentivar a exploração no ambiente de trabalho em muitos campos diferentes, como o magistério, a enfermagem, a assistência social e o setor policial.
Solicitou-se aos participantes, em primeiro lugar, que avaliassem se o trabalhador típico de cada profissão era um herói, em uma escala de um (com certeza, não) a sete (definitivamente, sim). Em seguida, eles precisavam estimar a probabilidade de que aquela pessoa se apresentasse como voluntário para trabalhar um dia a mais sem remuneração.
Como era esperado, as respostas dos participantes foram correlacionadas. Quando os participantes consideravam uma profissão como heroica, eles tinham expectativas muito maiores de que os profissionais sacrificariam seu dia de descanso sem pagamento.
Os experimentos finais dos pesquisadores estudaram a oposição dos participantes a políticas que prejudicariam os direitos dos profissionais. O rótulo de herói reduziria ou aumentaria a indignação das pessoas frente a notícias de cortes nos pagamentos dos professores, por exemplo?
Para descobrir, os psicólogos forneceram um texto detalhando uma política de corte dos orçamentos das escolas e pediram a eles que declarassem sua posição em escala de um (forte oposição) a sete (forte apoio). Em alguns casos, o texto era acompanhado de um desenho de professores vestidos com roupas de super-herói; em outros, os participantes observavam apenas o texto.
Talvez fosse de se esperar que o respeito natural que nutrimos pelos heróis diminuiria o apoio aos cortes de pagamentos – mas não foi o que aconteceu.
Aparentemente, graças à associação com o altruísmo abnegado, os participantes tenderam a demonstrar menos oposição à política quando observaram a ilustração dos professores com capas de super-heróis.
“É de uma ironia brutal”, afirma Stanley. “A nossa veneração faz com que sejamos mais tolerantes quando eles são mal tratados.”
Palavras vazias
As descobertas de Matthew Stanley coincidem com as opiniões da professora de enfermagem em terapia intensiva Nicki Credland, da Universidade de Hull, no Reino Unido. Ela defende que a narrativa do herói pode prejudicar os conhecimentos e a educação dos seus colegas.
“[Ela sugere que] nós fazemos o nosso trabalho porque temos um chamado e um desejo inato de ajudar as pessoas”, explica ela. “Mas isso é tão válido sobre a enfermagem quanto sobre muitas outras profissões.”
“E causa impactos negativos quando queremos ser adequadamente remunerados pelos conhecimentos e técnicas que possuímos”, afirma a professora.
Outros psicólogos também elogiaram o novo estudo. A professora Sapna Cheryan, da Universidade de Washington em Seattle, nos Estados Unidos, afirma que os resultados estão totalmente de acordo com a literatura científica sobre “estereótipos positivos”.
Ela compara o estudo com a ideia de “pobre, mas feliz” – a noção de que pessoas com renda mais baixa, de alguma forma, vivem vidas mais simples e felizes, o que pode reduzir as preocupações das pessoas sobre as causas da desigualdade.
“Nós oferecemos um pouco de positividade às pessoas e, depois, nós as prejudicamos”, afirma ela.
Já o professor de comportamento organizacional Nadav Klein, do campus da Escola de Negócios Insead em Fontainebleau, na França, concorda que isso é possível, mas defende que será preciso ter mais pesquisas para demonstrar a influência da heroificação nos comportamentos do mundo real.
Como outros preconceitos, ele surge da nossa tendência de traçar conclusões a partir do “conhecimento insuficiente dos demais”, explica ele.
“As pessoas podem fazer premissas erradas com base em informações minúsculas”. Esta heurística é comum no raciocínio e na tomada de decisões pelos seres humanos – e pode ser muito difícil de corrigir.
A solução mais óbvia pode ser desestimular o uso do rótulo de “herói”, mas Stanley acredita que não seria algo viável. O termo é usado com tanta frequência para transmitir respeito que seria difícil convencer as pessoas a parar de usá-lo, segundo ele.
Ele acredita que a resposta pode estar no cultivo de maior consciência das muitas razões que podem fazer alguém escolher uma profissão “heroica”, além do desejo de ajudar os demais. Uma pessoa pode entrar para as forças armadas para passar pelo treinamento e educação específicos do emprego, por exemplo.
As pesquisas de Stanley concluíram que descrever esses motivos pode evitar que as pessoas façam premissas incorretas sobre suas escolhas de carreira subsequentes.
“Deveríamos ensinar ao público o que essas pessoas realmente querem, para que elas possam fazer menos uso de ‘caricaturas’ e estereótipos”, explica Stanley.
Na verdade, todos nós somos indivíduos multifacetados, com muitas necessidades e ambições paralelas. E reconhecer este fato não diminui necessariamente nosso respeito e admiração por aquelas pessoas que nos mantêm seguros, protegidos e saudáveis.
*David Robson é um escritor de ciências premiado. Seu próximo livro (em inglês) chama-se As Leis da Conexão: 13 Estratégias Sociais que Transformarão Sua Vida, a ser publicado em junho de 2024 pela editora Canongate (no Reino Unido) e pela Pegasus Books (nos Estados Unidos e no Canadá). Sua conta no X (antigo Twitter) é @d_a_robson. Ele também pode ser encontrado com o nome @davidarobson no Instagram e no Threads.
Fonte: BBC