• Margarita Rodríguez
  • BBC News Mundo

Crédito, Getty Images

O corpo da mulher moderna parece ser o epicentro de um intenso conflito de interesses. De um lado, sua capacidade reprodutiva. Do outro, sua saúde.

“Muitas mulheres dedicam grandes esforços para acompanhar o que lhes foi recomendado como sendo um estilo de vida saudável. Elas não fumam, eliminam os alimentos gordurosos da alimentação, diminuem os doces, dão preferência às escadas em vez dos elevadores e caminham até o trabalho.”

Mas, “quando ficam doentes com câncer de mama, problemas do coração ou osteoporose, elas frequentemente se culpam e perguntam ‘o que fiz de errado?'” É o que destaca o livro The Fragile Wisdom (“A sabedoria frágil”, em tradução livre), da antropóloga biológica Grazyna Jasienska.

É claro que essa culpa não tem razão de ser. A autora reconhece que existem práticas que são completamente prejudiciais e devem ser evitadas, mas as mulheres não deveriam sentir-se culpadas quando ficam doentes.

Na verdade, Jasienska declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) que existem muitos fatores que influenciam nesse processo – “poderia ser genético, poderia estar relacionado a algum tipo de interação ou a um acidente na nossa fisiologia”, por exemplo.

Jasienska é professora do Departamento de Epidemiologia e Estudos Populacionais da Universidade Jaguelônica, na Polônia, e tenta compreender por que a prevenção de doenças nas mulheres pode ser tão difícil.

Na descrição do seu livro, a Harvard University Press resume a essência daquilo que chama de conflito de interesses no corpo feminino: “a fisiologia das mulheres evoluiu para facilitar a reprodução e não para reduzir o risco de sofrer de enfermidades”. Por isso, a pesquisadora retorna até milhares de anos atrás em busca de respostas.

Prioridade

Jasienska destaca que “o passado nos permite compreender o que está acontecendo com as mulheres hoje em dia, em termos de saúde e fisiologia”.

Crédito, Arquivo pessoal/Grazyna Jasienska

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Um dos campos de pesquisa de Grazyna Jasienska é a ecologia evolutiva humana

Nosso legado evolutivo tem influência quando se fala em câncer e na reprodução. Ela defende que “em termos evolutivos, transmitir os genes para a geração seguinte sempre é mais importante do que estar saudável”.

“É claro que é necessário ter saúde para transmitir [os genes], é uma parte importante desse processo, é preciso sobreviver, encontrar um parceiro para a reprodução”, afirma ela, mas “o que for preciso” acontecer com o organismo para apoiar essa transmissão será “mais importante que qualquer coisa”.

Jasienska explica, por exemplo, que a probabilidade de que uma mulher venha a desenvolver câncer de mama aumenta proporcionalmente “à exposição ao longo da vida aos estrogênios”, que são hormônios importantíssimos para a gravidez. “Quanto mais alta for essa exposição, mais alto será o risco de sofrer câncer de mama.”

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Grazyna Jasienska busca explicações para os problemas de saúde que milhões de mulheres sofrem hoje a partir de uma abordagem evolutiva

“Alguém poderá perguntar: por que a seleção natural, que é o principal mecanismo para as mudanças evolutivas, não nos torna diferentes para deixarmos de produzir níveis tão altos de estrogênio, se ele é tão prejudicial para a saúde com relação ao câncer de mama?”

A resposta é simples: porque os estrogênios ajudam na reprodução.

“Não importa quais consequências prejudiciais terão os altos níveis de estrogênio ao longo da vida, desde que ele ajude na transmissão dos genes para a geração seguinte”, segundo ela. Ou seja, para a seleção natural, “não importa muito” a saúde das mulheres, mas sim a sua capacidade de reprodução.

Segundo o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, “sabe-se que os estrogênios, um grupo de hormônios sexuais femininos, são cancerígenos para os seres humanos. Embora esses hormônios tenham funções fisiológicas essenciais, tanto para as mulheres quanto para os homens, eles também foram associados a um maior risco de certos tipos de câncer.”

Aumento dos ciclos menstruais

A professora pesquisou as mudanças dramáticas do número de ciclos menstruais das mulheres. “Estima-se que, no que chamamos de Idade da Pedra, as mulheres tivessem apenas cerca de 100 ciclos ao longo da vida”, afirma ela.

Não se sabe ao certo qual é a razão. Acredita-se que os corpos das mulheres amadurecessem mais tarde, mas talvez também seja porque elas entravam na menopausa mais cedo.

“A primeira menstruação ocorria muito mais tarde do que ocorre com as mulheres agora. Não sabemos o quanto mais tarde, mas talvez com cerca de 16 anos”, explica Jasienska.

Além disso, nossas antepassadas tinham mais filhos, sendo que a gravidez e a lactação influenciam os períodos menstruais.

Por tudo isso, “as mulheres modernas têm cerca de 450 ciclos ao longo da vida, em vez de 100”.

“Essa diferença é imensa se você analisar a exposição aos estrogênios”, segundo a pesquisadora, pois esses hormônios possuem função reguladora do ciclo menstrual.

Jasienska explica que a forma de desenvolvimento desses ciclos também se alterou. O nível de produção de hormônios é mais alto que no passado, por exemplo.

“Com relação à exposição aos estrogênios e à vida moderna, o resultado é que temos mais ciclos e de qualidade diferente”, o que se traduz em “maior exposição aos hormônios”.

E, segundo a Sociedade Norte-Americana contra o Câncer, “as células de câncer de mama possuem receptores (proteínas) que se aderem ao estrogênio e à progesterona, ajudando-as a crescer”.

O custo

“Tudo terá custos relacionados. Se fisiologicamente houver foco na reprodução, haverá um custo”, segundo a professora.

O mesmo nível de energia dedicado à reprodução, por exemplo, não será atribuído a outras funções do próprio organismo. Isso pode prejudicar outros aspectos da saúde.

“Com esse investimento de energia na reprodução, o sistema imunológico será prejudicado. O risco de contrair infecções aumenta e, por isso, outros aspectos relacionados ao sistema imunológico serão afetados”, segundo a professora.

Ela prossegue: “de certa forma, você acumula danos ao longo dos anos reprodutivos porque você está nessa função. E, é claro, a seleção natural não se preocupa muito com as mulheres na etapa pós-reprodutiva.”

A este respeito, no seu artigo Costs of Reproduction and Ageing in the Human Female (“Custos da reprodução e envelhecimento nas mulheres”, em tradução livre), Grazyna Jasienska afirma o seguinte, em tradução livre:

“A reprodução das fêmeas humanas é exigente em termos de energia, nutrientes e ajustes metabólicos.

Por isso, é esperado que as mulheres que sofreram alto esforço reprodutivo como resultado de diversos eventos de reprodução envelheçam mais rápido. Mas a evidência dos efeitos negativos da reprodução a longo prazo não é conclusiva.

Muitos estudos documentaram que as mulheres que passaram por intensa reprodução apresentam maior risco de doenças relacionadas à idade. Nos seres humanos, como em qualquer outra espécie, a seleção natural favoreceu características benéficas para o sucesso reprodutivo, ainda que prejudiciais para a saúde, especialmente na velhice.”

A hipótese da avó

Mas a especialista destaca a chamada hipótese da avó, que defende que as mulheres, quando atingem a etapa em que não podem mais ter filhos e “não podem transmitir genes diretamente para as gerações seguintes”, de certa forma fazem isso ao ajudar seus filhos e netos a transmiti-los.

“Neste sentido, pode-se dizer que a seleção natural não nos mata imediatamente quando deixamos de ter capacidades reprodutivas porque ainda há um sentido evolutivo”, segundo ela.

“Em muitas espécies, as fêmeas vivem enquanto puderem reproduzir-se e conseguem fazê-lo até o final de suas vidas. Nós podemos viver muito mais [depois dessa etapa] e existem muitas discussões sobre isso do ponto de vista da biologia evolutiva”, explica Jasienska.

“Por que permanecemos vivas por tampo tempo se não somos capazes de transmitir genes, que é o propósito evolutivo da vida?”, questiona a pesquisadora. Para ela, a hipótese da avó é uma explicação. “Talvez as mulheres ainda tenham um papel na evolução.”

A alimentação dos ancestrais

Jasienska acredita que, embora o câncer também esteja relacionado ao estilo de vida moderno, existem outros fatores que podem intervir nessa doença. E o mesmo ocorre com outras enfermidades.

O livro da pesquisadora, The Fragile Wisdom, apresenta uma realidade: nós ouvimos diariamente como diferentes doenças podem ser evitadas com uma vida saudável. Mas, quando ficamos doentes, o sentimento de que fracassamos de alguma forma na tentativa de seguir as recomendações pode se tornar insuportável.

“O que é uma alimentação adequada?”, questiona Jasienska. “Algumas pessoas propõem a chamada dieta paleolítica. Mas a dieta paleolítica não existiu, porque havia uma imensa variedade de dietas, dependendo se era um clima frio, o deserto ou o litoral.”

“Existe a ideia de que, se comermos da mesma forma que fizeram nossos ancestrais, ficaremos saudáveis, magros e bonitos, mas isso não funciona porque eles comiam muitos tipos de alimentos e os seres humanos, de forma geral, evoluíram para comer muitas coisas”, segundo ela.

“Acredito que foi algo que aconteceu na evolução: não precisamos de uma dieta muito específica para sobreviver. Nós evoluímos para comer coisas muito diferentes e ficar bem. E isso é algo maravilhoso do nosso passado.”

Não procurar a perfeição

Jasienska ressalta que “somos apenas seres humanos, não podemos ser perfeitos. E não conhecemos essa perfeição porque algumas recomendações de saúde mudam com frequência.”

As dietas são um exemplo preciso dessas mudanças.

“As pessoas dizem que os ovos realmente fazem mal, mas depois um novo estudo indica que eles são bons. Sai um artigo que diz que o café é prejudicial e depois outro que garante que ele é perfeito e que, com três ou quatro xícaras por dia, a sua saúde vai melhorar”, explica ela.

“Muitas mensagens de saúde são bastante confusas”, enquanto outras são absolutamente claras e comprovadas: “se você fumar, você destrói sua vida e aí, sim, poderá culpar a você mesmo”.

Cuidar da nossa alimentação e fazer exercícios é importante. Mas é certo que, quando o assunto é saúde, tudo é muito complicado.

“Existem muitas interações, não é preciso tentar ser perfeito todo o tempo. Devemos cuidar de nós e não apenas por nós mesmas, mas por nossas famílias e amigos. Não queremos ser um encargo para ninguém. Seria bom ser ativo e saudável na velhice, mas, se não formos, isso não significa que seja nossa culpa. Nunca sabemos se poderia ser genético, devido a algum tipo de interação ou um acidente da nossa fisiologia”, explica Jasienska.

‘Nada faz sentido…’

Outro aspecto importante é a atividade física – um tema em que nossos ancestrais nos deixam para trás.

“É claro que a atividade física é ótima para a saúde”, segundo a pesquisadora. “Mas quanto deveríamos fazer? Ainda não sabemos. Existem muitas organizações que dirão três vezes por semana, algumas uns tantos minutos e outras recomendarão outra coisa.”

Mas tudo depende das necessidades e do estado de saúde de cada pessoa.

Em alguns dos seus artigos acadêmicos, Jasienska relembra a célebre frase do geneticista ucraniano Theodosius Dobzhansky: “nada tem sentido na biologia, a não ser à luz da evolução”. De fato, no artigo Public Health Needs Evolutionary Thinking (“A saúde pública precisa do pensamento evolutivo”, em tradução livre), a pesquisadora parafraseia Dobzhansky, dizendo: “nada na demografia e na saúde pública tem sentido, a não ser à luz da evolução”.

Ela acredita que “não podemos compreender realmente o funcionamento de nenhum organismo antes de aplicar o enfoque evolutivo”. Como indica a pesquisadora americana Laura G. Goetz em um artigo na revista científica Yale Journal of Biology and Medicine: “fascinante e educativo, The Fragile Wisdom deixa tantas perguntas quanto respostas, da melhor forma possível”.

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