- Author, Marina Rossi
- Role, Da BBC News Brasil em São Paulo
- Twitter, @marinarossi
Em uma entrevista de 2021 à emissora Fox, J.D. Vance, então candidato ao Senado americano pelo Estado de Ohio e, hoje, candidato a vice-presidente de Donald Trump, disse que os Estados Unidos estavam sendo governados por “mulheres sem filhos”, que ele chama de “cat ladies“.
Em português, a expressão pejorativa pode ser traduzida como “senhora dos gatos” e se refere a mulheres que vivem sozinhas, preferindo a companhia dos bichos de estimação à das pessoas.
Segundo Vance, essas mulheres seriam “infelizes com as próprias escolhas que fizeram e, por isso, querem tornar o resto do país miserável também”.
O ataque teve como alvo a vice-presidente Kamala Harris, e provável rival de Trump nestas eleições, a congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, e o secretário de Transportes dos EUA, o também Pete Buttigieg, o primeiro homossexual assumido em um cargo executivo, que foram nominalmente mencionados.
“É apenas um fato básico — você olha para Kamala Harris, Pete Buttigieg, AOC [Alexandria Ocasio-Cortez] —, todo o futuro dos democratas é controlado por pessoas sem filhos”, afirmou Vance ao apresentador Tucker Carlson.
“E como faz sentido entregarmos o nosso país a pessoas que não têm realmente interesse direto nele?”
O resgate do vídeo durante a campanha presidencial americana na semana passada causou diferentes reações.
Desde divertidas fotos de mulheres e seus felinos, a protestos mais contundentes, como o da atriz Jennifer Aniston.
“Realmente não consigo acreditar que isso vem de um potencial vice-presidente dos Estados Unidos”, escreveu a atriz em sua rede social.
“Tudo o que posso dizer é: sr. Vance, rezo para que sua filha tenha a sorte de um dia ter seus próprios filhos. Espero que ela não precise recorrer à fertilização in vitro como segunda opção. Porque você também está tentando tirar isso dela.”
A atriz, cuja luta contra a infertilidade tornou-se pública, estava se referindo à adoção por vários Estados americanos de leis que garantem a embriões congelados e a fetos dentro do ventre da gestante as mesmas proteções legais dadas a uma pessoa.
Seu pai biológico o abandonou e sua mãe tinha problemas com drogas. Hoje, o republicano é pai de dois meninos e uma menina.
Já Harris, cuja candidatura à Presidência ainda não é oficial, mas já conta com o apoio da maioria dos delegados democratas e do ex-presidente Barack Obama, não tem filhos biológicos.
No entanto, ela casou-se em 2014 com o advogado Douglas Emhoff, que já tinha dois filhos do relacionamento anterior.
De acordo com declarações de Harris à imprensa, os filhos do marido a chamam de “momala”, uma mistura de mãe, em inglês, com Kamala.
A ex-mulher de Doug Emhoff, a produtora Kirst Emhoff, disse à emissora CNN que os ataques são “infundados”.
“Por mais de dez anos, desde que Cole e Ella eram adolescentes, Kamala foi uma comãe com Doug e eu. Ela é amorosa, cuidadosa, ferozmente protetora e sempre presente. Amo nossa família misturada e sou grata por tê-la nela.”
Peggy O’Donnell Heffington, historiadora da Universidade de Chicago, afirma à BBC News Brasil que o retrato pejorativo de mulheres que não têm filhos é histórico, assim como a tentativa de controlar as decisões das mulheres sobre ter ou não filhos e quantos ter.
Estudiosa do tema, ela lançou, no ano passado, nos Estados Unidos o livro Without Children – the long history of not being a mother (“Sem filhos – a longa história de não ser mãe”, em tradução livre; Seal Press), ainda sem edição no Brasil.
“Nos Estados Unidos, esses esforços para encorajar — que, na verdade, são mais para obrigar as mulheres a terem filhos, remontam, pelo menos, ao início do século 19, após a Revolução Americana”, contou ela, durante uma entrevista por videochamada.
“Naquele momento, os políticos e as pessoas no poder começaram a tornar muito claro que a principal contribuição cívica das mulheres para esta nova nação, ou o que era esperado que elas fizessem como cidadãs, era ter filhos.”
Para Heffington, as declarações de Vance sobre as mulheres sem filhos vão neste sentido. “De certa forma, ele está dizendo que elas renegaram seus deveres como cidadãs ao não terem filhos e, por isso, não se pode confiar nelas para governar o país.”
Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – Por que ter filhos ou não ainda é algo considerado tão importante ainda nos dias de hoje?
Peggy O’Donnell Heffington – Essa carga tem sido colocada sobre as mulheres em todo o mundo. No caso especificamente da sociedade americana, a história é mais longa. Nos Estados Unidos, esses esforços para encorajar — que, na verdade, são mais para obrigar as mulheres a terem filhos — remontam, pelo menos, ao início do século 19, após a Revolução Americana.
Naquele momento, os políticos e as pessoas no poder começaram a tornar muito claro que a principal contribuição cívica das mulheres para esta nova nação, ou o que era esperado que elas fizessem como cidadãs, era ter filhos, fazer mais americanos, e depois educá-los para serem bons cidadãos americanos.
Esse era o principal papel das mulheres, era assim que elas próprias deveriam ser boas cidadãs.
Avançando, digamos, cem anos, [o então presidente] Theodore Roosevelt, em 1905, durante um discurso, comparou as mulheres que não têm filhos aos soldados que fogem da batalha. Portanto, a ideia é que essas mulheres são covardes e se recusam a servir ao seu país quando mais se precisa delas.
Por isso, penso que essa ideia, de que a forma de ser um cidadão americano digno é ter filhos, é uma coisa muito antiga e acho que é isso que J.D. Vance faz.
De certa forma, ele está explorando esse tema quando diz que as democratas são um bando de mulheres sem filhos e “senhoras dos gatos”, que não têm qualquer interesse no futuro. Ele está dizendo que elas renegaram seus deveres como cidadãs ao não terem filhos e, por isso, não se pode confiar nelas para governar o país.
BBC News Brasil – Classificar pejorativamente essas mulheres que não têm filhos é uma forma de falar sobre algo que lhes falta?
Heffington – Sim, sem dúvida. É como se ter filhos fosse a principal contribuição cívica das mulheres. Ao mesmo tempo, a retórica sobre as mulheres sem filhos fala delas como se não funcionassem direito.
Nesse mesmo discurso, em 1905, Theodore Roosevelt descreveu as mulheres sem filhos como um pão que é feito sem fermento, ou seja, que não cresce.
Ele disse que elas não servem para nada, que estão perdendo algo que é parte integrante da vida. É como se não cumprissem sua parte como cidadã, mas também sugere que lhe falta alguma coisa ou que lhe falta alguma coisa como pessoa.
BBC News Brasil – Você saberia dizer se os Estados Unidos já tiveram algum presidente que não tinha filhos?
Heffington – É uma ótima pergunta. Já tivemos cinco presidentes que não tinham filhos. O primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington [que governou entre 1789 e 1797], não tinha.
Sua mulher tinha filhos de um casamento anterior, mas ele nunca foi pai biológico. E, de fato, isso era algo que tinha muito apelo para as pessoas na América revolucionária, porque elas queriam expulsar o rei. E como é que os reis se tornam reis? Tendo filhos que se tornam reis.
Então era, de fato, uma coisa que as pessoas admiravam muito em George Washington, porque pensavam: “Ele não tem filhos que poderiam herdar o poder e por isso é uma escolha muito segura para um primeiro presidente”.
Além dele, James Madison [1809-1817], Andrew Jackson [1829-1837], James Polk [1845-1849] e James Buchanan [1857-1861]. Claro, eles eram todos homens, o que apenas reforça o quanto ter filhos é uma expectativa que recai somente sobre as mulheres.
BBC News Brasil – O eleitorado de Trump e J.D. Vance acredita que ter filhos é parte fundamental da existência de uma mulher? Esse discurso de que Kamala Harris não tem filhos pode ter apelo de alguma forma?
Heffington – Pensando generosamente, imagino que há uma parte do eleitorado que acredita realmente que ter filhos é não apenas um dever cívico, mas algo que dá sentido à vida de alguém, que é o maior objetivo da vida de uma mulher. Acho que temos de ser muito cuidadosos e temos de compreender que algumas pessoas acreditam mesmo nisso.
E desde os anos 1980, há uma reação ao feminismo por parte das mulheres conservadoras nos Estados Unidos. Essas mulheres começaram a dizer “olha, eu até gosto de ser mãe. Na verdade, gosto de não ter uma carreira e essa também é uma forma válida de existir no mundo”. E acho que essa porção da sociedade ainda existe.
Por isso, acho que é uma crença genuína para a maioria das pessoas. Mas, no caso de J.D. Vance e de Trump, penso que se trata mais de controle, de defender a mulher nos papéis tradicionais de gênero como forma de controlar a forma como a vida das mulheres pode ser encarada.
Há um precedente histórico para isso também. No século 19, nos Estados Unidos, o número de filhos que uma mulher tinha começou a diminuir.
Isso aconteceu na maior parte do mundo, mas, especificamente nos Estados Unidos, caiu drasticamente. E, ao mesmo tempo, se tivermos menos filhos, estaremos passando muito menos tempo grávidas. Passaremos muito menos tempo cuidando dos bebês.
Havia uma preocupação explícita por parte de alguns políticos: o que as mulheres vão fazer com o seu tempo? Talvez comecem a tentar entrar na política, no mercado, vão arranjar um emprego.
Ao mesmo tempo que a fertilidade começou a diminuir no século 19, aumentaram as expectativas do que significa ser mãe nos Estados Unidos, tal como a propaganda mostra, essa espécie de retórica em torno do que significa ser uma boa mãe.
Assim, as mulheres estão tendo menos filhos, mas as expectativas de quanto tempo se gasta na criação de cada filho, ou seja, quanto esforço é necessário, aumentaram.
É bastante explícito que esse pensamento surge para tomar o tempo das mulheres, já que elas não estavam mais o tempo todo grávidas. Isso evita que elas se metam na política.
Penso que ainda há algumas tensões nesse sentido, uma vez que alguns dos defensores dos papéis tradicionais de gênero e os críticos das mulheres sem filhos, estão preocupados com o que consideram ser uma forma correta de as mulheres passarem o seu tempo. E que as mulheres que dedicam o seu tempo à carreira ou à política em vez da maternidade são, de alguma forma, uma ameaça.
BBC News Brasil – Nos Estados Unidos, não há licença-maternidade, e as creches são caras. É possível que o eleitorado que está preocupado com o fato de as mulheres terem filhos ou não também possa cobrar mais políticas públicas para ajudar a cuidar dessas crianças?
Heffington – Espero que sim. É nessa fragilidade que podemos ver muito da retórica política de pessoas como J.D. Vance sobre o fato de que as mulheres devem ter filhos. Não vem de um ponto de vista genuíno de dizer: “Acredito realmente que as mulheres encontram um significado ao terem filhos”.
Se fosse isso, poderiam também apoiar políticas de licença-maternidade ou creches gratuitas ou de baixo custo ou o acesso a um pré-natal gratuito, facilitando ao máximo a possibilidade de as mulheres terem filhos. Mas acho que é aí que está a contradição: na realidade, se trata muito mais de controlar as mulheres do que de as ajudar a alcançar tudo o que querem na vida.
BBC News Brasil – Esse debate agora pode ser um indício da misoginia que Kamala Harris pode enfrentar caso se confirme candidata?
Heffington – Infelizmente, sim. Acho que é uma forma bastante conveniente de atacá-la, porque não a estão criticando por ser mulher, mas sim pelo fato de não ter filhos. Isso sugere algum tipo de falha em relação a ela.
É como se dissessem “não é com as mulheres que temos um problema, mas sim com uma mulher com uma falha que temos um problema”. Por isso, receio que isso pode ser uma espécie de prenúncio para uma misoginia muito mais profunda.
Também gostaria de salientar que a forma como Vance e outros estão falando de Kamala Harris como uma mulher sem filhos apaga totalmente o fato de que ela é madrasta, que o seu marido tem dois filhos, que ela está muito envolvida nas suas vidas.
Acho que isso sugere que não estão realmente preocupados com a participação de uma mulher na criação da próxima geração, porque ela está fazendo isso.
É a maternidade biológica, e é uma espécie de maternidade como papel principal da mulher, o que eles defendem. É nisso que ela é falha. Não é que ela esteja apenas ignorando a próxima geração.
Ela gosta muito de ser mãe como parte da sua identidade, mas acho que é muito interessante o fato de eles revelarem que o que lhes interessa não são os atos de cuidado que uma mulher pode dar através da maternidade. Preocupam-se com o ato biológico de ser mãe.
BBC News Brasil – Em seu livro, a senhora menciona, dentre outras coisas, que a decisão de algumas mulheres evitarem a maternidade não é algo novo.
Heffington – Quando comecei a escrever o livro, muitas pessoas me disseram: “Como é que você está escrevendo uma história longa sobre não ter filhos se a pílula anticoncepcional foi inventada em 1954?”.
Uma das coisas que quis demonstrar com o livro é que as mulheres têm manipulado ativamente a sua reprodução há muito tempo. Podemos recuar até à Grécia e Roma antigas e há registros médicos de várias formas holísticas de prevenir e interromper a gravidez.
Na Europa, a partir do início do período moderno, nos séculos 17 e 18, podemos ver que as taxas de natalidade começam a diminuir enquanto a idade da última gestação começa a baixar.
Isso sugere que, já naquela época, elas estavam tendo dois ou três filhos e depois diziam “já chega”. Para isso, elas já estavam encontrando meios eficazes de controlar a sua reprodução.
Em todos estes casos, trata-se de mães, porque se olharmos para os registos de nascimento e os utilizamos para provar que as pessoas usavam algum tipo de contracepção, estamos olhando para as mães.
Mas acho que não é algo tão distante da realidade assumir que as mulheres que nunca tiveram filhos também usavam esses métodos contraceptivos ou interrompiam a gravidez.
Por isso, penso que é seguro dizer que as mulheres têm evitado e interrompido as gravidezes desde que começaram a ficar grávidas. Agora, é muito mais fácil fazê-lo, claro. Dispomos de uma tecnologia muito melhor, mas controlar sua reprodução sempre foi uma coisa que as mulheres quiseram fazer, quer fossem mães ou não.
BBC News Brasil – Existe um termo para quem não tem filhos nos Estados Unidos, chamado “nomo“, que seria a junção das palavras “no” (não) e “mom” (mamãe). Esses termos têm ganhado força?
Heffington – Não sei, mas penso que representa mais um esforço para encontrar uma palavra para uma mulher que não seja mãe e que não fale da falta que mencionou anteriormente.
Porque, se dissermos que é uma mulher sem filhos, significa que lhe falta um filho. Ou se dissermos que uma mulher que não é mãe, é como uma definição negativa, estamos definindo ela pelo que ela não é.
Por isso, há esforços para encontrar um termo que seja mais neutro, que seja menos relacionado com o que lhe falta. E “nomo”, uma abreviatura de “não-mãe”, é uma tentativa, embora tenha uma conotação negativa também. Nos Estados Unidos, o termo mais comum que as pessoas utilizam é “child-free” (sem filhos), e isso é uma reivindicação de uma identidade positiva, que é algo que escolheram ativamente.
BBC News Brasil – Qual o papel da decisão da Suprema Corte que reverteu o entendimento que garantia o direito ao aborto nos Estados Unidos?
Heffington – Não creio que seja por acaso que, em um momento em que a fertilidade nos Estados Unidos está diminuindo, em que o número de bebês nascidos todos os anos tem diminuído há cerca de uma década, que, ao mesmo tempo, haja pessoas que vão limitar o acesso ao aborto e até à contracepção em alguns locais.
Para mim, é bastante claro que os políticos que estão tomando conhecimento da queda das taxas de natalidade, da queda da fertilidade, da queda do número de bebês, estão pensando também em retirar o acesso à contracepção e ao aborto. Isto, mais uma vez, tem um precedente histórico.
Nos Estados Unidos, no século 19, no mesmo momento em que os nascimentos diminuíram, como mencionei anteriormente, o número médio de nascimentos por mulher diminuiu também.
É aí que começam a ser aprovadas leis contra o aborto e a contracepção. Temos então este outro momento histórico em que as mulheres começam a ter muito menos filhos e as pessoas entram em pânico e começam a fazer leis para tornar o aborto ilegal, para regular o uso de contraceptivos.
Acho que estamos neste ponto outra vez. Parece-me que estão explicitamente ligados, que os esforços para anular a decisão sobre o aborto estavam ligados ao receio de que as mulheres americanas não estivessem tendo filhos suficientes.
Fonte: BBC
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