- Author, Paula Rosas
- Role, BBC News Mundo
Eles são conhecidos como “tementes a Deus”.
Vivem em comunidades fechadas, com pouco contato com o mundo exterior, onde parece que o tempo parou. Muitos não têm televisão, internet nem, claro, redes sociais.
Os homens dedicam a maior parte do tempo ao estudo religioso, enquanto as mulheres cuidam dos inúmeros filhos e trabalham para sustentar a família.
Os ultraortodoxos, também chamados de haredi, são seguidores de uma corrente do judaísmo ortodoxo cuja vida é regida por textos religiosos e normas sociais rígidas.
Em Israel, onde representam cerca de 13% da população, os partidos políticos que representam esta comunidade exercem há décadas uma influência minoritária, mas decisiva na política.
Em troca do seu apoio aos sucessivos governos do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, os ultraortodoxos conseguiram manter, entre outras coisas, a isenção do serviço militar obrigatório para os haredi, que dedicam suas vidas ao estudo, e centenas de milhões de dólares para suas instituições.
Isso tem gerado uma fonte de tensão há anos, com grande parte dos israelenses judeus seculares sendo obrigados a prestar serviço militar e servir em sucessivas guerras, além de pagar a maior parte dos impostos do país.
Agora, em um momento delicado devido à guerra em Gaza e ao temor de um novo conflito aberto com o Hezbollah no Líbano, o Supremo Tribunal de Israel acabou com essa isenção, o que fez com que milhares de haredi saíssem às ruas para protestar.
A decisão também ameaça a estabilidade do governo, uma vez que os dois partidos ultraortodoxos que fazem parte do Executivo — o Shas e o Judaísmo Unido da Torá (JUT) — ameaçaram abandonar a coligação liderada por Netanyahu, levantando a questão sobre até onde vai a influência desta comunidade minoritária.
Como se diferenciam de outros judeus
Os haredis são uma das “quatro tribos do Estado moderno de Israel”, junto aos secularistas, os religiosos nacionalistas e os árabes israelenses, conforme definiu o ex-presidente Reuven Rivlin.
Os homens se vestem com ternos pretos e costumam usar longos cachos perto da orelha, barbas compridas e chapéu de abas largas. Já o traje típico das mulheres é composto por saias longas, meias grossas e lenços ou perucas na cabeça.
Isso faz com que sejam facilmente identificáveis.
Séries como Nada Ortodoxa e Shtisel, da Netflix, despertaram interesse por seu estilo de vida e costumes.
Os haredi fazem parte do mundo ortodoxo, que se distingue por respeitar plenamente a lei judaica.
Os judeus ortodoxos obedecem “principalmente a três elementos-chave: respeitam o shabbat (dia de descanso judaico); têm uma alimentação kosher (consomem aquilo que a religião permite comer); e praticam o que é conhecido como ‘pureza conjugal’ (dormir em camas separadas e não ter relações sexuais até sete dias após a menstruação, e depois de um banho ritual de imersão)”, explica Naomi Seidman, professora do Centro de Diáspora e Estudos Transnacionais da Universidade de Toronto, no Canadá, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
Um ortodoxo moderno, observa Seidman, “vai fazer outras coisas, e pode ser, por exemplo, um advogado ou um policial, desde que cumpra esses elementos da lei judaica”.
Para os haredi ou ultraortodoxos, no entanto, estas normas não são suficientes.
Toda sua vida gira em torno da Torá (a Bíblia hebraica, composta pelo Antigo Testamento), tanto a lei escrita quanto oral, e todas as suas escolhas de vida, sejam profissionais, de educação, onde vivem ou como se vestem, estão sujeitas à tradição judaica.
Na longa história do judaísmo, o fenômeno ultraortodoxo é relativamente recente, nascido no século 19, quando a industrialização fez prosperar um novo tipo de judeu, mais mundano e integrado à sociedade.
Isso causou uma ruptura por parte dos judeus ortodoxos que queriam manter uma visão muito mais conservadora, isolacionista e antissecular do judaísmo, e que se organizaram em torno de diferentes rabinos.
Como são suas comunidades?
Os haredi geralmente vivem em enclaves onde todos os seus vizinhos compartilham a mesma visão de mundo, e onde tradicionalmente tentam manter o mínimo contato com o mundo exterior para evitar a influência e contaminação de seus valores e práticas.
Há comunidades significativas de judeus ultraortodoxos nos Estados Unidos e no Reino Unido, embora sua maior população esteja em Israel, onde representam atualmente pouco mais de 13% dos habitantes do país, e onde seu número cresce rapidamente devido à sua alta taxa de natalidade.
Bairros como Mea Shearim, em Jerusalém, ou Bnei Brak, nos arredores de Tel Aviv, reúnem uma parte significativa desta população.
“Eles costumam ter famílias muito grandes e, em geral, são mais pobres que os judeus seculares e os judeus ortodoxos modernos, que estão entre os setores mais abastados da população judaica e possuem famílias menores”, explica Naomi Seidman.
Cada uma destas comunidades tem suas próprias sinagogas, yeshivás (escolas religiosas) e organizações comunitárias.
O respeito e o status no mundo haredi são proporcionais à erudição no estudo da Torá, por isso os rabinos são os grandes líderes da comunidade, a quem os moradores recorrem quando têm que tomar uma decisão importante em suas vidas, como com quem casar ou o que estudar.
A maioria dos homens adultos se dedica ao estudo dos textos religiosos em tempo integral, por isso suas esposas ficam encarregadas do sustento da família.
A variedade de empregos que podem ter é, no entanto, limitada — e as famílias são geralmente bastante pobres e dependentes de subsídios estatais.
Apesar do isolamento, está surgindo uma nova classe de ultraortodoxos mais modernos, observa Seidman:
“Eles levam uma vida haredi, vivem em enclaves haredi e se vestem como tal, mas em vez de trabalharem apenas dentro da comunidade ou em profissões tradicionais, como o comércio de diamantes, são professores ou advogados, e usam a internet, algo que não é bem visto entre os mais radicais.”
Alguns destes haredi mais modernos se voluntariam, às vezes, para entrar no Exército, onde existe atualmente um batalhão, o Netzah Yehuda, que foi criado especificamente para satisfazer as exigências ultraortodoxas de segregação de gênero, os requisitos de alimentação kosher e horário reservado para orações e rituais diários.
Em 1948, havia pouco mais de 40 mil ultraortodoxos em Israel, em comparação com mais de um milhão hoje. O peso desta minoria vem aumentando — e com isso, explica Naomi Seidman, também sua autoconfiança e poder político.
Mas o ressentimento também cresceu entre uma grande parte do resto da população, que considera que paga com seus impostos os subsídios sociais para um grupo majoritariamente desempregado, e que envia seus filhos para lutar num Exército que acreditam que hoje segue as ordens de um governo influenciado pelos haredi, enquanto eles permanecem em segurança longe da linha de frente.
Tradicionalmente, os haredi se mantiveram fora da política.
Teologicamente, os ultraortodoxos consideram que o Estado de Israel só pode ser estabelecido após a chegada do messias, razão pela qual se consideram antissionistas.
Mas esta é a teoria. Na prática, apenas um pequeno grupo de ultraortodoxos defende ativamente esta ideia, não reconhece o Estado moderno de Israel e sai para protestar com bandeiras palestinas.
A grande maioria dos haredi, no entanto, defende uma forma de pensar mais prática, com a qual têm apoiado a participação política para defender seus interesses.
Isso permitiu a eles, no passado, formar coligações com a esquerda ou a direita para manter suas isenções e benefícios sociais.
Hoje em dia, analisa Seidman, as coalizões só acontecem com a direita. Nas ruas, o mundo haredi se alinhou fortemente com a direita sionista, que defende, nas suas visões mais radicais, a expansão do Estado de Israel em direção ao que consideram seus territórios históricos, ou seja, a Palestina da Cisjordânia e Gaza.
Esta posição, defendida por partidos como Sionismo Religioso, aliado de Netanyahu no governo, influenciou as políticas de Israel e a forma como está conduzindo a guerra em Gaza, denunciam seus críticos.
Assim, a participação dos haredi no serviço militar ganhou agora maior relevância.
Mais de 60 mil homens haredi estão registrados como estudantes de yeshivás — e foram dispensados de prestar serviço militar. Até agora.
De acordo com uma pesquisa recente do Instituto Israelense para a Democracia, 70% dos judeus israelenses querem o fim das isenções gerais do serviço militar para os ultraortodoxos, algo que o Supremo Tribunal finalmente aprovou.
Desde então, o Exército recebeu ordens para recrutar mais 3 mil homens da comunidade, além dos 1,5 mil que já prestam serviço militar.
Também foi solicitado que elaborasse planos para recrutar um número maior de pessoas nos próximos anos.
A tensão tem aumentado.
“Meu filho já está na reserva há 200 dias! Quantos anos vocês querem que faça? Como é que vocês não têm vergonha?”, disse recentemente Mor Shamgar, mãe de um soldado que serve como comandante de tanque no sul do país, ao assessor de segurança nacional de Israel em uma conferência. O discurso viralizou nas redes sociais.
Para Shagmar, assim como para outros israelenses, o governo “administrou muito mal a situação”, colocando sua própria sobrevivência política à frente dos interesses nacionais na questão do recrutamento, disse ela em conversa com a correspondente da BBC News em Jerusalém, Yolande Knell.
Mas para os jovens haredi que poderiam ser forçados a prestar serviço militar obrigatório, a decisão do Supremo Tribunal ameaça seu estilo de vida religioso.
“Durante 2 mil anos, fomos perseguidos e sobrevivemos porque aprendemos a Torá, e agora o Supremo Tribunal quer nos tirar isso, o que vai causar a nossa destruição”, disse à correspondente da BBC um dos jovens que protestou nesta semana contra a decisão da Justiça.
Para Naomi Seidman, a comunidade haredi é, diferentemente da imagem popular que tem, cada vez mais sensível ao que o resto da sociedade pensa dela.
Nos últimos anos, eles tentaram expandir sua rede de serviços públicos, como de assistência rodoviária ou de ambulância, ao resto da população israelense, na esperança “de que o mundo secular aprecie estas contribuições e as veja como uma alternativa ao serviço militar”, diz a especialista da Universidade de Toronto.
Fonte: BBC
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