- Author, Santiago Vanegas
- Role, BBC News Mundo
“Você se mata tanto plantando semente de coca para ter que colhê-la com as próprias mãos — e agora já não rende mais nada.”
A realidade que um cocaleiro (a pessoa que se dedica ao cultivo da folha de coca) colombiano descreve em um vídeo do TikTok, em espanhol, é reflexo do momento de instabilidade que atravessa o mercado da coca no mundo e impacta principalmente os países produtores.
Centenas de famílias em algumas regiões produtoras de coca tiveram que enfrentar uma queda no preço do produto que, apesar de envolver riscos elevados, é, em muitos casos, a opção de trabalho mais rentável disponível.
É um fenômeno que pode ser explicado em parte pelo fato das culturas de coca e a produção de cocaína terem atingido o seu máximo histórico recentemente, segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.
Colômbia, Peru e Bolívia (a região do mundo que satisfaz quase toda a procura desta droga) tinham cerca de 355 mil hectares de coca cultivados em 2022, segundo os dados mais recentes das Nações Unidas.
“Há muita cocaína na Colômbia, há mais cocaína na Bolívia e no Peru, há mais opções de onde comprar, e há mais cocaína em todo o mercado. Isso dá ao traficante a liberdade de estabelecer novas condições”, diz Ana María Rueda, coordenadora da área de Políticas sobre Drogas da Fundação Ideias para a Paz.
Demanda crescente
O aumento da produção de coca, explicam os especialistas, é motivada em parte pela procura.
Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU de 2023, existem cerca de 22 milhões de consumidores de cocaína no mundo, um recorde.
Mesmo em meio à crise dos opiáceos, a procura por cocaína nos Estados Unidos manteve-se estável.
E “é um mercado em crescimento na Europa Ocidental e especialmente em outras áreas não tradicionais. Por exemplo, na Austrália, na Nova Zelândia, na Ásia e até na África, o mercado de cocaína que antes não existia está crescendo agora”, afirma Candice Welsh, representante para a América do Sul do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime.
Sergio Saffon, investigador sênior da InsightCrime, uma organização que investiga e analisa o crime organizado, concorda que os traficantes de droga estão desenvolvendo novos mercados para a cocaína em outras partes do mundo.
Além do enorme número de potenciais consumidores em países como a Austrália ou a China, eles são atraídos pelos elevados preços pagos nas ruas desses países pela cocaína.
“À medida que o destino se afasta das áreas de produção e fica mais difícil e arriscado transportá-lo, vemos preços exorbitantes”, explica Saffon.
Em 2022, a polícia australiana afirmou que um quilo de cocaína poderia chegar a cerca de US$ 250 mil (R$ 1,3 milhão), mais que o dobro do que custa nos Estados Unidos.
Contudo, o fato de hoje haver um excesso de oferta significa que a produção cresceu mais rapidamente do que a procura, ou pelo menos que algo está acontecendo no mercado para que os intermediários não comprem a coca produzida pelos agricultores para satisfazer esta nova procura.
Segundo especialistas, isso tem a ver com a dinâmica do conflito em torno do mercado de drogas.
Instabilidade e incerteza
Ao contrário da época em que as Farc controlavam a maior parte do negócio, atualmente vários grupos armados, em cada uma das regiões produtoras de coca, lutam pelo controle do mercado.
Desde a assinatura do acordo de paz de 2016, “as relações de poder mudam constantemente e muitos produtores, especialmente os pequenos, têm dificuldade em saber a quem podem vender e a quem não podem, e depois acabam ficando com a produção”, afirma Ana María Rueda, que também foi diretora de políticas sobre drogas do Ministério da Justiça da Colômbia.
Hoje muitos produtores não sabem para quem, quando ou a que preço venderão o seu produto.
Além disso, Sergio Saffon explica que “os comandantes agora são muito jovens e duram muito pouco”.
“É um cenário muito instável e que não favorece os negócios. O que qualquer empresa precisa é de um fornecedor confiável e estável”, acrescenta.
Esta guerra entre grupos armados pelo mercado da coca também torna a logística empresarial mais difícil para os compradores estrangeiros (mexicanos e albaneses, por exemplo).
Comprar numa região em guerra é muito mais complicado do que quando existe um claro controle hegemônico.
Por tudo isso, a relação que existe hoje entre compradores, grupos armados e produtores não é ajeitada e aperfeiçoada e, portanto, a coca que se cultiva e produz nem sempre consegue chegar ao mercado internacional.
Além disso, explica Welsh, “os grupos que são muito ativos no tráfico da droga estão agora também procurando formas de maximizar os seus lucros ilícitos”.
“Então buscam a melhor qualidade do produto, o melhor preço e também a maior quantidade.”
É, portanto, um mercado mais competitivo.
Mais colheitas, novos países
Só na Colômbia, segundo dados do Ministério da Defesa, havia 246 mil hectares de coca cultivados em dezembro de 2023.
É o dobro do terreno dedicado ao cultivo de banana no país no mesmo ano, que ficou em 53 mil hectares, segundo estimativas do sindicato responsável.
Relatórios recentes das Nações Unidas mostram que estas culturas tendem a se concentrar em determinados locais, como Putumayo, departamento no sul do país que faz fronteira com o Equador e o Peru.
O excesso de oferta também é um fenômeno que não ocorre da mesma forma em todas as regiões produtoras de coca.
Mas enquanto na Colômbia as culturas estão concentradas em regiões específicas, foram detectadas culturas incipientes em outros países latino-americanos, como Guatemala, Honduras e Venezuela.
Isso é possível, diz Sergio Saffon, devido ao avanço tecnológico. “A coca é uma planta andina, mas através da engenharia e da seleção genética de plantas começou a ser cultivada em regiões onde tradicionalmente não crescia.”
“Durante vários anos, a Venezuela se tornou um ponto de trânsito e expedição de drogas muito importante para vários lugares do mundo, portanto as colheitas na Venezuela são a extensão natural desse fenômeno e das mesmas condições da fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, que é uma fronteira muito fluida”, explica Saffon à BBC Mundo.
“Guatemala e Honduras são pontos de trânsito estratégicos para os Estados Unidos”, acrescenta.
Mas não foram apenas as culturas que se expandiram para outros países.
Especialistas relatam que no Peru e na Bolívia há mais laboratórios e pistas clandestinas. O Equador e o Brasil tornaram-se duas rotas principais e grande parte da coca está sendo processada diretamente na Europa, o que reflete um mercado em expansão.
“A dinâmica do tráfico de drogas está mudando seriamente, não para desaparecer, mas para ficar e se fortalecer”, resume Ana María Rueda.
A nova abordagem da Colômbia
Durante anos, a estratégia da Colômbia, o principal produtor mundial de coca, para acabar com as culturas ilícitas foi a fumigação aérea com glifosato.
Essa política, estreitamente alinhada com as recomendações dos Estados Unidos, foi suspensa em 2015 devido a dúvidas sobre os efeitos do uso desse herbicida na saúde.
Ana María Rueda explica que “na ausência de pulverização aérea, o arbusto de coca atinge os seus níveis máximos de produtividade”. Ou seja, a mesma planta de coca produz mais cloridrato de cocaína e podem ser produzidas seis colheitas por ano, em vez de três.
Isso também explica parcialmente o atual excesso de oferta.
Além disso, “as famílias de agricultores e os guerrilheiros, vendo que não estão pulverizando, têm mais incentivos para investir nas culturas, em termos de fertilizantes, investigação genética para ter mais variedades, etc”, acrescenta Rueda.
Sem o glifosato, o governo de Iván Duque fez um grande esforço para erradicar manualmente a coca. Em 2020 e 2021, erradicou mais de 100 mil hectares por ano.
Contudo, segundo os especialistas, isto não resultou na redução substancial das culturas ilícitas ou da produção de cocaína.
O atual governo, de Gustavo Petro, veio com a ideia de não atacar o camponês, mas os elos poderosos da cadeia, e mostrou que a erradicação não é a sua principal aposta no combate ao tráfico de drogas.
No início de março, anunciou que a sua meta de erradicação para 2024 é de 10.000 hectares, metade do que se propôs erradicar no ano passado e 10 vezes menos do que o governo de Iván Duque pretendia erradicar.
A consequência disso, segundo a pesquisadora Ana María Rueda, é que “não há neste momento qualquer pressão do Estado sobre o camponês para que pare de cultivar”.
Em vez disso, o governo colombiano afirma que concentrou esforços na apreensão de mais cocaína.
Em 2023, o primeiro ano completo de Petro no poder, foram apreendidas 739 toneladas de cocaína colombiana, contra 659 em 2022 e 669 em 2021.
Sergio Saffon, investigador sênior da Insight Crime, alerta, porém, que “as apreensões são uma medida um tanto enganosa”.
Segundo ele e outros especialistas, é impossível estimar se o aumento das apreensões está realmente tendo um efeito significativo nas economias das redes de tráfico de droga ou se simplesmente reflete o aumento geral da produção de cocaína.
Além disso, “as redes criminosas consideram as apreensões como parte do custo de fazer negócios”, diz Saffon.
Peru e Bolívia
Enquanto isso acontece na Colômbia, o Peru, o segundo maior produtor, registrou um aumento relevante na cultura de coca nos últimos cinco anos.
Especialistas observaram que as colheitas ultrapassaram a sua área tradicional, que fica no vale dos rios Apurímac, Ene e Mantaro, e chegaram a outros locais, especialmente mais próximos da fronteira com o Brasil, que é uma das rotas por onde sai a cocaína peruana.
Segundo Saffon, a luta contra o tráfico de drogas no país tem sido afetada pela instabilidade política, o que tem impedido que uma estratégia de drogas seja implementada e priorizada.
Apesar disso, as apreensões de pasta base de cocaína aumentaram 53% em 2023.
Na Bolívia, onde as colheitas aumentaram menos e onde o cultivo da coca é legal sob certas condições, o governo está implementando uma luta muito mais frontal contra a cocaína.
Em 2022 e 2023, as autoridades erradicaram mais de 10.000 hectares de coca. E em 2023, as apreensões aumentaram 62% em comparação com 2022.
Candice Welsh, das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, insiste que os países precisam cooperar para resolver o problema.
“Não é um problema que um país sozinho possa enfrentar. Não podemos fazer nada sem cooperação, porque os grupos trabalham de forma transnacional, o seu dinheiro passa transnacionalmente”, afirma.
O futuro da região
Os especialistas ouvidos concordam que a turbulência no mercado da coca, que deixou centenas de famílias produtoras de coca sem meios de subsistência estáveis, é temporária, e que o mercado acabará por estabilizar.
“Terá de haver algum tipo de estabilidade na dinâmica de compras que atualmente está tão desordenada”, afirma Ana María Rueda.
Saffon acrescenta que, neste novo cenário de estabilidade, “certamente a produção dos países andinos se concentrará no abastecimento dos mercados emergentes da Ásia e da Europa”.
Mas, para além do mercado, o fato de haver tanta cocaína na região preocupa pelos riscos de segurança que isso acarreta.
“Esses altos níveis de produção geram muita riqueza que se destina a fortalecer essas redes internacionais de tráfico de drogas”, diz Saffon.
“O exemplo mais óbvio é o Equador”, acrescenta, onde nos últimos anos ocorreram violentos motins nas prisões, a morte de um candidato presidencial, a invasão de um canal de televisão e a maior taxa de homicídios da América Latina.
Welsch acrescenta à equação o risco que tanta cocaína na região pode representar para a governança dos países.
“Mais dinheiro significa mais risco de corrupção, de controlar o Estado, de minar a capacidade do Estado de responder a esses riscos”, afirma.
Assim, o fato de algumas famílias em certas regiões da Colômbia serem obrigadas a vender a coca que cultivam mais barata ou não conseguirem vender o produto não significa que o negócio tenha se tornado menos rentável.
Pelo contrário, é antes o prelúdio para uma nova estabilidade no mercado global de cocaína que, segundo os especialistas, continuará a enriquecer as redes de tráfico de droga e a ameaçar a segurança da América Latina por enquanto.
Fonte: BBC
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