- Author, André Biernath
- Role, Da BBC News Brasil em Londres
- Twitter, @andre_biernath
A perfuração de um bloco na foz do rio Amazonas para a prospecção de petróleo escancarou a primeira grande controvérsia do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na área ambiental.
De um lado, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) vetou o projeto no dia 17 de maio, ao alegar que existiam “inconsistências técnicas” nele.
O Ministério de Meio Ambiente e Mudanças do Clima, comandado por Marina Silva (Rede), também mostrou-se contrário à ideia.
Do outro, estão o Ministério de Minas e Energia, liderado por Alexandre Silveira (PSD-MG), e a Petrobras, presidida por Jean Paul Prates (PT-RN). Após a decisão do Ibama, a empresa de energia confirmou que vai pedir uma reconsideração do veto ainda nesta semana.
Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, conflitos do tipo são esperados — e, a depender da condução do caso, podem solidificar (ou fragilizar) o discurso ambientalista que Lula vem adotando desde a campanha.
“Os empreendimentos de maior porte geram mais polêmica e os técnicos do Ibama estão acostumados com esse tipo de pressão”, aponta a urbanista e advogada Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.
“O que me parece estar acima do tom necessário neste caso é que o veto foi de apenas de um bloco específico de exploração, e a discussão foi extrapolada como se envolvesse toda a política energética do país.”
“Mas não me parece que o que aconteceu até agora represente um estremecimento da relação ou no alinhamento de discurso entre o presidente da República e a ministra do Meio Ambiente”, complementa ela.
Os pesquisadores também avaliam que, por ora, a controvérsia relacionada à perfuração na foz do Amazonas não tem o mesmo potencial da crise que se abateu sobre o segundo governo Lula em 2008 — que resultou na saída de Marina Silva do Ministério do Meio Ambiente após uma série de quedas de braço com outros setores do governo.
Para Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, é preciso considerar que, nos últimos 20 anos que se passaram entre as gestões de Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente, o mundo mudou.
“A gente não pode desconsiderar o contexto mundial. No início dos anos 2000, o problema principal que gerou desgastes dentro do então governo Lula tinha muito tudo a ver com desmatamento, infraestrutura e questão agrícola”, opina ela.
“Agora estamos num contexto global em que Marina Silva não é mais uma voz isolada quando o assunto é desenvolvimento de baixas emissões e energia limpa. Isso se tornou um ponto mandatório de todos os manuais de investimento públicos e privados.”
Já a socióloga Lorena Cândido Fleury, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vê no episódio atual uma certa sensação de déjà-vu, que remete às experiências passadas dos governos anteriores do PT.
“O licenciamento ambiental respeita duas premissas básicas: o processo democrático e a evidência científica. É importante que as discussões ocorram com todos os setores da sociedade, mas o parecer de técnicos e cientistas deve ser respeitado ou confrontados por outros especialistas no tema”, destaca.
“Mas tendo a acreditar que estamos em um outro momento, que nos dá a entender que a questão ambiental está no centro do discurso do presidente Lula”, pondera ela, que também coordena o Comitê de Pesquisa em Sociologia Ambiental e Ecologia Política da Sociedade Brasileira de Sociologia.
Entenda a controvérsia
A foz do Amazonas é o local em que o famoso rio da Região Norte deságua no mar. Ela faz parte de uma região conhecida como Margem Equatorial Brasileira, que se estende do Amapá até o Rio Grande do Norte.
A Petrobras tem interesse em estudar o potencial da exploração de petróleo nesse local — a empresa estima que seja possível retirar 14 bilhões de barris do combustível fóssil dali.
Porém, antes de iniciar qualquer empreendimento do tipo, é necessário obter um licenciamento ambiental exigido por lei.
Quando o projeto envolve o mar territorial do país, o órgão responsável por emitir esse documento é o Ibama.
A Petrobras pediu um licenciamento para estudar a possibilidade de exploração de petróleo num bloco específico — o FZA-M-59.
O parecer emitido por técnicos do Ibama desaconselhou a liberação da obra no local e apontou “incosistências técnicas” no pedido. O presidente do instituto, Rodrigo Agostinho, seguiu a orientação dos servidores e negou a licença no dia 17 de maio.
“Não restam dúvidas de que foram oferecidas todas as oportunidades à Petrobras para sanar pontos críticos de seu projeto, mas que este ainda apresenta inconsistências preocupantes para a operação segura em nova fronteira exploratória de alta vulnerabilidade socioambiental”, escreveu Agostinho no documento.
O Ibama também mostrou-se preocupado com o risco de acidentes que podem espalhar petróleo pela região — as correntes marítimas ali são muito diferentes das observadas em outros locais da costa brasileira e poderiam espalhar o óleo a grandes distâncias num curto espaço de tempo, temem os técnicos do órgão.
Vale lembrar que a foz do Amazonas é considerada por especialistas como uma região de alta relevância biológica.
O local abriga corais pouco estudados, que têm capacidade de viver na transição entre águas doces e salgadas. A costa da Amazônia também possui 80% dos manguezais brasileiros.
Após a decisão do Ibama, a Petrobras divulgou uma nota no dia 18 de maio, em que disse ter reagido “com surpresa” à notícia.
Na quarta-feira (24/5), a petrolífera confirmou que vai entrar com um requerimento para que o Ibama reconsidere o pedido de licença ambiental.
Em nota, o Ministério do Meio Ambiente reiterou que a “decisão sobre licenças ambientais que cabem ao governo federal compete exclusivamente ao Ibama, a partir de análise e fundamentação técnicas”.
Já o Ministério de Minas e Energia afirmou que “já havia solicitado à Petrobras aprofundamento dos estudos para sanar maiores dúvidas quanto à viabilidade da prospecção da Margem Equatorial de maneira ambientalmente segura”.
“Todo o processo de discussão do tema tem garantido a participação plena dos órgãos envolvidos na questão e respeitará as diretrizes do Governo do presidente Lula, de união e reconstrução, de confiança e de diálogo, levando em conta o respeito ao meio ambiente e às questões sociais e econômicas de interesse do País”, diz o texto.
Reações individuais
Em meio à controvérsia, no dia 18 de maio o senador Randolfe Rodrigues (sem partido, AP), líder do governo Lula no Congresso Nacional, anunciou a saída da Rede Sustentabilidade, mesmo partido político de Marina Silva.
Nas redes sociais, Rodrigues criticou o veto do Ibama e disse que o órgão “não ouviu o governo local e nenhum cidadão” do Amapá, Estado que ele representa no Senado Federal.
“O povo amapaense quer ter o direito de ser escutado sobre a possível existência e o eventual destino de nossas riquezas”, protestou.
No dia 22 de maio, ainda na Cúpula do G7 em Hiroshima, no Japão, Lula foi questionado sobre a questão.
Ele disse “achar difícil” que a exploração de petróleo no encontro do rio com o oceano represente algum problema para a Amazônia, pois ela se encontra a mais de 500 km de distância da floresta.
“Se explorar esse petróleo tiver problemas para a Amazônia, certamente não será explorado”, ponderou o presidente.
Nessa mesma data, Lula usou o Twitter para dizer que as 28 milhões de pessoas que moram na Amazônia “têm o direito de trabalhar e comer”.
“Por isso, precisamos ter o direito de explorar a diversidade da Amazônia, para gerar empregos limpos, para que a Amazônia e a humanidade possam sobreviver”, compartilhou ele.
Na terça-feira (23/5), o ministro da Casa Civil, Rui Costa (PT), convocou uma reunião com representes de Ibama, Petrobras e os ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia para lidar com a crise.
Em entrevista ao G1 logo após o encontro, Costa afirmou que “é preciso fugir de posições excessivamente ideológicas sobre a foz do Amazonas”.
Já em uma entrevista coletiva realizada após a reunião, Marina Silva declarou que o parecer do Ibama levou em conta apenas parâmetros técnicos.
“É uma decisão técnica, e decisão técnica em um governo republicano e democrático é cumprida e respeitada”, disse.
Os demais participantes da reunião no Ministério da Casa Civil não deram declarações públicas desde então.
A BBC News Brasil entrou em contato com assessoria de imprensa Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República para ter um posicionamento oficial a respeito das informações apresentadas, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Experiências do passado
O debate envolvendo a possível exploração de petróleo na foz do Amazonas trouxe à tona a crise que Marina enfrentou durante o primeiro e o segundo governo Lula, quando também foi ministra do Meio Ambiente.
Ela deixou o cargo em 2008 após uma série de conflitos e quedas de braço com outras lideranças durante o segundo mandato presidencial do petista.
À época, ela relatou sofrer “crescentes resistências junto a setores importantes do governo” e rivalizava com a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff (PT) e com Blairo Maggi (PP), governador de Mato Grosso à época.
Neste período, Dilma comandava o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que necessitava do licenciamento ambiental para obras de infraestrutura e exploração de recursos na região amazônica.
Já Marina era a responsável pelo Plano Amazônia Sustentável (PAS) e perdeu algumas disputas sobre a aprovação de grandes projetos de infraestrutura nessa região. Um dos principais deles foi a construção da Usina de Belo Monte, no Pará.
As duas voltaram a rivalizar nas eleições de 2014, das quais Dilma sagrou-se vencedora.
Marina só se reaproximou do PT e apoiou Lula novamente 14 anos depois da saída do governo, nas eleições de 2022.
Logo após a vitória contra Jair Bolsonaro (PL), ela participou da Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (COP27), realizada em Sharm El-Sheik, no Egito, já como uma das fortes candidatas a assumir o Ministério do Meio Ambiente pela segunda vez.
À época, questionada pela BBC News Brasil sobre o que a fazia acreditar que o terceiro governo Lula seria diferente nas pautas ambientais, ela defendeu que “o mundo mudou”.
“O presidente Lula mudou. Naquela época, as diretrizes de controle e participação social, o combate às atividades ilegais, a política ambiental, eram diretrizes só do Ministério do Meio Ambiente. Agora, o próprio presidente assumiu que essas instâncias serão de todo o governo. Lula disse que a política ambiental vai ser transversal. Ele afirmou que o clima está no mais alto nível de prioridade e queremos chegar ao desmatamento zero”, declarou à época.
Perguntada sobre a exploração de petróleo, uma das marcas dos dois primeiros mandatos de Lula e que volta à baila agora, Marina lembrou que o presidente já havia declarado que agora existem alternativas para a produção de energia, como as usinas eólicas, a biomassa e a energia solar.
“Elas já têm um custo mais barato do que a própria energia que vem das hidrelétricas. Esses grandes empreendimentos podem ser substituídos pela geração de energia limpa, renovável, segura e com boa distribuição”, lembrou a atual ministra do Meio Ambiente.
Risco de contradições
Suely Araújo, do Observatório do Clima, reforça que os licenciamentos ambientais são uma parte fundamental de qualquer empreendimento — e que o Ibama é responsável por uma pequena parcela deles (a maioria é feita por instâncias municipais ou estaduais).
Ela mesma, que foi presidente do Ibama entre 2016 e 2018, disse que precisou negar vários pedidos do tipo quando esteve no cargo.
Na avaliação da especialista, Lula “incorporou a questão climática e ambiental” no discurso e isso foi reforçado a partir do momento em que Marina aderiu à campanha, ainda na época das eleições do ano passado.
Mas ela entende que é papel da sociedade civil fiscalizar e cobrar para que o discurso proferido até agora se transforme em ações práticas e políticas públicas.
Segundo Araújo, o governo Lula tem enfrentado dificuldades para reconstruir as políticas ambientais, pois recebeu um cenário de “terra arrasada”.
Além disso, ela lembra que as invasões de Brasília no dia 8 de janeiro e a crise dos yanomami exigiram atenção e ações imediatas, que postergaram o início das políticas ambientais de longo prazo.
Por fim, ela aponta algumas “incoerências” entre o que foi dito em campanha e o que está acontecendo na prática — a começar pelos próprios projetos de exploração de novas fontes de combustíveis fósseis.
“Em plena crise climática, faz sentido você apostar na ideia de que o Brasil será o último grande exportador de petróleo? O mundo inteiro precisa caminhar para a descarbonização das fontes de energia e, a partir de 2030, o uso desses combustíveis deve estar no mínimo necessário. Se não fizermos isso agora, nossos problemas ficarão ainda piores”, diz.
“Eu pessoalmente acho muito questionável um modelo em que o Brasil se torna um grande vendedor de petróleo, quando o caminho deveria ser justamente o oposto”, complementa.
“Será que esse é o Brasil que a gente quer? Será que essa é a melhor forma de gerar renda para os brasileiros? Até que ponto a exploração de petróleo tem estimulado realmente a distribuição de renda no país? Nós sabemos que essa atividade gera dinheiro, mas isso é distribuído de que forma e para quem?”, questiona a especialista.
Para Fleury, se o Governo Federal focar em programas de investimento e incentivo aos combustíveis fósseis e ao transporte individual, isso criará uma contradição com as falas proferidas até o momento.
“De nada adianta o discurso falar de questão climática se as práticas e as políticas públicas estiverem centradas no petróleo”, alerta.
Araújo explica que o Brasil tem uma vantagem competitiva e é a única grande economia do planeta que pode conseguir zerar as emissões de gases causadores das mudanças climáticas antes dos prazos estabelecidos em acordos internacionais.
“Nós do Observatório do Clima defendemos que o Brasil pode se tornar um líder mundial em termos de descarbonização até 2045”, estima.
“E essa discussão precisa envolver todas as nossas decisões de infraestrutura e energia. Que futuro queremos? Se o país tiver um modelo de respeito ao meio ambiente, com o pressuposto da floresta em pé e da geração de riquezas a partir dos recursos naturais dos nossos biomas, nosso potencial é gigantesco”, propõe.
O engenheiro de energia Rafael Henrique Pinto e Silva, doutorando em Tecnologia e Ambiente da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entende que a Amazônia permite ao governo planejar outras formas para a obtenção de combustíveis e eletricidade.
“Isso permitirá que o país faça uma transição energética justa e limpa, inclusive com incrementos na economia e na geração de empregos”, vislumbra.
“Mas o governo precisará fazer uma boa comunicação sobre essas questões, para que uma eventual desaceleração de investimentos no petróleo não vire um tiro no pé”, diz ele.
Unterstell concorda e chama a atenção para o fato de que, nos últimos anos, o Brasil tem apresentado nas negociações internacionais um desejo de ser um dos últimos países a deixar de exploração de petróleo.
“E o que vemos agora nos primeiros meses de governo Lula é essa bomba estourando. O Brasil foi o terceiro país que solicitou e licitou mais empreendimentos em gás e petróleo no mundo inteiro, só atrás de Catar e Arábia Saudita”, diz Unterstell.
A presidente do Instituto Talanoa diz que o surgimento desse assunto era inevitável e considera “interessante” a forma como o governo está lidando com a questão até o momento.
“Por enquanto, a discussão é sobre a foz do Amazonas, mas há uma conversa mais densa sobre nossa receita de desenvolvimento e como vamos tratar as regiões que são ricas em petróleo num contexto em que ele deixa de um grande negócio”, conta.
“Temos questões estruturais sendo expostas e precisamos ver como o governo vai amadurecer essa discussão”, conclui Unterstell.
Você precisa fazer login para comentar.