- Jo Fidgen e Laura Thomas
- Programa Outlook, da BBC*
O americano John Francis tomou uma decisão que mudou sua vida quando era um jovem hippie: parar de falar. Ele ficou em silêncio por 17 anos até perceber que tinha algo que realmente precisava dizer.
Tudo começou com um desastre ambiental. Uma colisão entre dois petroleiros em 1971 que contaminou a Baía de San Francisco, na Califórnia (EUA), com mais de meio milhão de galões de petróleo.
“Fiquei sabendo e quis ver, fui então da minha pequena cidade de Inverness para San Francisco. Vi pessoas na praia em pequenos grupos limpando. Elas entravam na água e saíam com aves marinhas — pelicanos , gaivotas e biguás — cobertos de óleo.”
Aquela cena das pessoas tentando salvar as aves o impactou tanto que ele sentiu que precisava fazer alguma coisa.
“Pensei: ‘Não quero mais dirigir automóveis’. Isso foi na época dos hippies, e eu certamente era meio hippie, e decidi que era isso que ia fazer.”
Vale lembrar que isso aconteceu na década de 1970, na Califórnia. Todo mundo ia dirigindo para todo canto, então abrir mão por completo dos veículos motorizados foi um passo ousado.
John se viu caminhando sozinho.
“Achei que todo mundo caminharia comigo, porque o derramamento de óleo impactou as pessoas com tanta força que elas diziam coisas como ‘vou parar de andar de carro’. Por isso, não era estranho eu dizer isso.”
“No entanto, quando eu cumpri (o que dizia), me falaram: ‘Para que você está fazendo isso? É loucura! Nada vai mudar.'”
“Mas, como minha mãe dizia, sou teimoso e continuei andando.”
“Enquanto estava fazendo isso, algo começou a acontecer. Comecei a gostar. Comecei a gostar de viver onde vivia, e de não ter que pegar meu carro e ir para a cidade ou fazer compras nas lojas… Me tornei parte do lugar onde vivia.”
Controvérsias
Aos poucos, John percebeu que, em vez do seu mundo encolher por se tornar tão local, ele estava se expandindo.
“Não é incrível? Como eu me deslocava tão rápido antes, tinha muito pouco tempo para me dar conta do que estava ao meu redor; sair do carro foi uma oportunidade para eu experimentar meu entorno em um ritmo humano.”
Mas sua decisão causou polêmica.
“As pessoas discutiam comigo sobre se um indivíduo poderia fazer a diferença.”
Os motoristas o criticavam por fazê-los se sentir mal ou por querer que se sentissem mal, e John se defendia… até se cansar do som de sua própria voz.
Um presente
Na véspera de seu aniversário de 27 anos, John estava lendo O Hobbit, de J. R. R. Tolkien, e teve uma ideia.
“Aqueles que leram sabem que quando os hobbits fazem aniversário, eles não esperam receber presentes, eles dão (presentes).”
Como falava pelos cotovelos, ele decidiu qual poderia ser seu presente para os outros: “Vou parar de falar nesse dia”.
“Me levantei então naquela manhã e fiquei em silêncio.”
Mas com tantas trocas em um dia normal… como será que ele resistiu a falar?
“Foi muito interessante, porque as pessoas tinham muito a dizer e, para sua surpresa e deleite, eu só escutava.”
“Para mim, foi revelador porque ouvi o que as pessoas tinham a dizer, talvez pela primeira vez.”
“Até este dia, o que eu costumava fazer quando começavam a falar comigo, era pensar no que eu ia responder, em como ia dizer que estavam equivocados e eu tinha razão.”
“Durante esse voto de silêncio de 24 horas, percebi que não escutava ninguém e que, agora que estava escutando, poderia aprender alguma coisa.”
“Pensei: ‘Vou ficar calado outro dia’, que se transformou em outro dia e depois em uma semana.”
Mas o que será que seus amigos diziam: o encorajavam ou dissuadiam?
“Minha namorada ficou muito feliz no começo, mas depois de uma semana mais ou menos ela queria saber quando eu ia parar. E muita gente achava que eu era um pouco louco… eu mesmo me perguntava se não era.”
E por que então não voltou a falar?
“Porque me senti bem, porque percebi que estava aprendendo. E quando estava andando na natureza, sentia que era realmente um lugar que precisava explorar. Era algo que precisava fazer.”
“Nas primeiras semanas, havia muitas conversas na minha mente sobre o que eu deveria dizer e quando começaria a falar, até que finalmente cheguei à conclusão de que continuaria assim por um ano”.
“E uma vez que tomei a decisão, tudo se acalmou, e me acomodei no silêncio, e o silêncio se instalou em mim.”
Esta é uma frase encantadora: “O silêncio se instalou em mim”.
Qual é a sensação?
“Ah, é maravilhoso! É quase como se tivessem me escolhido para ser esta pessoa, e estava muito agradecido. É como um presente. Comecei pensando que estava dando um presente para minha comunidade e acabou sendo um presente para mim também.”
O início de uma jornada
John havia estabelecido que ficaria um ano sem falar — e começou a caminhar pelos Estados Unidos.
Ele levava o saco de dormir nas costas e acampava sob as estrelas, pegando empregos ocasionais pelo caminho.
Ele improvisou uma linguagem de sinais e usou muita mímica para se fazer entender. Mais tarde, quando os jornais começaram a escrever sobre ele, recortava os artigos para usar como cartão de visita.
Além de caminhar, John pintava e tocava um banjo que era seu fiel companheiro.
Quando seu aniversário seguinte chegou, ela reavaliou a decisão e permaneceu em silêncio por mais um ano… e virou mais um ano, e mais outro…
Passaram-se 17 anos, nos quais ele fez “muita exploração, caminhando da Califórnia até o Oregon e por áreas selvagens”.
Ele também voltou a estudar, para poder se formar, em silêncio.
“Lembro que fui ao gabinete do responsável pelas matrículas (da Universidade do Sul do Oregon, em Ashland) e tentei fazer com que ele entendesse que eu não falava e que queria estudar.”
“Sentei na frente dele e abaixei minha cabeça como O pensador, de Rodin, e depois juntei as palmas das minhas mãos e as abri como se fosse um livro e fiz como se estivesse lendo.”
John repetiu a sequência até que o funcionário da universidade perguntou: “Então você quer estudar aqui e aprender a pensar?”
“Eu assenti.”
Fechando o ciclo
Ele obteve um diploma de graduação, e entrou em contato com a Universidade de Montana para se candidatar a uma vaga no programa de mestrado em estudos ambientais.
“Posso chegar em dois anos”, escreveu ele, e começou a caminhar.
Quando chegou, não tinha dinheiro.
“O diretor do programa disse: ‘John, você está pronto para estudar?’ Eu esvaziei os bolsos, e ele disse: ‘Ah, você não tem dinheiro!’ Balancei a cabeça, e ele falou: ‘Volte amanhã’.”
No dia seguinte, “ele me deu US$ 150 e disse: ‘Se cadastra para um crédito’, o que eu fiz. E ele falou: ‘Todos os professores disseram que deixariam você fazer as aulas de graça’.”
Ele concluiu o mestrado com a tese “Peregrinação e mudança: guerra, paz e meio ambiente” (1986).
“Essas coisas se tornaram a quintessência dos meus pensamentos enquanto terminava minha caminhada pelos EUA.”
Ao longo do caminho, ele fez um doutorado em recursos terrestres na Universidade de Wisconsin, em Madison.
Sua dissertação foi sobre aquilo que havia motivado sua caminhada silenciosa: os derramamentos de óleo.
A mensagem
As portas começaram a se abrir.
Ele foi convidado a assessorar o governo americano sobre derramamentos de óleo e redigiu regulamentações para os mesmos. As Nações Unidas o queriam como embaixador do meio ambiente… nada mal para um hippie que um dia decidiu abrir mão dos veículos motorizados e depois parou de falar!
“É muito surpreendente.”
Três diplomas e quase duas décadas depois, John sentiu que tinha algo a dizer e colocou uma data em seu diário para começar a falar novamente: 2 de janeiro de 1990.
“Escolhi o Dia da Terra porque queria falar sobre o meio ambiente, algo que para mim tinha deixado de ser sobre o que tradicionalmente pensamos — mudanças climáticas, derramamentos de óleo, poluição e coisas assim — para incluir como tratamos uns aos outros.”
“Isso é algo que eu não ouvi nos meus estudos, mas foi o que aprendi caminhando e convivendo com pessoas de todo o país.”
E qual foi a conexão entre cuidar do meio ambiente e o cuidado mútuo que ele encontrou?
“A conexão foi que, como fazemos parte do meio ambiente, a forma como tratamos uns aos outros é nossa primeira oportunidade de tratar o meio ambiente de maneira sustentável ou até mesmo descobrir ou entender o que queremos dizer com sustentabilidade.”
“O meio ambiente para mim se tornou direitos humanos, direitos civis, igualdade de gênero e todas as formas com que nos relacionamos, porque isso se manifesta no ambiente físico que nos rodeia.”
“Pense, por exemplo, em como poluímos a água sem pensar nas pessoas rio abaixo que precisam limpá-la.”
Em outras palavras, se explorarmos uns aos outros, é mais provável que exploremos o meio ambiente, e se explorarmos o meio ambiente, é mais provável que exploremos uns aos outros.
Esta era a mensagem que John queria tanto transmitir que estava disposto a quebrar seu silêncio de 17 anos.
Sua voz
E como foi a experiência de falar novamente pela primeira vez em tanto tempo e diante de uma audiência que incluía amigos e familiares com quem não falava há tantos anos?
“Fiz isso em Washington DC, em um hotel que se ofereceu para sediar um pequeno evento para mim, e convidei alguns amigos e familiares. Também vieram alguns meios de comunicação — National Geographic, Los Angeles Times.”
“Toquei um pouco de banjo e disse: ‘Obrigado por estarem aqui’. E minha mãe pulou da cadeira e disse: ‘Aleluia, Johnny está falando! E pensei: ‘Que coisa incrível, ver minha mãe tão feliz’.”
“Mas como eu não ouvia minha voz há tanto tempo, não entendi direito de onde vinha. Olhei para trás para ver quem estava dizendo o que eu estava pensando.”
“Fiquei tão surpreso que comecei a rir, e vi meu pai olhar para mim pensando: ‘Sim, ele é realmente louco’.”
Foi assim que as palavras faladas voltaram à sua vida… e os carros?
“Eu caminhava para todos os lugares, independentemente de qualquer coisa, e percebi que havia me tornado um prisioneiro e que tinha as chaves desta prisão, e poderia me libertar a qualquer momento.”
“Agora dirijo um híbrido.”
Será que ele sente falta do tempo em que não falava e simplesmente caminhava?
“Bem, eu ainda ando. Na verdade, a partir de agosto, estarei caminhando na África. E também, às vezes, eu não falo por um dia. De qualquer forma, estes 17 anos de silêncio e 22 anos de caminhada simplesmente não desaparecem.”
Aconselharia então outras pessoas a fazer o mesmo?
“Aconselharia escutarmos uns aos outros.”
*Esta reportagem é baseada no episódio Why I stopped talking for 17 years (“Por que parei de falar por 17 anos”) do programa de rádio Outlook, da BBC. Você pode ouvir a íntegra aqui (em inglês).
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