- Luiz Antônio Araujo
- De Porto Alegre para a BBC News Brasil
Uma antiga controvérsia político-religiosa entre ortodoxos e católicos está por trás da sutil manobra de relações públicas ensaiada pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, nesta quinta-feira (5/1).
Ao propor à Ucrânia um cessar-fogo de 36 horas por ocasião do Natal ortodoxo, comemorado nesta sexta-feira (6/1) e neste sábado (7/1), o líder russo tirou partido das similaridades religiosas dos dois países, que comemoram o nascimento de Cristo 13 dias depois do restante da cristandade.
Sem esperar a resposta do inimigo, o Kremlin informou que suas tropas observarão um cessar-fogo “a partir do fato de que um grande número de cidadãos que professam a ortodoxia vivem nas áreas de hostilidade”.
A medida, que deve durar do meio-dia de 6 de janeiro (a véspera de Natal) à meia-noite de 7 de janeiro, teria sido adotada a pedido do patriarca Kiril, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, com sede em Moscou.
Em seguida, o governo ucraniano do presidente Volodimir Zelensky rejeitou a oferta de Putin, explicando que as hostilidades prosseguirão enquanto as forças russas não deixarem o território da Ucrânia.
“Guarde sua hipocrisia para si”, escreveu Mikhailo Podolyak, conselheiro de Zelensky, em sua conta no Twitter.
A diferença de datas entre o Natal católico, comemorado nos dias 24 e 25 de dezembro, e o ortodoxo explica-se pela diferença entre dois calendários.
O Juliano é adotado pelas denominações ortodoxas (russa, grega, ucraniana, siríaca e outras), enquanto o Gregoriano é seguido pela Igreja Católica e pelas vertentes protestantes e pela maioria dos governos e instituições do planeta.
Atualmente, o calendário gregoriano encontra-se 13 dias à frente do juliano.
História
O calendário Juliano foi introduzido pelo imperador romano Júlio César em 45 a.C., com base em cálculos e notações de astrônomos egípcios.
Atualmente um ano é estabelecido como o período necessário para que a Terra execute uma volta completa ao redor do Sol, mas os astrônomos da época, geocêntricos, acreditavam que era o Sol que fazia uma elipse completa em volta da Terra.
Seus cálculos diziam que esse movimento durava 365,25 dias — ou 365 dias e seis horas. O calendário Juliano já representou um grande avanço em relação aos antigos calendários de Roma, que fixavam 15 meses por ano.
O Juliano forneceu também uma solução para a assim chamada fração de seis horas a cada ano, que passou a ser compensada a cada quatro anos com a criação do ano bissexto (com um dia a mais em fevereiro).
Na era moderna, com o surgimento de novas concepções sobre o espaço e o tempo, a duração de um ano foi estimada em 365,2425 dias (o chamado ano tropical).
Portanto, a diferença entre esses dois calendários reside na duração considerada do ano (365,25 dias no Juliano e 365,2425 dias no Gregoriano) e nas regras para recuperação do dia perdido, acumulado durante os anos, devido à fração de dias na duração do ano considerada.
Quando o calendário Gregoriano foi instituído pelo papa Gregório 13, em 1582, o Juliano estava 10 dias atrasado em relação ao chamado ano tropical.
Gregório decidiu também que a Páscoa deveria coincidir com o equinócio (data que marca mudança de estação) de primavera no Hemisfério Norte.
Assim, foi necessário passar do dia 4 de outubro de 1582 para o dia 15 de outubro do mesmo ano nos quatro países que adotaram imediatamente o novo sistema (Itália, Espanha, Portugal e Polônia).
A decisão em relação à Páscoa implicava a revisão de uma importante decisão do Concílio de Niceia, reunido no ano 325 por ordem do imperador Constantino.
Esse concílio fixara o domingo seguinte à lua cheia do equinócio de primavera como Domingo de Páscoa para todos os cristãos. Com base nessa determinação, foi fixado um calendário de Páscoas futuras.
A existência dessa sequência predeterminada foi uma das razões invocadas pelos ortodoxos para rejeitar o calendário gregoriano.
Outra diferença entre os dois calendários está na forma de cômputo da chamada fração ou sobra do 365º dia do ano.
No Juliano, a cada quatro anos, há um bissexto (com 366 dias). No gregoriano, não são bissextos os anos terminados em 00 (os chamados anos seculares), com exceção dos múltiplos de 400.
Desde 1582, católicos romanos e protestantes, de um lado, e ortodoxos, de outro, passaram a celebrar as festividades religiosas em datas diferentes.
Embora existam distintas denominações ortodoxas, todas observam o calendário Juliano. Independentemente da denominação, dos ritos e da estrutura eclesiástica, porém, todos celebram os mesmos episódios, incluindo o nascimento de Cristo (Natal) e sua ressureição (Páscoa).
Motivos políticos
Mais do que uma simples convenção, a definição do calendário pela Igreja romana teve propósitos políticos.
Ao dissociar a Páscoa do equinócio de primavera no Hemisfério Norte, o Concílio de Niceia teve por objetivo separar a celebração cristã da judaica (a festa do Pessach, que lembra a fuga dos judeus do Egito e era observado por Jesus no momento de sua prisão e morte, coincide com o equinócio de primavera na Palestina).
Da mesma forma, ao retificar essa decisão, Gregório 13 impôs uma distinção em relação ao patriarcado de Constantinopla, impedindo que católicos e ortodoxos comemorassem feriados nas mesmas datas.
No Império russo, em países do leste europeu e na Grécia, o calendário juliano continuou sendo o calendário oficial do Estado até o século 20.
Na Rússia, o calendário gregoriano foi adotado pelo governo soviético encabeçado por Lenin em 1918 — os bolcheviques entendiam a mudança como parte da modernização do Estado.
Isso deu origem a um célebre anacronismo: a queda do czar Nicolau 2° passou à história com o nome de Revolução de Fevereiro (embora tenha ocorrido em março, segundo o calendário gregoriano), e a queda do regime de Alexander Kerensky como Revolução de Outubro (transcorrida em novembro pelo sistema que seria adotado no ano seguinte).
Prestes a completar um ano, a invasão da Ucrânia por forças russas deu início ao maior e mais grave conflito armado entre países de maioria ortodoxa desde a intervenção da Rússia na Geórgia em 2008.
Rússia e Ucrânia têm grande diversidade religiosa, incluindo importantes minorias católicas, islâmicas e judaicas (Zelensky, por exemplo, é judeu), mas a maioria dos cidadãos dos dois países segue a fé ortodoxa.
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