- Priscila Carvalho
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
A estudante Maria Alice de Oliveira, de 22 anos, chegou em Rosário, na Argentina, pouco antes da pandemia para cursar medicina. Como não queria fazer anos de curso pré-vestibular, começou a procurar faculdades estrangeiras onde pudesse ter uma formação de qualidade e sem pagar um preço exorbitante.
“Eu não queria ter que ficar seis anos no cursinho, pois essa é a média para passar numa faculdade pública. Já as particulares são caras e faturam muito”, conta em entrevista à BBC News Brasil.
A jovem afirma que o acesso à universidade no país vizinho é muito mais justo e permite que estudantes com baixa renda possam ingressar nesse tipo de graduação.
Ao contrário das faculdades tradicionais brasileiras, que apresentam vestibulares próprios ou usam o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como forma de nivelar e eliminar candidatos, nas instituições argentinas basta se inscrever no curso, seguir um ciclo com matérias específicas e, se atingir a nota exigida, o candidato de fato começa a estudar matérias de medicina.
Em algumas universidades esse ciclo básico comum pode durar três meses, seis ou até um ano.
“Na minha faculdade, fiz um curso de ingresso que tinha matérias que envolviam química, física, biologia, anatomia e para quem é estrangeiro tem o espanhol. A gente faz esse curso de ingresso, depois tem as questões e entrevista com o reitor e professor. No final, eles fazem um ranking com um número de pessoas aprovadas”, explica a estudante.
Mesmo tendo opções públicas de ensino, Maria Alice optou por uma faculdade privada pelo intercâmbio cultural e oportunidades de trabalhar na Europa no fim da graduação.
Atualmente, ela estuda no Instituto Universitário Italiano de Rosário, uma faculdade italiana que fica a quase 600 quilômetros da capital Buenos Aires.
“Temos materiais em inglês e italiano e todas as matérias são em espanhol. Temos aula de inglês médico e italiano para conhecer a língua. Penso em ir para Espanha ou Itália depois da graduação, pois a Argentina tem um tratado com a Espanha”, diz a jovem que paga R$ 1,2 mil de mensalidade na atual faculdade.
Mesmo tendo ajuda financeira dos pais e não podendo trabalhar por causa da carga horária puxada, ela conta que viver no país sendo estudante é uma realidade possível para muitos brasileiros que buscam qualidade de vida e ingresso em boas instituições.
Hoje, ela consegue morar sozinha em um apartamento, ter gastos com alimentação, passeios e mensalidade da faculdade com um custo mensal de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil.
Faculdade particular por R$ 600
Cursando biomedicina no Brasil, Nattascha Dumke, de 30 anos, mudou seus planos quando começou a estagiar na área. Ao ter contato com os conteúdos práticos, percebeu que suas aptidões eram mais voltadas à medicina.
Estudante de escola pública, ela conta que seria quase inviável tentar prestar vestibular para uma faculdade pública ou pagar uma instituição privada.
“Eu estava muito longe do conteúdo do ensino médio. Não tinha uma base boa e teria que fazer muito tempo de cursinho. As particulares começavam em R$ 8 mil e tinha algumas que chegavam a custar R$ 12 mil”, afirma.
Foi então que ela começou a procurar por faculdades na Argentina e se mudou para o país em 2018. No início, entrou na UBA (Universidade de Buenos Aires), uma das principais referências em ensino público na América Latina.
Assim como as particulares, não é necessário prestar um vestibular para ingressar na instituição de ensino.
Mesmo gostando do curso, ela conta que, assim como a maioria das faculdades públicas, sentia que a UBA carecia de estrutura em algumas modalidades. Por isso decidiu mudar a graduação para uma faculdade privada, na qual paga 600 reais de mensalidade.
“Eu estudo na Fundación Barceló. Senti uma diferença no número de alunos por sala, didática e achei mais moderna. Eu fiz a troca de faculdade quando estava indo para o terceiro ano”, diz.
Ela também afirma que graças ao ensino do país, é possível ter uma qualidade de vida excelente e morar em um bom apartamento. Ela pretende fazer o Revalida ao voltar para o Brasil, mas seu maior desejo é trabalhar na Europa quando se formar.
Mariel Ramos, de 33 anos, também escolheu uma faculdade particular para seguir com os estudos em medicina. Morando na cidade de Buenos Aires há cinco anos, ela conta que os cursinhos pré-vestibulares a fizeram mudar os planos e optar por uma graduação no exterior.
“Tive vários gastos financeiros e emocionais. A pessoa acaba se dedicando muito e de forma intensa. Fora isso, o ingresso nas faculdades particulares acaba limitando o acesso e a pessoa tem que fazer um financiamento para entrar. É um ingresso extremamente difícil e você ainda fica com dívida”, diz.
Formada em Ciências Sociais por uma faculdade federal do Paraná, ela resolveu trocar de área e planejou a mudança para a capital da Argentina. Porém, ao contrário de muitos estudantes que têm a ajuda dos pais ou conseguem seguir com a faculdade sem trabalhar, ela precisou fazer jornada dupla e tinha uma rotina estressante, conciliando trabalho e estudos.
“Já trabalhei de gerente administrativo em uma assessoria especializada em trâmites para brasileiros e equatorianos virem estudar aqui. Depois, como Inside Sales, em uma startup relacionada ao agro. Com a renda desses trabalhos, comecei um negócio próprio e desde maio estou só com ele”, afirma.
Atualmente, ela estuda medicina no período noturno na Universidad Abierta Interamericana (UAI).
“Nas particulares até o quarto ano você consegue escolher o turno. Após esse período, a ‘cursada’ acontece nos hospitais e não tem opção de escolha”. Ela conta que são seis horas todos os dias, incluindo aulas aos sábados, que vão das 8h às 14h.
Mesmo tendo um ritmo de vida mais puxado, ela afirma que vive muito bem com aproximadamente R$ 3 mil mensais.
“Pago R$ 1 mil por mês na minha faculdade e essa foi a melhor opção para mim. Tenho uma vida social bem ativa, gosto de bons restaurantes e entendo que hoje meu custo é um pouco elevado comparado com outras pessoas”, diz.
Em relação aos cursos no Brasil, ela acredita não sair perdendo na escolha, pois as matérias são muito parecidas e até alguns termos usados também são semelhantes.
“Minha faculdade tem até hospital próprio e eu diria que 80% do vocabulário é o mesmo.”
Concluir o curso é difícil
Embora o processo de admissão no curso pareça fácil, terminar a graduação de medicina no país pode ser bem demorado e complicado.
Ao contrário de muitas faculdades brasileiras, em que o professor passa as matérias para os alunos e há muitas aulas presenciais, em algumas instituições de ensino não há essa prática. No caso da Universidade de Buenos Aires (UBA) há métodos próprios e o estudante aprende muitas coisas sozinho.
Diego Alves Schmidt, de 20 anos, cursa o primeiro ano da carreira de medicina na instituição e defende os critérios adotados pela faculdade tanto na admissão dos alunos quanto nas provas.
Vindo de um ritmo “frenético” de aulas no cursinho pré-vestibular no Brasil, o estudante reforça que as matérias do primeiro ano foram bem tranquilas.
O jovem destaca que o método de entrada na faculdade é o mais adequado.
“Eu estava em um ritmo de cursinho, que hoje considero extremamente tóxico, e que consome sua saúde mental. A melhor coisa é não ter vestibular”, diz.
Ela afirma ainda que as provas são orais, o que é considerado, na visão dele, um diferencial na graduação da Argentina. Além disso, é menos provável haver “colas” ou fraudes nos exames.
“O professor não vai correr atrás de ti. É bem diferente do Brasil e basicamente é muito do aluno”, destaca.
O único ponto negativo destacado pelo estudante é a falta de contato com pacientes durante a graduação. Em alguns cursos de medicina no Brasil, o estudante tem uma troca logo no primeiro ano, enquanto que, na faculdade pública argentina, a prática clínica só irá ocorrer no quarto ano.
“No Brasil você começa cedo nos postinhos e UPAs, por exemplo”, diz.
Assim como Diego, Gabriela Landini, de 18 anos, escolheu a UBA para cursar medicina na Argentina. Morando na capital há sete meses, ela conta que não achava justo ingressar em universidades por meio de um vestibular.
“Você fica muito tempo estudando em um cursinho ou pagando caro, no fim acaba não passando e se frustra. Eu conheço pessoas que fizeram cursinho por quatro anos, desistiram e mudaram de carreira”, ressalta.
Ela desembarcou no país para realizar o sonho de ser médica e teve o apoio de toda a família, já que sua mãe também se mudou para o território argentino. A pesquisa para entrar na instituição pública começou com um ano de antecedência.
“Tivemos que legalizar todos os documentos escolares, pessoais e ainda tive que fazer uma prova de proficiência em espanhol, porque para fazer a inscrição na faculdade precisava ter pelo menos um certificado com um nível B2 no idioma”, diz.
Ela também é a favor do método de ensino aplicado pela faculdade e ressalta que isso é um diferencial frente ao Brasil.
“Aqui os estudantes são mais autônomos e vejo um incentivo para o aluno ir buscar e aprender sobre o assunto por conta própria”, diz.
Mesmo estando no primeiro ano de ensino, ela afirma que não pretende exercer carreira em território nacional. “Quero ir para Espanha e mais para frente posso até escolher algum outro país da Europa”, diz.
Deficiência começa no ensino de base
Mesmo o Ministério da Educação da Argentina e o governo do país não divulgando os números de quantos brasileiros entram todos os anos para cursar medicina em território argentino, a presença desses estudantes é muito forte por lá.
“Na minha sala tem 60% de brasileiros”, destaca Nattascha. Já Maria Alice também afirma que pelo menos um quarto dos alunos da sua graduação são estudantes do Brasil. Essa debandada pode ser atribuída a questões sociais, econômicas e educacionais.
Segundo Evelise Labatut Portilho, pós-doutora em Educação e professora do programa stricto sensu de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), o problema do acesso a faculdades de medicina no Brasil se dá, principalmente, pelas carências no ensino de base.
A especialista também afirma que métodos como vestibulares só servem ainda mais para excluir candidatos e aumentar a desigualdade educacional.
“Tem alunos que não conseguem ler e fazer um cálculo mental. A solução para isso é que as instituições deixem de ser empresas e voltem a ser instituições de ensino”, opina.
Considerada uma profissão ainda elitista, cursar medicina no Brasil requer muito dinheiro se o candidato ingressar em uma faculdade particular ou anos de estudo para recuperar as matérias que não foram aprendidas durante o ensino médio em uma escola pública, por exemplo.
Sandro Schreiber, presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), ressalta que é necessário democratizar o acesso para que não haja essa “fuga” de estudantes.
“As políticas de cotas melhoraram muito, mas ainda é um curso muito elitizado. Investir nisso seria uma das formas e é até mais eficiente para mudar o perfil da formação médica no Brasil”, diz.
Contudo, Schreiber não vê como uma problemática um profissional se formar em outro país. “Se o médico está bem formado, ele sabe onde buscar conhecimento das coisas que ele não aprendeu”, diz.
Para ele, o mais importante é olhar para a formação médica que deve, sobretudo, cumprir um papel social na saúde da população.
“O médico no Brasil precisa ser um profissional que atue numa política social e não são todos os países que fazem isso. Isso não é verdade em qualquer lugar. Estados Unidos, por exemplo, não faz isso”, destaca.
Ele ainda chama atenção para a melhoria das universidades que oferecem medicina no Brasil. Segundo o presidente da ABEM, falta fiscalização em relação ao ensino oferecido nessas instituições, incluindo as da rede pública e privada.
“O Estado precisa autorizar cursos em locais que haja necessidade e, claro, realizar avaliações periódicas. Isso não tem sido exercido e precisa ser retomado com urgência.”
De acordo com os últimos dados divulgados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o Brasil tem atualmente 353 faculdades de medicina, sendo que 173 delas foram abertas entre 2011 e 2021.
É necessário revalidar o diploma
Terminar a graduação no país vizinho e voltar para o território nacional não é tão simples, caso o brasileiro queira exercer a profissão de médico.
Ao retornar, é necessário prestar o Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituição de Educação Superior Estrangeira, conhecido como Revalida. A prova é destinada aos estrangeiros formados fora do país e a brasileiros que se graduaram no exterior. A avaliação é dividida em duas etapas eliminatórias, que possuem provas escritas e de habilidades clínicas.
“É essencial que o Brasil tenha essa avaliação da qualificação. Em outros países são realizadas até outras exigências quanto à prática e o local de formação. Há uma perspectiva de que nos Estados Unidos só serão habilitados para fazer a prova, estudantes que tenham se formado em escolas de qualidade”, explica Julio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do Conselho Federal de Medicina.
Schreiber também defende o modelo de prova e acredita que mesmo que o exame reprove muita gente, não é uma prova inatingível.
“Obviamente pode haver adequações e revisões, mas não é uma avaliação impossível”, diz.
Braga acredita que o alto índice de reprovação se dá à baixa qualificação dos estudantes.
“Inicialmente, o exame é feito dentro de metodologias bem reconhecidas, a imensa maioria não questiona a qualidade do Revalida. Então, a baixa taxa de aprovação não é porque o exame seja ruim. Eu acredito que os formados no exterior na verdade não têm a capacitação adequada. Muitos fizeram medicina em países cuja metodologia e prática são questionáveis.”
Atualmente, o Revalida pode ser feito duas vezes ao ano, no primeiro e segundo semestre. De acordo com dados divulgados pela instituição, no segundo semestre durante a primeira etapa, 5.259 brasileiros se inscreveram no teste, sendo que 680 foram aprovados, correspondendo a 12,93%. Já na segunda etapa foram 1.318 inscritos, com zero aprovação.
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