- Author, Nicholas Barber
- Role, BBC Culture
Quando surgiu o anúncio, em 2020, de que Greta Gerwig — que dirigiu os filmes Lady Bird: A Hora de Voar (2017) e Adoráveis Mulheres (2019) — seria também a diretora e uma das roteiristas de um filme sobre as bonecas Barbie, seus fãs imaginaram que ela fosse incluir no filme críticas ao consumismo e à preocupação com o próprio corpo inspirada pelas bonecas.
E foi exatamente o que aconteceu.
Mas, em uma das muitas surpresas oferecidas por Barbie, os dois temas foram mencionados apenas de passagem. A principal preocupação do filme — que atingiu a maior bilheteria de 2023 — foi o mau comportamento dos homens perante as mulheres. E de um homem, em particular.
O insinuante Ken (interpretado por Ryan Gosling), à primeira vista, parece ser um cara legal.
Mas, quando Barbie (Margot Robbie) se recusa a ter um relacionamento amoroso com ele (principalmente porque ela não sabe o que é um relacionamento amoroso), Ken elabora sua vingança maligna.
Ele se muda para a Casa dos Sonhos da Barbie, decora o ambiente com portas de saloon e muda seu nome para “Mojo Dojo Casa House”.
Ele conspira com seus colegas Kens para submeter todas as Barbies a uma lavagem cerebral, fazendo com que elas se tornem mulheres bobas e subservientes.
Seus planos incluem também a reforma da constituição da Barbielândia, para que eles passem a deter todo o poder.
O pior de tudo é que Ken força Barbie a ouvi-lo tocar, na sua guitarra acústica, a música Push, da banda Matchbox Twenty, por quatro horas seguidas.
Nunca uma superprodução de Hollywood havia apresentado uma paródia tão precisa do frágil ego masculino.
Mas, mesmo que o ângulo escolhido por Gerwig tenha sido maravilhosamente ousado e inesperado, ela não estava sozinha.
Ficou claro ao longo de 2023 que os cineastas em toda parte estavam fascinados, repudiando homens arrogantes, predadores e mesquinhos em alto e bom tom.
O fato é que, no cinema, este foi o ano do “boy lixo”.
Opções para todos os gostos
Em uma mesma semana de outubro, o público americano podia escolher entre três filmes novos que abordavam a toxicidade masculina: Cat Person, Jogo Justo e The Royal Hotel.
Dirigido por Susanna Fogel, Cat Person é uma adaptação do conto viral de Kristen Roupenian, publicado na revista americana The New Yorker.
O filme é estrelado por Emilia Jones, que interpreta uma estudante que flerta com um homem na casa dos 30 anos, Nicholas Braun. Ela acaba descobrindo que, pessoalmente, ele não tem um pingo do charme que demonstra em suas mensagens de texto.
Ele a deixa desconfortável, mas ela sente que deve aceitar tudo o que ele quer, incluindo assistir a Star Wars – O Império Contra-Ataca no cinema onde ela trabalha.
E, quando ela o rejeita, sua reação é parecida com a de Ken — ele começa a enviar para ela mensagens de texto abusivas.
Jogo Justo foi escrito e dirigido por Chloe Domont.
Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich interpretam um casal recém-formado que trabalha na mesma companhia de investimentos de Wall Street.
Quando ela consegue a promoção que desejava, ele declara estar feliz por ela, mas logo embarca em um ciúme doentio.
E, em The Royal Hotel, da diretora Kitty Green, Julia Garner e Jessica Henwick interpretam duas mochileiras americanas que conseguem emprego como garçonetes em um bar na Austrália durante o verão.
Antes que elas começassem no emprego, veio o alerta: “Vocês vão precisar aceitar um pouco de atenção masculina”.
Mas, na verdade, o que elas precisam aceitar são abusos misóginos disfarçados de gracejos e homens lascivos cambaleando nos seus quartos após o horário de fechamento do bar.
Em 2019, a diretora e a estrela de The Royal Hotel, Kitty Green e Julia Garner, trabalharam juntas no filme A Assistente.
Nele, Garner interpreta uma assistente de produção com um chefe à la Harvey Weinstein (ex-produtor de filmes condenado por crimes sexuais).
Naquela época, os filmes relacionados a essas questões, que foram levantadas pelo movimento #MeToo, ainda eram uma raridade.
Mas, em 2023, já se passou tempo suficiente para que o setor de cinema avançasse e os diretores passassem a tratar da masculinidade tóxica em todos os gêneros possíveis e imagináveis.
O filme Anatomia de uma Queda, ganhador da Palma de Ouro do Festival de Cannes em maio de 2023, é um drama jurídico combinado com o mistério de um assassinato, mas também um retrato de um casamento sendo destruído porque o marido tem inveja do sucesso da esposa.
How to Have Sex, a brilhante estreia da diretora Molly Manning Walker, é um drama britânico sobre amadurecimento.
Nele, uma estudante adolescente (Mia McKenna-Bruce) é coagida a perder sua virgindade com um garoto insuportável ao passar férias na Grécia.
E Priscilla, de Sofia Coppola, é uma cinebiografia de Priscilla e Elvis Presley. O filme conta a história de uma jovem dominada por um poderoso homem mais velho.
Até Pobres Criaturas, do diretor Yorgos Lanthimos, segue o mesmo padrão. É o único filme desta reportagem que não foi dirigido por uma mulher.
O filme é uma fantasia selvagem ambientada na Europa da era vitoriana, mas tem muitos pontos em comum com Barbie.
As heroínas dos dois filmes não têm conhecimento do mundo real. No caso de Pobres Criaturas, a personagem de Emma Stone teve seu cérebro adulto substituído pelo de uma criança.
Esta ignorância permite que elas, inicialmente, atravessem a vida com ingenuidade e confiança. Mas os caminhos das duas mulheres são bloqueados por homens desesperados para controlá-las, que ficam furiosos quando não conseguem.
Mais patéticos do que ameaçadores
Teria sido fácil apresentar os homens agressores como monstros nestes filmes.
Afinal, na última vez em que Hollywood investiu tão pesado na guerra dos sexos, surgiram clássicos de suspense eróticos neo-noir como Corpos Ardentes (1981), Atração Fatal (1987) e Instinto Selvagem (1992).
Naquela época, a tendência era retratar as mulheres como psicopatas assassinas. Mas os cineastas de 2023 optaram por uma abordagem mais sutil e compreensiva.
Em Priscilla, Elvis pode ser gentil e simpático. Em Barbie, Ken é essencialmente um cachorrinho.
A maioria dos homens de Pobres Criaturas e How to Have Sex são mais patéticos do que ameaçadores.
Já The Royal Hotel, Cat Person e Jogo Justo só começam a viver o frenesi do suspense nos seus minutos finais.
O resultado é que quase nenhum dos homens desses filmes tem consciência de que está fazendo algo de errado.
Por que essa contenção?
Um motivo é que os cineastas querem demonstrar que os abusos sexuais e o comportamento coercitivo não se restringem a algumas maçãs podres, homens brutos facilmente identificáveis.
É, na verdade, algo tão comum que os homens podem nem observar o que estão fazendo e as mulheres podem ser levadas a não prestar atenção.
The Royal Hotel, por exemplo, parece estar sempre se preparando para apresentar um abuso sexual violento, mas a diretora e roteirista do filme não segue o caminho do sensacionalismo.
Kitty Green explicou no podcast Script Apart que “se eles tivessem estuprado alguém, todos [os espectadores] poderiam ter dito ‘não, não somos nós, nós nunca estupraríamos ninguém’. Mas se [os homens] fizerem apenas brincadeiras, xingarem [as mulheres] e se rirem delas, acho que muitas pessoas já fizeram isso quando estavam um pouco bêbadas e muitas pessoas devem observar seu próprio comportamento e dizer ‘meu Deus, talvez eu não devesse ter feito X, sabe?’ Acho que esta é a conversa que quero ter.”
Existe uma sutileza e maturidade nesses filmes que não existia quando Michael Douglas era ameaçado por Glenn Close e Sharon Stone nos anos 1980 e 1990.
Os filmes atuais se atrevem a mostrar as personagens femininas se comportando de forma irresponsável e até repugnante. A própria Barbie acaba se desculpando com Ken por ferir seus sentimentos.
A questão por trás dessa postura não é que os homens devem ser perdoados — nos filmes, todos eles recebem o castigo que merecem.
A questão parece ser que os pressupostos e convenções de uma sociedade dominada pelos homens pode fazer com que as mulheres — e até os homens — tomem decisões prejudiciais, como é exemplificado pelo hedonismo forçado em How to Have Sex e The Royal Hotel ou pela cultura corporativa masculina em Jogo Justo.
Mas o vilão de cada um desses filmes — os mais perspicazes do ano — não é um homem específico.
O vilão é o próprio patriarcado — o sistema que encantou Ken quando ele saiu da Barbielândia para a realidade.
É improvável que muitas pessoas irão rejeitar o sistema patriarcal com a mesma facilidade de Ken, mas talvez todos nós possamos aprender algo com suas palavras de rica sabedoria:
“Para ser honesto, quando descobri que o patriarcado não tinha a ver com cavalos, perdi todo o interesse.”
Fonte: BBC
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